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A investigação de paternidade na reprodução artificial heteróloga

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3 Espécies de Paternidade

A paternidade, no sentido mais amplo do termo, remete à relação existente entre pai e filho.

Tradicionalmente, o vínculo paterno-filial é visto, de forma imediata, como agregado ao elo sangüíneo existente entre duas pessoas.

Ainda nos dias atuais, o vínculo biológico entre ascendente e descendente recebe especial valoração no tocante ao estabelecimento do parentesco.

Com o avanço da biomedicina e dos métodos de reprodução humana medicamente assistida (RA), casais impossibilitados de conquistar a paternidade de modo natural têm recorrido a essas novas técnicas em busca do sucesso no processo da fertilização.

E em razão do desenvolvimento dessas novas técnicas, surgiu uma gama de relações parentais, que até então não eram visíveis. O avanço da ciência, notadamente da biotecnologia, possibilitou, para o fim da procriação, a segregação entre o ato sexual e a reprodução propriamente dita (fertilização). Com isto, estabeleceu-se uma nova relação paterno-filial,

a chamada paternidade institucional, ou seja, a relação existente não entre os doadores do material fertilizante, mas entre o casal encomendante e o embrião, resultante da união dos gametas não pertencentes a ele. [05]

3.2 Paternidade Civil

Merece especial destaque a paternidade civil, representada fundamentalmente pelo instituto da adoção.

Com efeito, o vínculo adotivo, que estabelece o estado ficto de filiação entre duas pessoas geralmente estranhas entre si, pode ser considerado como a paternidade por excelência, na acepção mais pura do termo.

Os pais adotivos o são por verdadeira e legítima escolha, por livre e espontânea vontade, pelo simples desejo de poderem criar, educar, dar amor a pessoa que, geralmente, lhes é estranha. É a expressão do mais puro amor paternal, eis que desvinculado de qualquer vínculo sangüíneo ou biológico, imbuído unicamente do caráter afetivo e humanitário.

3.3 Paternidade Jurídica

Outra espécie de paternidade que pode ser apontada é aquela advinda das chamadas "presunções legais", qual seja, a paternidade jurídica ou presumida. Tais presunções, consagradas pelo sistema codificado de 1916, encontram-se hoje sobremodo mitigadas, tendo em vista a nova ordem jurídica trazida pela Constituição de 1988, bem como pelo ECA, onde se primou pela busca da "paternidade real", em detrimento da "paternidade ficta" ou "presumida".

Segundo entendimento de Belmiro Pedro Welter:

O nascimento dos filhos na constância do matrimônio ou da união estável é tão-somente um indicativo, e não uma prova absoluta da paternidade e da maternidade. [06]

Com efeito, o avanço da biomedicina e a utilização de novas técnicas de investigação de paternidade, como o exame de DNA, permitiu que se alcançasse, com elevado grau de confiabilidade, a verdade real no que tange ao vínculo biológico de filiação.

Ademais, além das novas e avançadas técnicas de investigação de paternidade, capazes de estabelecer com certeza e confiabilidade o vínculo biológico entre pais e filhos, outro aspecto, trazido pela nova ordem jurídica, e que contribuiu sobremaneira para a derrocada das presunções legais da paternidade, foi a extirpação da distinção entre as "espécies" de filiação, garantindo-se igualdade de tratamento a todos os filhos, havidos ou não na constância do vínculo matrimonial.

Neste rumo, presunções como pater is est quem nuptias demonstrant, esculpida pelo art. 340 do Código de 1916, ou mesmo o clássico adágio romano mater certíssima, pater semper incertus, são postas em xeque, levando-se a buscar a paternidade real, seja ela biológica ou socioafetiva, em detrimento da paternidade jurídica, ficta ou presumida.

3.4 Paternidade Socioafetiva

Por fim, cumpre analisar o vínculo paternal afetivo, ou seja, a relação entre pessoas unidas unicamente em função do afeto.

No campo familiar, esta relação de afetividade pode ser notada tanto no plano horizontal (entre homem e mulher), quanto no plano vertical (relação entre padrasto e enteado, por exemplo).

O vínculo afetivo ou sociológico pode ser considerado como a própria razão de existência da família contemporânea. Isto porque, é tão-somente o elo de afeição que mantêm unidos os membros desse grupo familiar, fundado no sentimento de solidariedade, amor e companheirismo, primando pelo auxílio e assistência mútuos.

"Com efeito", assevera Luiz Roberto de Assumpção, "as pessoas se unem em função do afeto, e se desunem quanto este se esvaziar". [07]

Assim como na adoção, a paternidade afetiva ou sociológica é inteiramente espontânea, desprovida de qualquer vínculo sangüíneo. A relação paterno-filial, nestes casos, se estabelece de forma voluntária, opcional, em função do afeto entre os sujeitos, e, por isso mesmo, deve ser considerada a verdadeira e legítima relação paternal em caso de conflitos quanto à determinação da paternidade.


4 A FILIAÇÃO NA REPRODUÇÃO HUMANA MEDICAMENTE ASSISTIDA

Com a evolução da ciência e da biotecnologia, um dos aspectos que mais têm levantado discussões é o que concerne à reprodução humana por métodos "não tradicionais", a chamada reprodução humana medicamente assistida (RA).

Desde a hipótese relativamente "simples" de se assistir em laboratório à fecundação in vitro dos gametas masculino (espermatozóide) e feminino (óvulo), gerando-se assim um pré-embrião, até a complexa (mas viável) possibilidade de se "reproduzir" um ser humano sem a necessidade do gameta masculino, utilizando-se o material genético de duas mulheres, por exemplo, inserindo o material genético de uma célula adulta em um óvulo sem material genético, através da clonagem; todas elas podem ensejar situações cujas conseqüências ainda não foram abarcadas de forma satisfatória pelo ordenamento jurídico pátrio.

Estas e outras técnicas de reprodução humana medicamente assistidas, têm sido objeto de incessantes estudos e discussões no cenário mundial, não só no campo médico-científico, mas também ético, jurídico, religioso e até mesmo filosófico.

É inegável a importância e a contribuição que essas técnicas representam na sociedade contemporânea. Através desses métodos de concepção, muitos casais incapazes de alcançar a fertilização de maneira natural têm obtido resultados satisfatórios na busca pelo sonho de serem pais.

Por outro lado, tais técnicas geralmente são aplicadas não só na ajuda de casais, mas também de forma "unilateral" (família monoparental), inclusive utilizando-se material genético de terceira pessoa (reprodução artificial heteróloga), o que pode gerar dilemas de considerável complexidade.

O século XXI pode ser considerado, notavelmente, o século da biotecnologia. O avanço desta área da ciência, em especial da biomedicina, se, por um lado, tem trazido inúmeros benefícios à humanidade, por outro, tem gerado verdadeiras celeumas, devendo ser objeto de intensa e minuciosa reflexão, tanto por parte da sociedade em geral, quanto de seus representantes, não havendo como passar despercebido aos olhos do legislador, tampouco do aplicador do Direito.

Hoje, pessoas naturalmente impossibilitadas de terem filhos podem recorrer às técnicas de reprodução humana medicamente assistida, a fim de verem suprida tal deficiência.

Todavia, o tema não é tão simples quanto parece. Na verdade, o assunto não se afigura em nada pacificado no cenário mundial, sendo objeto de infindáveis controvérsias e discussões.

O avanço da biomedicina, mais precisamente no tocante às técnicas de reprodução assistida, tem representado notória e incontestável contribuição à humanidade. Verifica-se que a infertilidade é vista pela sociedade (moderna e antiga), como uma patologia ou mesmo um "defeito físico", afigurando-se como verdadeira frustração ao desejo de transmitir, gerando assim um sofrimento psicológico ofensivo ao princípio da dignidade da pessoa humana.

Desde as sociedades mais remotas, a esterilidade é tida como um sério problema, originário de graves conflitos familiares. A sucessão representava muito mais que um simples desejo paternal, mas uma necessidade, um "encargo" da entidade familiar. A ausência de descendentes do pater familias representava um verdadeiro estigma, uma enorme frustração social. E, na maioria das vezes, a responsabilidade por tal falta era imputada única e exclusivamente à mulher.

Na família romana, como já foi exposto, o instituto da adoção era amplamente apregoado, no intuito de suprir a ausência de descendente biológico do pater. [08]

A Bíblia Sagrada narra a história de diversos casos em que a geração substituta era adotada como forma de suprir a deficiência da esterilidade.

Relata o livro de Gênesis, que Sara, mulher do patriarca Abraão, diante de sua esterilidade, incrédula quanto à promessa que Deus havia feito a seu marido de que o faria pai de uma grande nação, entregou a ele sua serva Hagar a fim de que ela concebesse em seu favor, tendo dado à luz a Ismael. Todavia, a situação gerada foi de conflito e contenda. Ante a frustração da infertilidade, aliada ao menosprezo de sua serva, a qual havia concebido, Sara expulsa Hagar e seu filho Ismael. Verifica-se que, em verdade, não houve qualquer vínculo afetivo de maternidade entre Sara e o filho concebido por sua serva. Assim relatam as Sagradas Escrituras:

Ora Sarai, mulher de Abrão, não lhe gerava filhos, e ele tinha ima serva egípcia, cujo nome era Hagar. E disse Sarai a Abrão: Eis que o Senhor me tem impedido de gerar; entra pois à minha serva; porventura terei filhos dela. E ouviu Abrão a voz de Sarai. Assim tomou Sarai, mulher de Abrão, a Hagar egípcia, sua serva, e deu-a por mulher a Abrão seu marido, ao fim de dez anos que Abrão habitara na terra de Canaã. E ele entrou a Hagar, e ela concebeu; e vendo ela que concebera, foi sua senhora desprezada aos seus olhos. Então disse Sarai a Abrão: Meu agravo seja sobre ti; minha serva pus eu em teu regaço; vendo ela agora que concebeu, sou menosprezada aos seus olhos; o Senhor julgue entre mim e ti.E disse Abrão a Sarai: Eis que tua serva está na tua mão, faze-lhe o que bom é aos teus olhos. E afligiu-a Sarai, e ela fugiu de sua face. [09]

O livro de Deuteronômio relata que era lei entre os hebreus que, se um varão falecesse, sendo casado, sem deixar filhos, seu irmão então deveria relacionar-se com a mulher do falecido para que esta viesse a conceber. Todavia, o filho gerado seria considerado descendência do irmão falecido, e não do pai biológico. Dispõe o precitado livro:

Quando alguns irmãos morarem juntos, e algum deles morrer, e não tiver filho, então a mulher do defunto não se casará com homem estranho de fora; seu cunhado entrará a ela, e a tomará por mulher, e fará a obrigação de cunhado para com ela. E será que o primogênito que ela der à luz estará em nome de seu irmão defunto; para que o seu nome se não apague em Israel. [10]

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O tema da filiação e os conflitos de paternidade transcendem aos limites do individualismo, sendo matéria de eminente interesse público. Trata-se de direitos indisponíveis, e que, portanto, merecem especial atenção por parte do Estado.

Neste sentido, não apenas o legislador deve estar atento às mudanças e ansiedades sociais, a fim de elaborar leis adequadas e satisfatórias à disciplina dos conflitos oriundos dessa nova gama de relações, mas também o operador do Direito necessita aplicá-lo à luz de princípios próprios e especiais, dentre eles, sobretudo, os da dignidade da pessoa humana e do melhor interesse da criança.

Diante do avanço biotecnológico, que, se por um lado contribui inegavelmente à humanidade, por outro tem afetado diretamente o campo das relações familiares, surge a bioética, que pode ser conceituada como

estudo interdisciplinar, ligado à Ética, que investiga, nas áreas das ciências da vida e da saúde, a totalidade das condições necessárias a uma administração responsável da vida humana em geral e da pessoa humana em particular. [11]

Pode-se dizer que o marco inicial da bioética se deu com o chamado Código de Nuremberg, em 1947, em que pese o termo propriamente dito tenha sido utilizado apenas em meados da década de 1970. Este documento foi elaborado em razão das atrocidades cometidas por médicos nazistas, ao desenvolverem experiências com seres humanos. Assim, surgiu a necessidade de se estabelecer princípios reguladores dessas experiências. [12]

Com efeito, assevera Paulo Roney que a bioética

surge voltada para a normatização dos procedimentos médicos da manipulação genética, enfim, de atitudes da ciência que, se por um lado, atestam progresso, por outro, ofendem os mais comezinhos princípios da vida humana. [13]

Segundo Belmiro Pedro Welter, a origem e o desenvolvimento da bioética deu-se a partir de alguns fatores, como:

a) dos adiantamentos da biologia molecular e da biotecnologia aplicada o campo da medicina;

b) dos registros de ocorrência dos abusos efetuados pela experiência biomédica nas pessoas;

c) o pluralismo moral reinante nas nações de cultura ocidental;

d) da maior aglomeração dos filósofos da moral aos problemas relacionados com os seres humanos;

e) das manifestações das instituições religiosas;

f) das idéias lançadas pelos poderes legislativo e executivo;

g) da ingerência de organismos e entidades internacionais. [14]

A bioética assume fundamental e inegável importância no cenário global contemporâneo, no sentido de direcionar a engenharia genética ao alcance dos interesses da humanidade.

Todavia, diante do avanço da biotecnologia, notadamente das técnicas de reprodução humana medicamente assistida, a bioética não é capaz de, sozinha, atender toda a gama de problematizações advindas dessa nova realidade, sendo absolutamente imprescindível e crucial a atuação do Estado, através do Direito, a fim de dirimir os conflitos mais diversos resultantes dessa nova ordem social.

Verifica-se que a normatização pátria, no que tange à reprodução humana medicamente assistida, é sobremodo precária, para não dizer inexistente.

O Conselho Federal de Medicina (CFM) editou a Resolução nº 1.358, de 11 de novembro de 1992, na qual buscou instituir normas e princípios éticos a serem seguidos pela classe médica, quando da utilização das técnicas de reprodução assistida. E esta é a única espécie de normatização nesse aspecto, o que, considerando-se a natureza, dimensão e relevância do tema, mostra-se demasiadamente insatisfatória a atender o anseio social.

Não há, portanto, legislação regulamentando os procedimentos de procriação artificial. O que se tem são apenas projetos de lei, dentre os quais destaca-se o PL nº 90/99, de autoria do Senador Lúcio Alcântara, o qual revela-se de caráter notadamente conservador, restringindo sobremodo o acesso às referidas técnicas. Todavia, frise-se, trata-se tão-somente de projeto de lei, inexistindo, portanto, como já foi exposto, legislação específica a respeito.

4.2 Principais Técnicas de Reprodução Assistida (RA)

Sabe-se que, em meados do século XVIII, já eram realizadas experiências de reprodução assistida em peixes e, posteriormente, em mamíferos. Porém, o primeiro caso conhecido de reprodução assistida em seres humanos (inseminação artificial) só foi realizado em 1799, pelo médico e biólogo inglês John Hunter. [15] Quanto à inseminação artificial heteróloga mais precisamente, tem-se notícia de que foi realizada pela primeira vez em 1884. A partir de 1890, a inseminação artificial já era consideravelmente utilizada. [16]

4.2.1 Inseminação Artificial (IA)

A reprodução humana medicamente assistida, através da técnica de inseminação artificial, pode ser considerada um processo relativamente simples, frente aos demais métodos de concepção artificial.

Consiste basicamente em se inserir o material genético masculino (espermatozóides) diretamente na cavidade uterina da mulher, sem a ocorrência do ato sexual.

Colhido o sêmen, este é tratado e introduzido no aparelho genital feminino, por meio de seringas ou cânulas. Tal processo pode ser realizado logo após a coleta do sêmen (se a mulher encontrar-se em período fértil, e ainda presumindo-se a sanidade dos gametas), ou então posteriormente, sendo este conservado pela técnica da criopreservação (congelamento), o que pode se dar por período de até vinte anos.

Essa técnica é utilizada, na maioria das vezes, no caso de casais férteis, porém com alguma dificuldade para fecundar de maneira natural.

A importância dessa técnica de reprodução assistida é inegável, na medida em que todas as outras técnicas dela derivam.

No que diz respeito à inseminação artificial, leciona Reinaldo Pereira e Silva:

A inseminação artificial consiste em técnica de procriação assistida mediante a qual se deposita o material genético masculino diretamente na cavidade uterina da mulher, não através de um ato sexual normal, mas de maneira artificial. Trata-se de técnica indicada ao casal fértil com dificuldade de fecundar naturalmente, quer em razão de deficiências físicas (impotentia coeundi, ou seja, incapacidade de depositar o sêmen, por meio do ato sexual, no interior da vagina da mulher; má-formação congênita do aparelho genital externo, masculino ou feminino; ou diminuição do volume de espermatozóides [oligoespermia], ou de sua mobilidade [astenospermia], dentre outras), quer por força de perturbações psíquicas (infertilidade de origem psicogênica). [17]

Vale destacar ainda que a inseminação artificial é classificada em homóloga ou heteróloga. Diz-se homóloga aquela realizada com material genético (gametas) do próprio casal receptor, sejam estes casados ou vivendo em união estável (conviventes). Esta espécie não traz maiores problemas ou dúvidas no tocante à paternidade. A inseminação heteróloga, por outro lado, utiliza material genético de ao menos um terceiro (homem ou mulher). E é justamente esta forma de fecundação que abre margem a inúmeras questões de ordem ética, moral, religiosa e jurídica, gerando incessantes discussões doutrinárias e filosóficas a respeito, sem contudo haver, como já foi exposto, regulamentação legal da matéria.

4.2.2 Fertilização In Vitro (FIV)

Várias podem ser as hipóteses de aplicação dessa técnica de reprodução humana medicamente assistida.

Um exemplo é o caso em que a mulher não produza óvulos, tendo porém o útero apto à gestação. Neste caso, utiliza-se o material genético (sêmen) do marido ou companheiro e o óvulo de uma outra mulher. Realiza-se a fertilização desses gametas em laboratório, e então se introduz o embrião no útero da esposa ou companheira, para que esta venha a concluir o processo de gestação.

Outra hipótese é o caso da mulher que, embora produzindo óvulos, seja incapaz de gerar (por não ter o útero, ou possuir alguma outra anomalia). Então, o procedimento é inverso: faz-se a fertilização utilizando-se o material genético do próprio casal, introduzindo-se posteriormente o embrião no útero de uma terceira mulher, a qual irá gerar o feto até ulterior concepção. Trata-se da chamada "gestação substituta", vulgarmente conhecida como "barriga de aluguel", termo este repudiado pela maior parte da doutrina.

Esta última espécie (gestação substituta) não se afigura menos problemática que a reprodução artificial heteróloga. Em verdade, trata-se de tema sobremodo polêmico e complexo. Fundamenta-se no princípio de que a "mãe substituta", aquela que irá gerar a criança em seu útero, deverá, após a concepção, entregá-la ao casal "encomendante", o qual estabelecerá único e verdadeiro vínculo paternal (socioafetivo) para com o bebê.

Temos que o contrato de sigilo existente entre o doador do material genético, bem como o consentimento do marido (ou companheiro) para que sua esposa (ou companheira) se submeta à reprodução artificial heteróloga, estão para este método assim como o compromisso da "mãe substituta" de entregar a criança ao casal "encomendante", após a gestação e final concepção, está para a gestação substituta.

Ora, a hipótese não pouco provável de que a "mãe" substituta venha recusar-se a entregar o bebê ao casal, ou mesmo de que venha, posteriormente, reclamar o reconhecimento da criança como filho e os direitos advindos dessa relação, pode gerar conflitos de considerável magnitude. E tais conflitos serão lançados, obviamente, ao alvitre do Judiciário, ressaltando-se ainda, uma vez mais, que não há regulamentação legislativa do tema, o que exigirá uma interpretação sistêmica e principiológica do aplicador do Direito.

Em que pese termos admitido uma consideração analógica entre a gestação substituta e a reprodução artificial heteróloga, há de se ressaltar um importante e fundamental aspecto distintivo entre ambas as técnicas de reprodução assistida. Enquanto na reprodução heteróloga o doador do material genético não exprime qualquer pretensão à paternidade, na gestação em substituição, a "mãe" substituta mantém um inegável vínculo afetivo com o bebê.

4.2.3 Reprodução pelos Gametas (GIFT)

A técnica de transferência intratubária de gametas (GIFT, sigla em inglês – Gametha Intra Fallopian Transfer) foi idealizada pelo médico argentino Ricardo Ash. Consiste na captação dos óvulos da mulher, pelo método de laparoscopia (faz-se uma pequena incisão na parede do abdome), e do sêmen do homem. Ambos os gametas (óvulos e espermatozóides), após estarem devidamente preparados, são postos em uma cânula especial e introduzidos em cada uma das Trompas de Falópio, onde a fertilização irá se produzir naturalmente. Se tudo transcorrer normalmente, os espermatozóides irão fecundar um ou mais óvulos, formando-se o embrião, o qual descerá pelas trompas até o útero, produzindo-se assim a concepção integralmente no corpo da mulher.

O problema desse método conceptivo é a baixa probabilidade de êxito (em torno de 35 a 40%), além da grande possibilidade de ocorrer a concepção de gêmeos. Este último efeito se dá em grande parte das técnicas de reprodução assistida, em razão de serem utilizados vários óvulos, com o propósito de se buscar uma maior chance de sucesso no procedimento.

4.2.4 Reprodução com Zigotos (ZIFT)

Na transferência intratubária de zigotos (ZIFT, sigla em inglês – Zibot Intra Fallopian Transfer), os dois tipos de gametas (óvulos e espermatozóides) são postos em contato, in vitro, em condições apropriadas para sua fusão. Os zigotos resultantes são transferidos então para o interior das trompas uterinas.

Em outras palavras, essa técnica consiste na retirada de vários óvulos da mulher, os quais são fecundados artificialmente in vitro (fora do corpo da mulher), formando-se assim o zigoto, o qual é introduzido (um ou mais) nas trompas. [18]

Difere a ZIFT (zigotos) da GIFT (gametas) na medida em que, naquela, a fecundação dos gametas masculino e feminino é realizada fora do corpo da mulher (in vitro), enquanto que nesta, a formação do embrião pelo encontro do óvulo com o espermatozóide se dá dentro do próprio corpo da mulher (nas trompas).

Por outro lado, assim como na GIFT, a ZIFT também apresenta uma baixa probabilidade de êxito, além do problema dos chamados, neste caso, "zigotos excedentários", ou seja, aqueles óvulos fecundados que não foram introduzidos no corpo da mulher. Esses zigotos permanecem congelados em laboratório (criopreservação), até o que casal decida seu destino. Tal situação é causa de inúmeras discussões de ordem ética, moral, religiosa e filosófica, principalmente quando se trata, não de zigotos, mas de embriões, como será analisado adiante.

4.2.5 Reprodução com Embriões (FIVET)

A técnica da fecundação in vitro seguida da transferência de embriões (FIVET, sigla em inglês – Fecundação In Vitro com Embrio-Transfer) consiste em manter o zigoto incubado até sua segmentação, resultando então no embrião (estágio de duas a oito células). Este, por sua vez, é introduzido no útero ou nas trompas. Assim, difere da ZIFT, em razão de que a transferência ocorre após a segmentação do zigoto, quando o mesmo já é denominado de embrião.

No processo de preparação dessa técnica, a mulher é submetida a um tratamento hormonal, produzindo uma superovulação, a fim de que vários óvulos sejam fecundados na proveta. Em média, quinze óvulos são fecundados, dos quais apenas quatro, no máximo, são inseridos no corpo da mulher. [19]

Assim, surge um problema sobremodo polêmico e complexo, que tem sido alvo de infindáveis discussões: o que se fazer com os chamados "embriões excedentários"? Tal questionamento possui desdobramentos éticos, morais, religiosos, reclamando com extrema urgência a regulação da matéria por intermédio do Estado. Todavia, a complexa e profunda análise que o tema avoca foge aos rumos do presente trabalho, sendo mister, porém, uma abordagem acerca da problemática e suas implicações.

Em princípio, os embriões excedentes (aqueles que não foram introduzidos no corpo da mulher) são mantidos congelados em laboratório (criopreservação), até que o casal decida o seu destino.

A Resolução nº 1.358/92 do CFM estabeleceu princípios ético-profissionais a respeito das técnicas de reprodução assistida, dispondo a respeito do tema:

I – Princípios Gerais

[...]

6 – O número ideal de oócitos e pré-embriões a serem transferidos para a receptora não deve ser superior a quatro, com o intuito de não aumentar os riscos já existentes de multiparidade.

[...]

V – Criopreservação de Gametas ou Pré-Embriões

1 – As clínicas, centros ou serviços podem criopreservar espermatozóides, óvulos e pré-embriões.

2 – O número total de pré-embriões produzidos em laboratório será comunicado aos pacientes, para que se decida quantos pré-embriões serão transferidos a fresco, devendo o excedente ser criopreservado, não podendo ser descartado ou destruído.

3 – No momento da criopreservação, os cônjuges ou companheiros devem expressar sua vontade, por escrito, quanto ao destino que será dado aos pré-embriões criopreservados, em caso de divórcio, doenças graves ou de falecimento de um deles ou de ambos, e quando desejam doá-los.

Todavia, nem sempre o destino dos embriões excedentários é decidido previamente pelos pretensos pais antes de se submeterem ao procedimento de fecundação assistida. E, após a concepção, a solução do problema torna-se ainda mais difícil, uma vez que, obtido sucesso no procedimento, o interesse pelos embriões excedentes simplesmente se esvai na maioria das vezes.

Recentemente, na Inglaterra, onde o prazo máximo para conservação de embriões excedentários é de cinco anos, alguns milhares de embriões que não tinham mais "utilidade" foram simplesmente jogados ao lixo. [20]

Belmiro Pedro Welter, em citação a Sérgio Ferraz, observa que:

As conclusões do Informe Warnock, em julho de 1984, do Ministério da Saúde da Inglaterra, e do Relatório Palácios da Espanha, apontam que, após quatorze (14) dias de existência, o embrião já formou o "sulco ou cinta neurológica", "estando, então, totalmente conformada sua estrutura humana, não devendo mais, desde aí, ser objeto de experimentos ou de abortamento". [21]

Após o período de quatorze dias da fecundação dos gametas, ocorre a chamada nidação, momento de implantação do óvulo fecundado no útero materno.

Para a corrente nidacionista, este é o momento do surgimento da vida. A partir daí, o embrião merece ser tutelado, garantindo-lhe o direito à vida, propiciando as condições necessárias ao seu desenvolvimento e ulterior concepção.

Neste sentido, dispõe a já mencionada Resolução do CFM:

VI - DIAGNÓSTICO E TRATAMENTO DE PRÉ-EMBRIÕES

[...]

3 – O tempo máximo de desenvolvimento de pré-embriões "in vitro" será de 14 dias.

O problema da incerteza do destino que será dado aos embriões excedentários pode apresentar ainda outros desdobramentos. Assim como no caso dos bancos de sêmen, que propiciam a fertilização artificial heteróloga, o depósito de embriões excedentes tem criado um novo tipo de comércio, principalmente pela Internet: a venda de sêmen ou mesmo de pré-embriões com características fenotípicas específicas e "selecionadas".

Tem-se notícia de que no Estado da Califórnia, Estados Unidos (EUA), existiria um banco de gametas reservado a doadores "intelectualmente superdotados". [22]

Desta forma, estar-se-ia escolhendo as características físicas (e até mesmo intelectuais) de seus filhos, o que, indubitavelmente, fere os princípios basilares da relação de paternidade incondicional, calcada no amor e no afeto.

Ademais, a "seleção" do material genético "perfeito" consiste em prática repudiosa à ética e à moral, possuindo ideais notoriamente nazistas, na medida em que busca obter a concepção do ser humano "aparentemente ideal", baseado nas características fenotípicas ocidentais, como se fosse possível ou mesmo admissível considerar esta ou aquela pessoa "melhor" que seu semelhante.

Noutro vértice, além de ferir princípios morais e éticos, a seleção de material genético vai contra os princípios fundamentais e basilares da paternidade, a qual deve ser fundada no desejo livre espontâneo, no amor e afeto incondicionais, independentemente das características físicas da criança.

Tal prática é rechaçada pela Resolução nº 1.358/92 do CFM, a qual dispõe:

I – PRINCÍPIOS GERAIS

[...]

4 – As técnicas de RA não devem ser aplicadas com a intenção de selecionar o sexo ou qualquer outra característica biológica do futuro filho, exceto quando se trate de evitar doenças ligadas ao sexo do filho que venha a nascer.

[...]

IV – DOAÇÃO DE GAMETAS OU PRÉ-EMBRIÕES

1 – A doação nunca terá caráter lucrativa ou comercial.

[...]

6 – A escolha dos doadores é de responsabilidade da unidade. Dentro do possível deverá garantir que o doador tenha a maior semelhança fenotípica e imunológica e a máxima possibilidade de compatibilidade com a receptora.

Todavia, como já foi exaustivamente exposto, a Resolução supra mencionada, por si só, mostra-se insuficiente à regulamentação de matéria tão complexa, e que produz reflexos tamanhos na sociedade.

4.2.6 Reprodução pela Clonagem

A clonagem humana pode ser dividida basicamente em duas formas:

a primeira, a natural, decorrente da separação das células de um embrião, em seu estágio vestibular de multiplicação de células, reproduzindo novos indivíduos exatamente iguais quanto ao patrimônio biológico (gêmeos univitelinos); a segunda, a artificial, que consiste na substituição do núcleo de um óvulo por outro proveniente de uma célula de um indivíduo já existente. Esse último sistema foi utilizado por Ian Wilmut para clonar a ovelha Dolly. [23]

A despeito da inegável importância que o avanço da biotecnologia tem representado à humanidade, como já foi ressaltado alhures, a prática da clonagem de seres humanos é repudiada de forma quase unânime e universal pela classe dos operadores do Direito.

Em que pese o empenho da ciência mundial em desenvolver e concluir o Projeto Genoma Humano, iniciado em 1990 nos EUA e com término inicialmente previsto para este ano de 2005, ainda há muito (para não dizer tudo) o que se fazer no campo jurídico, no sentido de recepcionar esta nova realidade que bate às portas, e que muito logo, sem dúvida, reclamará respostas do Poder Judiciário.

Todavia, a despeito da importância que essa técnica representa, não se trata, ao menos no momento, de prática comum no campo da reprodução assistida. Portanto, deixamos de abordá-la com a dimensão e profundidade a que faz jus, em razão de que uma análise tal transcenderia às limitações do presente estudo.

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Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NOGUEIRA, Juliano Augusto Souza. A investigação de paternidade na reprodução artificial heteróloga. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2481, 17 abr. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14676. Acesso em: 27 abr. 2024.

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