4. Conclusão sob o enfoque civil-constitucional
Damos início às conclusões relembrando passagem de Regis Fernandes de Oliveira (2008:161), já acima citado, que se referindo ao autor italiano Antonio Berliri [08] afirma a linha tênue na conceituação entre Preço e Taxa "já que a separação entre ela (a taxa) e as relações contratuais é muito sutil, que não fica fácil dizer se encontra frente a um ou a outro dois institutos: uma relação de taxa ou de um contrato". Cita, divergência doutrinária como um "Babel de enfoques" [09] e conclui que cuidando-se de serviço público específico e divisível somente é possível a criação de Taxas para cobrança de tais atividades, mas "ressalvada a hipótese de ser ele prestado mediante permissão ou concessão, casos em que a retribuição será mediante preço". Pois bem.
Desta feita, ao observar todo posicionamento exposto no decorrer do artigo e respeitando essa tradicional confusão de conceitos como no parágrafo acima, procuramos definir de forma conclusiva sobre a natureza jurídica das "contas" de esgoto e água a fim de não deixar dúvidas ou transformar este texto em mais uma divagação sem fim sobre o tema. Repetimos a pergunta base do texto para posterior reposta: "Enfim: são Taxas por serem compulsórias, são Preços Públicos (como pelas últimas decisões e súmulas do STJ) ou são Contratos Coativos ?"
Assim sendo, concluímos que os serviços de água e esgoto realmente não são Tributos (Taxas). São Contratos Coativos e, sendo assim, são cobrados mediante Tarifa ou Preço como em últimas decisões do STJ. Misturam sim conceitos de Direito Privado – afinal são contratos de prestação de serviços – com conceitos de Direito Público – sendo cobrados por Tarifas e obrigatórios na maioria dos casos. São exemplos vivos da interpenetração dos ramos tradicionais do Direito Civil X Público.
E como resolver a questão da Autonomia da Vontade afeta aos contratos versus Compulsoriedade atinente aos Tributos?
Os contratos na tradicional roupagem, e mesmo na sua conceituação como Negócios Jurídicos, nascem da Liberdade de Contratar e têm como princípio primeiro a Autonomia da Vontade. Contratamos com quem, o que, e por quanto quisermos, sem interferência externa (Princípio da Relatividade) e contando com segurança da Força Obrigatória do avençado - pacta sunt servanda.
No entanto, este tipo de contrato livremente absoluto e sem interferência externa sofre inúmeras mudanças no decorrer do século XX e agora no século XXI. Isto porque, com a contratação em massa, de adesão [10],internet, globalização etc, a Liberdade, a Relatividade e a Força Obrigatória dos contratos clássicos recebe a companhia dos novos princípios da Boa-fé ( e Boa-fé Objetiva) e da Função Social.
A clássica doutrina que entende o contrato apenas oriundo da vontade deve e vem sendo ser revista.
Os contratos hoje são em sua maioria impostos pela necessidade em sua efetivação (como seguros de carro, bancos, cartões de crédito etc) que não podemos prescindir numa vida normal de Homem Médio [11], e mesmo impostos legalmente como o Seguro Obrigatório DPVAT e os Contratos Coativos que são objeto desse estudo. Sem se falar ainda na questão subjetiva, interna e psicanalítica dos sujeitos afetados pelo poder do marketing que nos obriga a consumir e contratar como levantado por Renata Barbosa Almeida, César Fiuza e Gustavo Pereira Leite Ribeiro (2009:332).
Dessa maneira, existem sim os Contratos Coativos. Existem sim os Contratos que não surgem da vontade livre e nos são obrigatórios. Daí a própria necessidade que fez surgir os princípios da Boa-fé e Função Social que permitem a Intervenção do Estado ou Dirigismo Contratual às relações privadas.
Em suma, esperamos concluir com estas linhas dando uma definição sobre a natureza jurídica de tais contas e outros serviços similares realmente como Contratos Coativos que são cobrados, portanto, através de Tarifas.
São novos tipos de contratos que nos são "impostos", que demandam cobrança via Preço ou Tarifa, como dito, e que não possuem todas regras pertinentes para serem definidos como Tributos. Afinal, são serviços realizados na maioria das vezes por pessoas jurídicas de direito privado, prestadoras de serviço público e que prestam serviços em contrapartida direta a um preço.
Daí que o mais importante nesse conceito que procuramos definir, é prestar atenção que como Contratos Coativos que são, a vontade do contratante é mínima (ou nenhuma) pelo que o Código de Defesa do Consumidor - com todas suas regras como inversão do ônus da prova (art.6), proteção contra cláusulas abusivas (art. 51), interpretação favorável ao aderente (art. 47 e mesmo 423 do Código Civil), responsabilidade objetiva (Código Civil art. 927 § único) etc etc etc – deve ser aplicadíssimo a estas relações, bem como todos efeitos que a Boa-fé Objetiva, Deveres Anexos e a Função Social trazem na esteira da Constitucionalização do Direito Civil!
Se o contratante/consumidor não teve a liberdade para discutir e mesmo recusar a contratação, que tais contratos sejam claros, transparentes e sempre fiscalizados pelas pessoas competentes como o Ministério Público, Procons, Associações de Classe etc. Quem aufere o bônus de contratar fugindo das rígidas normas de Direito Tributário (Anterioridade por exemplo), que assuma o ônus da proteção ao consumidor e hipossuficiente como acima citado!
Louva-se, portanto, o Direito na socialização, promoção e funcionalidade de efetivamente realizar a concretização dos objetivos sociais e da pessoa humana, ajustados à filosofia político-constitucional e consolida avanços normativos e teóricos que, se bem compreendidos e aplicados pelos operadores jurídicos, farão realidade referidas metas, valendo destacar, no art. 3º, I, CF/88, a finalidade de construir uma sociedade livre, justa e solidária.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALEXY, Robert. Constitutional rights, balancing and rationality. Ratio Juris, v. 16, n. 2, p. 131-140, jun. 2003. Tradução para fins acadêmicos de Menelick de Carvalho Netto.
ALMEIDA, Renata Barbosa. FIUZA, César. RIBEIRO, Gustavo Pereira Leite. Princípio da Autonomia Privada: para uma visão psicanalítica do fenômeno contratual.In: Fiuza, César; Sá, Maria de Fátima de; Naves, Bruno Torquato de Oliveira (org.) Direito Civil Atualidades III. Belo Horizonte: Del Rey, 2009.
CHAVES, Ricardo Lebourg dos Reis. Direito Civil Constitucional.2.ed. Belo Horizonte: Atualizar, 2009.
COELHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de direito tributário brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 1999.
DWORKIN, Ronald. O Império do direito. Trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
FIUZA, César. Direito Civil. Curso Completo. 14.ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2010.
GODOI, Marciano Seabra de. OLIVEIRA, Pablo Henrique de. Empréstimo Compulsório. Sistema Tributário Nacional na jurisprudência do STF. São Paulo: Dialética, 2002.
GÜNTHER, Klaus. Teoria da argumentação no direito e na moral: justificação e aplicação. Trad. Cláudio Molz. São Paulo: Landy, 2004.
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. V. 1. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.
MACEDO, Humberto Gomes.
As cláusulas gerais do código civil e seu papel na nova hermenêutica civil-constitucional. In: MACEDO, Humberto (Org.). A efetivação do Direito civil-constitucional. Temas e tendências. Curitiba: Bio Editora, 2007.OLIVEIRA, Regis Fernandes de. Curso de direito financeiro. 2.ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008.
PIERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil: introdução ao direito civil constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.
TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil. 3.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004.
RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2002. 701 p.
RESENDE. Flávia Vieira de. A Etica como origem e fim do direito. Revista Meritum. Revista de direito da FCH/FUMEC.v. 3, p. 333-351, 2008.
SÁ, Maria de Fátima Freire de. Biodireito e direito ao próprio corpo: doação de órgãos, incluindo o estudo da Lei n. 9.434/97, com as alterações introduzidas pela Lei. 10.211/01.2.ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003.
VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil. Teoria Geral das Obrigações e eoria Geral dos Contratos. 6.ed. São Paulo: Atlas, 2006.
Notas
- Aqui tratamos como expressões gêmeas univitelinas a "Publicização do Direito Privado" e a "Constitucionalização do Direito Civil".
- AGRAVO N° 1.0450.08.005844-6/001 - RELATOR: EXMO. SR. DES. ROGÉRIO MEDEIROS - ACÓRDÃO - Vistos etc., acorda, em Turma, a 14ª CÂMARA CÍVEL do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, incorporando neste o relatório de fls., na conformidade da ata dos julgamentos e das notas taquigráficas. Belo Horizonte, 03 de julho de 2008.
- Como outro exemplo de interpenetração de normas do Direito Público e Privado temos o próprio Código de Defesa do Consumidor. Como bem citado por Venosa (2006:369): "A lei do consumidor é exemplo claro do desaparecimento da utilidade da divisão clássica entre privado e público. Hoje, mais do que ontem, os ramos interpenetram-se".
- O princípio e finalidade devemos tomar aqui no sentido do vocábulo grego Arché, significando que a Ética é o início e o fim do direito. É o seu elemento constitutivo, pois ela perpassa todo o jurídico e ainda a sua teleologia, pois é sempre o fim para onde o Direito deve voltar-se.
- "O empréstimo compulsório não é tributo, e sua arrecadação não está sujeita á exigência constitucional de prévia autorização orçamentária"
- Acórdãos: RE-ED 447536 / SC - Relator(a): Min. CARLOS VELLOSO, DJ 26-08-2005, EDcl no RE n.º 456.048/SC, Rel. Min.Carlos Velloso, DJ de 06.09.2005, e Decisões monocráticas: AG n.º 225.143/SP, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ de 23.02.1999; RE n.º 207.609/DF, Rel. Min. Néri da Silveira, DJ de 19.09.1999, RE n.º 424.664/SC, Rel. Min. Cézar Peluso, DJ de 04.10.2004, RE n.º 330.353/RS, Rel. Min. Carlos Brito, DJ de 10.05.2004, AG n.º 409.693/SC, Rel. Min. Cézar Peluso, DJ de 19.05.2004, AG n.º 480.559/SC, Rel. Min. Cézar Peluso, DJ de 19.05.2004, RE n.º 488.200/MS, Rel. Min. Eros Grau, DJ de 13.09.2006, RE n.º 484.692/MS, Rel. Min. Eros Grau, DJ de 29.05.2006, REn.º 464.952/MS, Rel. Min.ª Ellen Gracie, DJ de 23.03.2006).
- Aqui discordamos do Mestre pois nos Contratos de Adesão ainda existe a pequena liberdade de se aderir ou não ao contrato ( Código de Defesa do Consumidor, art. 54), liberdade que apesar de mínima, não vemos nos Contratos Coativos.
- BERLIRI, Antonio. Principi de diritto tributário. 2.ed. Milão: Giuffré, 1967, v.1.
- OLIVEIRA (2008:168)
- Art. 54 CDC (8.078/90) - Contrato de adesão é aquele cujas cláusulas tenham sido aprovadas pela autoridade competente ou estabelecidas unilateralmente pelo fornecedor de produtos ou serviços, sem que o consumidor possa discutir ou modificar substancialmente seu conteúdo.
- Homem Médio é o autor principal da Boa-fé Objetiva. É aquele que o juiz toma como paradigma para decidir as controvérsias contratuais observando-se um Padrão de Conduta Comum.