4 UMA NOVA ABORDAGEM SOBRE O PODER DE POLÍCIA
Embora seja comum a associação da palavra polícia com a idéia de força, de poder repressivo do Estado, a origem do vocábulo remonta à antiguidade clássica, quando então designava todas as atividades da cidade-estado.
"A expressão, ligada etimologicamente ao vocábulo política, pois ambas vêm do grego polis (= cidade, Estado), indicou entre os antigos helênicos, a constituição do Estado, o bom ordenamento", ensina Cretella Júnior (1999, p. 521).
Durante a Idade Média, os soberanos exerciam o jus polititiae, relacionado à boa ordem da sociedade civil sob autoridade do Estado. Note-se, entretanto, que em tal período esse poder era ilimitado e o ordenamento da sociedade não raramente era concretizado de forma abusiva.
A locução poder de polícia (police power) foi utilizada pela primeira vez nos Estados Unidos, notabilizando-se após o julgamento do caso Brown x Maryland, em 1827, e designava "o poder dos Estados da federação norte-americana de editar leis limitadoras de direitos, em benefício da coletividade" (Pessoa, 2003).
Em razão dessa variação de significado que o termo sofreu historicamente e por ter prevalecido a associação do mesmo a um Estado opressor e antidemocrático, alguns doutrinadores iniciam a discussão acerca da nova postura estatal, quando do exercício da atividade administrativa denominada poder de polícia, defendendo a mudança de terminologia, por entenderem inadequada aos novos tempos.
Verifica-se na obras recentes sobre a matéria denominações como poder ordenador, poder regulador e atividade interventora.
Sundfeld (2003, p. 20) sugere a expressão administração ordenadora, que conceitua como "a parcela da função administrativa, desenvolvida com o uso do poder de autoridade, para disciplinar, nos termos e para os fins da lei, os comportamentos dos particulares no campo de atividades que lhes é próprio".
Para o autor, a locução poder de polícia comporta uma carga negativa, que ultrapassa o real sentido do termo que consiste em aplicar as leis reguladoras dos direitos.
Bandeira de Melo (2007, p. 791) também não concorda com o termo, em razão de englobar "sob um único nome, coisas radicalmente distintas, submetidas a regimes de inconciliável diversidade: leis e atos administrativos", embora reconheça que continuará a usá-lo em sua obra, quando relacionado ao seu significado mais abrangente (ao sentido estrito prefere referir-se como polícia administrativa).
Resta evidente que a expressão poder de polícia remonta ao tempo do Estado Autoritário, período em que tal atividade confundia-se com o poder do soberano, e que "significava não só um poder ilimitado, mas resumia o conjunto da atuação do Estado" (Pessoa, 2003, p. 491).
A expressão também pode conduzir o leigo a associá-la com a atividade da polícia judiciária, que se diferencia daquela por atuar na esfera do direito processual penal.
Cumpre salientar, entretanto, que mais importante do que a questão terminológica é a nova abordagem que se deve dar ao tema.
A atividade da Administração Pública de restringir direitos individuais, impondo atuações negativas ou positivas aos cidadãos, deve ser discutida em face da nova configuração do Estado contemporâneo.
Conforme já relatado, o Estado atual ampliou suas funções, abarcando um número considerável de direitos a proteger, sobretudo após o advento do chamado Estado Democrático e Social de Direito.
As idéias neoliberais fizeram renascer um modelo de Estado em que prevalecia a proteção dos interesses econômicos em detrimento do interesse social, um Estado que devia intervir o mínimo possível na vida privada, favorecendo assim a atividade capitalista.
Em contraposição à política neoliberal, surgiu nos países desenvolvidos – e hoje é o modelo que se busca alcançar nas sociedades modernas – o chamado Estado do Bem Estar Social ou simplesmente Estado Social, que adotou uma nova postura em relação à proteção dos interesses sociais.
Moraes (2002, p. 117), ressalta que o Banco Mundial, um dos organismos que mais contribuiu para a implantação daquele modelo neoliberal, sobretudo nos países em desenvolvimento, em seu Relatório do ano de 1997, já se posicionava no sentido de rever essa atuação voltada para os interesses do mercado e do capital, senão vejamos:
Este relatório mostra que o fator determinante por trás desses acontecimentos é a eficiência do Estado. Um Estado eficiente é vital para as provisões dos bens e serviços – bem como das normas e instituições – que permitem que os Estados floresçam e que as pessoas tenham uma vida mais saudável e feliz (...) A nova mensagem é um pouco diferente: o Estado é essencial para o desenvolvimento econômico e social, não como promotor direto do crescimento, mas como parceiro, catalisador e facilitador.
Esse novo Estado, portanto, tem a perspectiva de valorizar o interesse de toda sociedade em detrimento de direitos isolados, e está comprometido com a efetivação dos direitos fundamentais (com destaque para direitos difusos e coletivos, também chamados de terceira geração), passando a atuar de forma positiva, e não somente abstendo-se de agir, para a concretização de tais fins.
Desse modo, a Administração Pública moderna, no exercício de toda e qualquer atividade, seja na prestação de serviços públicos ou no exercício do poder de polícia, deve se pautar nas diretrizes desse modelo estatal desejado, respeitando direitos e garantias fundamentais.(4)
Assim, é notório que:
A função de garantia do Estado contemporâneo emerge de sua consolidada obrigação constitucional de protagonizar a efetivação de um extenso catálogo de direitos fundamentais (...). Nesse cenário emerge ''o direito fundamental a uma boa administração'', previsto no art. 41 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Européia (Oliveira; Schwanka, 2008).
Sob essa nova ótica, a atividade de polícia administrativa, deveria adquirir certo destaque uma vez que consiste justamente na intervenção estatal na esfera particular, privando o indivíduo de exercer certos direitos, em prol do interesse público, ordenando, assim o cotidiano da cidade, de modo a garantir a satisfação geral.
Nesse aspecto, deve-se destacar que nas sociedades contemporâneas predomina o modo de vida concentrado nas grandes cidades – conseqüência do modelo capitalista de desenvolvimento –, que vem crescendo desenfreadamente, causando problemas que estão deteriorando a qualidade de vida da população, como a degradação do meio ambiente, a violência, a falta de civilidade nas relações pessoais.
Diante de tais fatos, a Administração cada dia com mais freqüência deverá resolver questões que envolvem o direito individual de um lado e o interesse coletivo de outro, como por exemplo, o direito de propriedade e a função social da propriedade, o direito à liberdade de manifestação e o direito ao sossego e à tranqüilidade, o direito de explorar livremente uma atividade econômica e o direito de ter uma paisagem preservada.
E a atividade de polícia, cumprindo a sua função de manter a ordem pública, deverá buscar atuar de forma mais eficiente e tendo em vista os anseios dessa sociedade que clama por soluções que viabilizem uma convivência mais justa, tranqüila e digna entre seus indivíduos.
Sundfeld (2003, p. 57) encontra mais um motivo para rever a atividade poder de polícia:
Hoje em dia se exige do titular de direito subjetivo que, usando da posição que este lhe assegura, colabore com a construção de uma nova realidade. Em uma frase, à administração ordenadora não basta que este indivíduo não perturbe, é mister que este indivíduo ajude, na medida das possibilidades propiciadas pelo exercício de seu direito"
O exemplo que melhor se adapta a essa nova visão do poder de polícia, proposta pelo autor, é o da função social da propriedade, prevista no art. 5º, XXIII, da Constituição Federal, uma vez que ao proprietário será imposta, pela Administração, uma obrigação positiva, de atuar conforme a previsão constitucional (arts. 182, § 2º e 186, CF), em prol do interesse coletivo, caso pretenda manter-se no exercício do direito.
Vê-se, então, que a atividade da Administração Pública no sentido de impor condições ao exercício de direitos individuais – seja estabelecendo limites (obrigação de não fazer), encargos (obrigação de fazer) ou sujeições (obrigação de suportar) –, constitucionalmente protegidos, persegue (ou deveria perseguir, para ser legítima) um interesse que é de todos: garantir, em última análise, a paz e a harmonia da vida em sociedade.
Embora ao longo do processo histórico esses objetivos tenham sido desvirtuados, em razão do modelo estatal que então predominava, hoje, diante da tentativa de consolidação de um Estado Social, a Administração só tem esse caminho a trilhar, ou seja, exercer o poder de polícia dentro de tais parâmetros.
Por derradeiro, faz-se mister ressaltar que o exercício do poder de polícia, sob esse novo enfoque, jamais poderá afastar-se da observância dos princípios constitucionais, devendo o administrador estar atento sobretudo para não exceder os limites de tal atividade, respaldando-se sobretudo na legalidade, proporcionalidade e razoabilidade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Evidentemente o termo poder de polícia não é o mais adequado para designar a atividade da Administração Pública de agir sobre os interesses individuais, por conduzir a idéias de autoritarismo e arbitrariedade, sobretudo em um país como o Brasil que em tempos recentes passou pela experiência de uma ditadura militar.
A proposta de um novo enfoque para o tema, levantada por alguns doutrinadores, tem fundamento e deve continuar a ser debatida no meio jurídico, em razão das mudanças ocorridas e exigidas a partir da instalação do Estado Social.
Contudo, não será a mera troca de expressão que realmente importará nesse novo contexto social, mas o compromisso com novas atitudes, tanto da Administração Pública como da sociedade em geral.
A vida nas grandes cidades há algum tempo vem tornando-se insuportável em razão de problemas relacionados ao trânsito, à poluição sonora e visual, às agressões ambientais, à falta ou péssimas condições de moradia, enfim, a questões que afetam o cotidiano de seus habitantes.
O poder de polícia tem importante função nesse aspecto, pois através dessa atividade o Poder Público vai estabelecer limites aos direitos individuais e de propriedade que estejam causando prejuízo à coletividade.
Agirá nesse sentido ao conter a construção desenfreada de grandes edifícios em cidades já sufocadas pelo calor e pela poluição, ao manter livres as calçadas públicas para a locomoção dos transeuntes, ao organizar as paradas de táxis e ônibus da cidade, ao impedir a realização de festas ou qualquer outra manifestação que incomode a vizinhança com o alto volume do som, entre outros.
A omissão do Estado na resolução de questões como essas, que parecem de pouca importância, causa o caos urbano, a desorganização do trânsito e da cidade como um todo, permite o abuso do exercício de direitos pelo particular, gera sensação de impunidade, impede o exercício pleno da cidadania e a manutenção da paz social.
Assim, o poder conferido à Administração Pública de organizar a vida em sociedade, o cotidiano dos habitantes de uma cidade, intervindo quando necessário para manter a ordem e a estabilidade social, adquire uma importância cada vez maior nesses novos tempos, em que o Estado ampliou suas funções, passando a assumir um papel de garantidor dos direitos fundamentais (que engloba, também, a elaboração de políticas públicas e a prestação de serviços públicos voltados para esse fim).
Hoje, o Estado denominado Social deve estar compromissado não só com a tutela dos direitos individuais, como ocorreu durante o Estado Liberal – em que este deveria se abster de atuar para não invadir a esfera individual de direitos e liberdades – mas ir além, e garantir proteção também aos chamados direitos de segunda e terceira geração, que demandam do Poder Público uma atuação positiva.
É próprio da natureza humana o estabelecimento do conflito, da divergência, sobretudo nas sociedades modernas organizadas em grandes cidades, regidas pelos ditames do capitalismo e do individualismo, em que a busca da satisfação pessoal prevalece sobre a manutenção do bem estar coletivo. Nesse diapasão, fica evidente a importância da intervenção estatal na busca de soluções que visem a proteção do bem comum.
Parece contraditório falar que a Administração Pública estará tutelando direitos fundamentais durante o exercício do poder de polícia, uma vez que este consiste na imposição de limites à liberdade e à propriedade dos indivíduos, mas através dessa atividade o Poder Público, em detrimento de uns, protegerá direitos e interesses comuns a toda coletividade.
Cumpre salientar, por fim, que é na observância a certos princípios, principalmente da legalidade e da razoabilidade, que se fará a diferença entre uma prática administrativa justa e condizente com os direitos humanos e o exercício arbitrário e abusivo do poder.
São esses novos horizontes que a Administração deve vislumbrar e seguir, ao atuar na esfera da liberdade e da propriedade dos indivíduos.
NOTAS
(3) Sobre princípios, eis a lição de Barroso (2006, p. 29): "Os princípios constitucionais, portanto, explícitos ou não, passam a ser a síntese dos valores abrigados no ordenamento jurídico. Eles espelham a ideologia da sociedade, seus postulados básicos, seus fins. Os princípios dão unidade e harmonia ao sistema, integrando suas diferentes partes e atenuando tensões normativas. De parte isto, serem de guia para o intérprete, cuja atuação deve pautar-se pela identificação do princípio maior que rege o tema apreciado, descendo do mais genérico ao mais específico, até chegar à formulação da regra concreta que vai reger a espécie (...)".
(4) Em interessante artigo que trata sobre o direito à cidade como direito fundamental, Saule Júnior (2005) esclarece que "para que haja cidades justas, humanas, saudáveis e democráticas, é preciso incorporar os direitos humanos no campo da governança das cidades, de modo que as formas de gestão e as políticas públicas tenham como resultados de impacto a eliminação das desigualdades sociais, das práticas de discriminação em todas as formas da segregação de indivíduos, grupos sociais e comunidades, em razão do tipo de moradia e da localização dos assentamentos em que vivam".
REFERÊNCIAS
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