Sumário:1. Considerações preliminares. 2. O princípio da estrita legalidade como estabilizador das relações jurídicas. 3. Obrigatoriedade de instituição de obrigação tributária acessória por meio de lei em sentido estrito. Da inexigibilidade de DIMOF das instituições financeiras. Impossibilidade de instituição de obrigação tributária acessória por instrução normativa. 5. Do não cabimento de multa por norma infralegal. 6. Conclusão.
1. Considerações preliminares.
O princípio da legalidade, surgido a partir da criação dos modernos Estados de Direito, revela-se como verdadeiro mecanismo, garantia, que o contribuinte possui contra o arbítrio estatal, segundo o qual "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei" (art. 5º, II, CF/88).
Em outras palavras, qualquer intervenção estatal sobre a propriedade ou a liberdade das pessoas só pode advir da expressa previsão legal. Mas nem sempre foi assim.
No passado, conforme ensinamentos do ilustre professor Roque Carrazza [01] "a tributação era realizada de modo tirânico: o monarca ‘criava’ os tributos e os súditos deviam suportá-los". E conclui: "mesmo mais tarde, com o fim do feudalismo, quando ela passou a depender da aprovação dos ‘Conselhos dos Reinos’ ou ‘Assembléias Populares’, os súditos não ficaram amparados contra o arbítrio". Com efeito, os contribuintes daquela época sofreram demasiadamente com a "tributação sem lei", para se chegar até os dias atuais.
Não obstante todo o avanço legislativo alcançado pelos contribuintes, sobretudo com o advento da Constituição Federal e as instituições dos direitos e garantias fundamentais dos indivíduos, há casos, porém, que o Estado persiste em sobrepujar o princípio da estrita legalidade, editando atos infralegais para exigir o cumprimento de obrigações tributárias acessórias, como no caso de obrigatoriedade da Declaração de Informações sobre a Movimentação Financeira à Receita Federal, impostas às instituições financeiras, mediante instrução normativa.
Registre-se que o intuito do Fisco com a exigência da Declaração de Informações sobre a Movimentação Financeira – DIMOF pelas instituições financeiras foi, em verdade, obter informações quanto às movimentações financeiras realizadas pelos contribuintes, objetivando analisar seu patrimônio para efeito de fiscalização da tributação, assim como outrora o fez com os dados obtidos através do recolhimento da extinta Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira – CPMF.
Todavia, a tentativa desenfreada do Fisco obter as requestadas e preciosas informações quanto às movimentações financeiras praticadas pelos contribuintes não pode ser justificativa para imposição de obrigação acessória, como é o caso da obrigatoriedade na entrega da DIMOF pelas instituições financeiras, sem que, para tanto, houvesse lei em sentido estrito regulando dita compulsoriedade, sob pena flagrante violação aos princípios da legalidade e segurança jurídica, como veremos.
2. O princípio da estrita legalidade como estabilizador das relações jurídicas.
No campo tributário, o princípio da estrita legalidade se mostra como um dos pilares que sustenta a relação jurídica tributária existente entre Estado e contribuinte, pois deve haver um mínimo de segurança jurídica, sem a qual sucumbiria esta relação harmoniosa, a fim de que o contribuinte não se submeta ao arbítrio das pessoas políticas.
Neste contexto, verifica-se que a exação imputada pelo Poder Executivo, sem a participação daqueles que editam as leis, caracteriza um total afronto aos regramentos estatuídos no sistema tributário nacional, violando flagrantemente o princípio da estrita legalidade tributária.
E não é outro o escólio de Hugo de Brito Machado [02]:
"As imposições tributárias deverão estar autorizadas em lei, mas a lei é obra do Poder Legislativo, cujo órgão é mais frequentemente e mais desejavelmente um corpo coletivo de base eletiva e de caráter representativo, autorizando a presunção de que são os contribuintes que, indiretamente, consentem essas imposições". (destaque ausente do original)
Como se verifica, o princípio da estrita legalidade, como corolário do princípio da segurança jurídica, se reveste da finalidade de estabilizar as relações jurídicas existentes entre o Estado e o particular, na medida em que almeja os valores de igualdade e justiça através da expressão de vontade geral ou consentimento dos administrados, sufragada pelo ato formal exercida pelos legitimados pelo povo (legisladores), mediante um processo legislativo disciplinado na Constituição Federal.
A relação tributária não implica numa mera relação de poder exercida pelo Estado em desfavor do administrado, sem qualquer previsão normativa legal, mas sim constitui-se numa relação jurídica propriamente dita, onde os atos envolvidos na relação devem estar precisamente disciplinado na lei em sentido estrito, somente podendo alterada por norma jurídica de mesma ou superior hierarquia dentro do nosso ordenamento jurídico.
3. Obrigatoriedade de instituição de obrigação tributária acessória por meio de lei em sentido estrito.
A obrigação tributária acessória constitui-se na compulsoriedade instituída pelo Estado, mediante lei, que, sem conteúdo pecuniário, possui como objeto prestações positivas ou negativas (obrigação de fazer ou de não fazer) destinadas aos contribuintes, visando a arrecadação ou fiscalização de tributos.
A instituição de obrigação tributária acessória, prevista no artigo 113, §2º, do Código Tributário Nacional, estabelece que tal obrigação decorre da legislação tributária, assim entendida com um complexo de normas jurídicas veiculadas através de expressa disposição em lei em sentido formal, sendo descabida sua imposição por atos infralegais, senão vejamos:
Art. 113. A obrigação tributária é principal ou acessória.
...
§ 2º A obrigação acessória decorre da legislação tributária e tem por objeto as prestações, positivas ou negativas, nela previstas no interesse da arrecadação ou da fiscalização dos tributos. (destacamos)
É cediço, portanto, que para que haver a imposição de determinada obrigação tributária acessória, que se descumprida, converte-se em obrigação principal de pagar pecúnia aos cofres públicos (art. 113, §3º, CTN), tem-se como imprescindível a expressa determinação no texto legal. A lei é o instrumento hábil para disciplinar matéria atinente à obrigação tributária acessória.
Por sua vez, o artigo 115, do Código Tributário Nacional, preconiza que:
Art. 115. Fato gerador da obrigação acessória é qualquer situação que, na forma da legislação aplicável, impõe a prática ou a abstenção de ato que não configure obrigação principal.
Como visto, o surgimento de uma obrigação tributária, seja ela principal ou acessória, somente deve decorrer de disposição expressa em lei, a qual inclusive deve descrever pormenorizadamente o fato gerador da respectiva obrigação impondo a realização de certa conduta ou abstenção da prática de determinado ato pelo contribuinte.
4. Da inexigibilidade de DIMOF das instituições financeiras. Impossibilidade de instituição de obrigação tributária acessória por instrução normativa.
Mediante a instituição da vergastada Instrução Normativa nº 811/2008, foi criada uma obrigação tributária acessória, consistente na entrega de DIMOF à Receita Federal do Brasil, destinada a todas as instituições financeiras, fixando inclusive multa em caso de não inobservância ou cumprimento a destempo.
Vejamos o preconizado no artigo 1º do referido dispositivo normativo infralegal:
Art. 1º Instituir a Declaração de Informações sobre Movimentação Financeira (Dimof), cuja apresentação é obrigatória para os bancos de qualquer espécie, cooperativas de crédito e associações de poupança e empréstimo.
Ora, à luz do princípio da estrita legalidade, somente lei – em sentido estrito – poderá instituir obrigação tributária acessória. A obrigação acessória, que eventualmente poderá ser convertida em obrigação principal, caso descumprida, deverá necessariamente veiculada mediante lei, ou seja, espécie normativa advinda do poder legislativo e que preencha todos os requisitos para sua validade.
O significado do instituto jurídico da Instrução Normativa consiste no ato administrativo para complementar as determinações contidas nas leis (art. 100, I, CTN), interpretando-as para o bom esclarecimento aos contribuintes, ou seja, a função precípua da Instrução Normativa é esclarecer eventual entendimento destoante de determinada lei. Nenhuma relação tem com a instituição de obrigação tributária acessória ou fixação de penalidades.
Não pode uma norma infralegal, como é o caso da transcrita instrução normativa, versar sobre a criação de uma obrigação tributária acessória, inclusive fixando multa pecuniária, sob pena de ferir o princípio da estrita legalidade, preconizado no artigo 113, §2º, do CTN.
Corroborando com este entendimento, segue algumas jurisprudências pátrias:
TRIBUTÁRIO. CONSTITUCIONAL. ILEGITIMIDADE PASSIVA DA AUTORIDADE COATORA. PRINCÍPIO DA LEGALIDADE. INSTITUIÇÃO DE OBRIGAÇÃO TRIBUTÁRIA ACESSÓRIA MEDIANTE INSTRUÇÃO NORMATIVA. APELAÇÃO E REMESSA OFICIAL NÃO PROVIDAS.
1. Não há falar em ilegitimidade passiva da autoridade coatora, pois o Delegado da Receita Federal em Varginha - MG é o responsável pela autuação e lançamento fiscal, referente à multa decorrente do atraso na apresentação das Declarações de Contribuições e Tributos Federais - DCTF.
2. Esta matéria já foi tratada diversas vezes por esta egrégia Corte que se manifestou no sentido de que ofende o princípio da legalidade a instituição de obrigação tributária acessória mediante Instrução Normativa, por delegação do Secretário da Receita Federal, através de Portaria baixada pelo Ministério da Fazenda.
3. Apelação e Remessa oficial não providas.
4. Peças liberadas pelo Relator em 11/03/2008, para publicação do acórdão. (TRF 1ª Região. AMS 199938000365468/MG. 7ª T. Rel. JUIZ FEDERAL RAFAEL PAULO SOARES PINTO (CONV.). e-DJF1 DATA:28/03/2008 PAGINA:438)
TRIBUTÁRIO. MULTA POR DESCUMPRIMENTO DE OBRIGAÇÃO ACESSÓRIA – APRESENTAÇÃO DE DTCF - INVALIDADE.
1. Obrigação tributária acessória precisa estar prevista em lei, no sentido formal e material, não bastando simples instrução normativa para sua criação, em razão do princípio da legalidade do art. 5º, II, da Constituição da República.
2. A obrigação de apresentar DCTF não está prevista em nenhuma norma com estatura ao menos de lei ordinária, mas apenas e tão somente em instruções normativas.
3. A IN 129/96 foi editada com base em delegação de competência legislativa expressa no art. 5º do DL2.214/84, que, entretanto, perdeu seu vigor 180 dias após a promulgação da Constituição de 1988, por força do art. 26, I, do ADCT/88.
4. Apelação e remessa oficial tida por interposta improvidas. (TRF 1ª R. – AC 200501990328691 – MG – 8ª T. – Rel. Juiz Conv. CÉSAR AUGUSTO BEARSI – DJ DATA:20/01/2006 PAGINA:123). (destaque ausente do original)
Os julgados trazidos à baila são perfeitamente aplicáveis ao caso em tela, uma vez que se referem à impossibilidade de instituição de obrigação tributária acessória por norma infralegal (Instrução Normativa), o que viola fatalmente o princípio da estrita legalidade, nos termos do artigo 5º, inciso II, da Constituição Federal, bem como o artigo 113, §2º, do CTN.
5. Do não cabimento de multa por norma infralegal.
Por outro lado, a fixação de multa em decorrência de eventual descumprimento de obrigação acessória, só e somente só, poderia ser estabelecida através de lei, em respeito ao princípio da estrita legalidade. Não pode haver penalidade tributária sem lei que a estabeleça. É o que se depreende do artigo 97, inciso V, do CTN, senão vejamos:
Art. 97. Somente a lei pode estabelecer:
...
V - a cominação de penalidades para as ações ou omissões contrárias a seus dispositivos, ou para outras infrações nela definidas; (grifamos)
Neste sentido, é a decisão do Superior Tribunal de Justiça:
PENALIDADE. PRINCÍPIO DA LEGALIDADE.
1. Inviável, por via de Instrução Normativa, ampliar o conteúdo de objetivo punitivo tributário.
2. Qualquer multa por descumprimento de obrigação acessória depende de ter previsão legal.
[...]
6. Recurso especial não-provido. (STJ - PRIMEIRA TURMA - REsp 1035244 / PR - Ministro JOSÉ DELGADO - Data do Julgamento 20/05/2008 - Data da Publicação/Fonte DJ 23.06.2008 p. 1). (destacamos)
Ora, a natureza jurídica das Instruções Normativas não comporta eficácia normativa suficiente para instituir obrigações tributárias acessórias, nem tampouco fixar multa em decorrência de sua inobservância.
6. Conclusão.
Portanto, resta patente que a instituição de qualquer espécie de obrigação tributária acessória, assim como qualquer fixação de eventual penalidade por descumprimento daquela deverá necessariamente advir da lei em sentido estrito, sob pena de padecer de ilegalidade.
Como visto, tais matérias estão adstritas à competência do legislador ordinário, pelo que se mostra absolutamente incabível a aplicação da citada instrução normativa para exigibilidade de DIMOF das instituições financeiras, em face da inexistência de comando legal neste sentido.
Tanto a jurisprudência como a doutrina pátria são enfáticas ao preconizarem a necessidade de lei para tratar de hipótese de obrigação tributária acessória. Tem-se como imprescindível a veiculação mediante lei para instituir obrigação tributária acessória, bem como para cominar penalidades em caso de inobservância, a teor do artigo 113, §2º, combinado com o artigo 97, inciso V, ambos do Código Tributário Nacional.
Destarte, a malsinada Instrução Normativa nº 811/2008, além de ferir o princípio da estrita legalidade, viola os princípios da segurança jurídica, pelo que desestabiliza as relações jurídicas tributárias entre Estado e contribuinte, assim como viola o primado da separação dos poderes, possibilitando a usurpação do poder legiferante pelo Poder Executivo.
Notas
- CARRAZZA, Roque Antônio. CURSO DE DIREITO CONSTITUCIONAL TRIBUTÁRIO. 22. ed. Malheiros: São Paulo, 2006.
- MACHADO, Hugo de Brito. DIREITOS FUNDAMENTAIS DO CONTRIBUINTE E A EFETIVIDADE DA JURISDIÇÃO. Atlas : São Paulo, 2009.