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Júri Nardoni é nulo.

Sobre o sigilo dos votos dos jurados e a imparcialidade no julgamento

02/04/2010 às 00:00
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No dia 28/03, às 19h30, durante o programa Domingo Espetacular da TV Record, menos de 2 dias após a proclamação da condenação de Alexandre Nardoni e Ana Jatobá, jurada participante do Conselho de Sentença concedeu entrevista em que, entre outros pontos, declarou seu voto, mais que isso manifestou seu conhecimento de que todos os jurados desejavam votar pela condenação e ainda que a razão fundamental de sua decisão foi ter uma sobrinha em idade próxima a da vítima.

A Constituição Federal proclama de forma bastante clara como garantia fundamental o sigilo das votações do júri, o que implica na incomunicabilidade dos jurados durante a sessão de julgamento e na não declaração do voto pelos jurados.

Visando garantir a totalidade do sigilo das votações é que o Código de Processo Penal estabelece que após colhidos 4 votos, de 7 possíveis, em favor de qualquer das partes, cessa a votação. A regra é orientada para a preservação do estabelecido na CF quanto ao sigilo das votações, para que se tenha plena convicção da imparcialidade do julgamento.

No caso concreto, a declaração de voto em rede nacional de televisão representa trágico desfecho para um caso em que a ação dos meios de comunicação de massa a olhos vistos desde o princípio contaminou a imparcialidade dos jurados.

Não se pode cogitar de imparcialidade de julgamento em que enquanto os jurados votavam as pessoas, centenas, na porta do fórum, gritavam o nome da vítima e palavras de ordem em prol da condenação. Não há possibilidade de cogitar da imparcialidade de julgamento em que não foi adotada a cautela de impedir o acesso de populares às proximidades do fórum, em caso de extremada repercussão, situação que possibilitou um dos mais vergonhosos espetáculos vistos, as agressões físicas contra o Advogado dos acusados, profissional no exercício de sua legítima atividade, com status constitucional de imprescindível para a administração da Justiça.

As manifestações públicas em frente ao fórum chegaram continuamente aos ouvidos dos jurados, contaminando de forma evidente o veredicto, eis que não se teve a cautela de isolar a área, conforme o sensacionalismo que cercava o caso exigia.

De forma complementar, no aspecto da imparcialidade, é de se observar que questionamentos dos jurados, durante os depoimentos, foram encaminhados por escrito ao Magistrado, que selecionava os que formulava. É esperado que os não formulados fossem manifestações de pré-julgamento por quem os elaborou, por tal razão a lei não fixa que deve se utilizar dito procedimento, mas apenas que o jurado deve formular sua pergunta por intermédio do juiz, ou seja, pergunta em alto e bom som ao Magistrado para que este repergunte, para que haja controle pelas partes da imparcialidade do conselho de jurados.

Não cabe questionar se os réus são culpados ou inocentes, mas afirmar que se teve rara oportunidade de transmitir mensagem social de respeito democrático e ao Estado de Direito, porém se realizou julgamento sob pressão da opinião pública, em agressão aos mais importantes elementos estruturais do júri.

Não se argumente que a declaração da jurada foi posterior ao julgamento, eis que a legislação brasileira impõe a impossibilidade de qualquer declaração de voto, pois até o juiz é impedido de revelar mais que os votos necessários para chegar ao veredicto (4), sendo o sigilo de caráter absoluto. Não pode o jurado em momento algum revelar o seu voto, em especial fazê-lo pela mídia, manifestando conhecimento do voto pela condenação de todos os jurados.

A propósito, convém destacar que desde que lancei a arguição de nulidade do julgamento em questão, por violação da imparcialidade dos jurados, momentos após a acima mencionada divulgação da entrevista da jurada, várias manifestações surgiram em todo território nacional, muitas de importantes juristas nacionais, aderindo à minha inicial posição, enquanto as críticas têm se centrado justamente no aspecto de que a manifestação de voto da jurada foi posterior à proclamação do resultado, o que com a devida vênia dos que tem manifestado este pensamento, mas é absolutamente açodado e distante da cognição sobre os aspectos essenciais em que se estrutura o Tribunal do Júri.

A estruturação moderna do Júri se deu na Inglaterra, após a Revolução Gloriosa, com a função de conferir concretude à idéia de imparcialidade, agregando, para o atingimento deste objetivo, uma série de predicados, como o julgamento por jurados não ligados funcionalmente ao Estado, bem como o sigilo das deliberações dos jurados, entre outros pontos tendentes a manter os julgadores longe de influências que poderiam conduzir à deliberação com base em aspectos que não as provas do processo.

Sob o influxo das idéias iluministas é que o júri se expandiu para os diferentes países, tão logo estes proclamaram o modelo republicano. No Brasil, como garantia estrutural do júri, no intuito da preservação da imparcialidade, sempre se fez presente o sigilo das votações. Observe-se que o sigilo é DAS votações e não NAS votações, justamente porque não fica adstrito ao momento da colheita do voto, mas tem caráter absoluto.

A quebra posterior do sigilo por jurado, em especial em entrevista pela televisão, como ocorrido no caso específico em comento, é fato extremamente grave, passível de discussão inclusive sob o ponto de vista da ética da imprensa.

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Ocorre que diferente do que precipitadamente se poderia imaginar, o sigilo das votações não serve tão somente a proteger ao jurado, individualmente considerado quando manifesta a sua opinião sobre o caso concreto, mas protege a todo o Conselho de Sentença e à própria instituição do júri.

Observe-se que a quebra do sigilo por um jurado profana o silêncio de todos os demais e, no campo dos exemplos, conduzindo ao extremo, pode colocar em risco real os integrantes do júri. Imagine-se que um acusado de crime contra a vida, ligado à perigosa organização criminosa, que tenha ameaçado matar quem lhe seja contrário, é condenado por maioria de 4 votos a 3 votos e os 3 que votaram pela absolvição, após o julgamento concluído, declarem os seus votos. Neste exemplo, imediatamente estará colocando-se uma arma apontada para a cabeça dos 4 jurados que votaram pela condenação.

O sigilo nas votações, ademais, protege à própria instituição do júri, impedindo, por exemplo, que um jurado passe a ter interesse na causa para obtenção de eventual promoção pessoal posterior pela aparição em veículos de comunicação de massa. Lembre-se do rumoroso caso O.G. Simpson nos Estados Unidos, em que o jurado foi afastado porque se constatou que havia, antes do júri, negociado, mediante paga, publicações posteriores à proclamação do resultado, com veículos de comunicação.

Efetivamente, permitir a quebra do sigilo após as votações é como "dar um cheque em branco" para que seja possível permear os julgamentos mais rumorosos de interesses econômicos de meios de comunicação de massa, que podem, como o exemplo acima demonstra, já ocorrido, "financiar" o jurado, para depois obter detalhes do julgamento. Este "financiamento" seguramente representa uma abertura para o acesso de qualquer pessoa ao jurado com o intuito de manipulá-lo e com isso romper o caráter de imparcialidade da instituição do júri e controlar se o investimento foi bem feito pela exigência de declarações públicas posteriores de voto para controlar se efetivamente a pessoa votou conforme havia se comprometido.

Deixada de lado toda e qualquer hipocrisia que poderia incidir sobre o debate da questão, sem lançar qualquer acusação precipitada, situando a temática apenas no campo teórico e da dúvida, mas não se tem qualquer segurança que a entrevista tratada no presente texto decorreu de simples manifestação de opinião por participante de um rumoroso júri, ou se houve na mesma interesse reflexo na declaração por quem a realizou, até mesmo interesse este de natureza econômica .

Mais que isso, a jurada ao declarar na entrevista em comento que previamente sabia que todos os jurados votariam pela condenação revela indisfarçável indício de que houve quebra da incomunicabilidade dos jurados, outro dos elementos estruturais centrais do Tribunal do Júri brasileiro.

Somente anulando o julgamento, com todos os ônus advindos, e realizando-o novamente, desta feita com garantia de imparcialidade, constrói-se, a partir da terrível brutalidade contra Isabela, não um cenário de vingança, nos moldes do praticado na Idade Média, mas manifestação de respeito à sua memória, com a edificação de algo positivo para a sociedade brasileira, a inatacabilidade das bases em que se funda o Estado Democrático de Direito.

Não se pode aceitar que a condenação de dois acusados, desejada por grande parte da opinião pública, como clara manifestação da comum confusão social do sentimento de justiça com o de vingança, seja maior que as bases estruturantes do Estado Republicano e Democrático brasileiro, admitindo-se sua vulneração para satisfazer a posição que a grande mídia firmou sobre os fatos em julgamento, mesmo antes que o júri tivesse iniciado.

Nessa ótica, a anulação do julgamento Nardoni se impõe como sonora mensagem social de que o Estado Democrático de Direito é o bem mais precioso que o cidadão brasileiro possui e, portanto, inatacável.

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Sobre o autor
Adel El Tasse

Professor de Direito Penal em cursos de graduação e pós-graduação, professor na Escola da Magistratura do Estado do Paraná e no Curso Cers, mestre e doutor em Direito Penal, coordenador no Paraná da Associação Brasileira dos Professores de Ciências Penais e do Núcleo de Estudos Avançados em Ciências Criminais e membro do Conselho de Direitos Humanos do Município de Curitiba.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

EL TASSE, Adel. Júri Nardoni é nulo.: Sobre o sigilo dos votos dos jurados e a imparcialidade no julgamento. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2466, 2 abr. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14632. Acesso em: 24 abr. 2024.

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Título original: "Júri Nardoni é nulo".

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