RESUMO: O presente trabalho tem por objetivo o exame da responsabilidade penal das pessoas coletivas no ordenamento jurídico português e no brasileiro. Primeiramente será analisada a evolução histórica da responsabilidade penal, com os dispositivos legais do ordenamento jurídico português e posteriormente do ordenamento jurídico brasileiro e a jurisprudência sobre o tema. Serão demonstrados os argumentos de doutrinadores que defendem a irresponsabilidade das pessoas coletivas e de outros que defendem a responsabilidade e, por fim, a partir da apresentação da legislação portuguesa e brasileira, conclui-se pela aceitação da responsabilidade penal das pessoas coletivas.
PALAVRAS-CHAVE: 1. Responsabilidade penal da pessoa coletiva. 2 Responsabilidade penal da pessoa coletiva no ordenamento jurídico português 3. Responsabilidade penal da pessoa jurídica no ordenamento jurídico brasileiro.
INTRODUÇÃO
No Estado de Direito Democrático [01], em respeito à dignidade da pessoa humana, prevista no artigo 1º da Constituição da República Portuguesa de 1976, o objetivo de proteção dos direitos e garantias fundamentais [02] torna perfeitamente exigível que o ordenamento jurídico tenha mecanismos de proteção aos cidadãos para que a impunidade em favor das pessoas físicas e das pessoas coletivas ou jurídicas seja evitada [03].
Nos crimes ambientais, econômicos e tributários cometidos pela pessoa coletiva, muitas vezes não é fácil identificar as pessoas físicas que devem ser responsabilizadas e, em muitas situações, a responsabilização civil não é suficiente para prevenir a ofensa a bens jurídicos.
Uma análise histórica permite afirmar que os argumentos sobre a responsabilização penal ou a não responsabilização da pessoa jurídica estão pautados em torno da formação da ideia de pessoa coletiva e do princípio da culpabilidade. Em certos ordenamentos como na Alemanha, Espanha, Itália, Grécia, Polônia, Colômbia, Costa Rica, Equador, Honduras, México, Panamá, Uruguai vige o princípio societas delinquere non potest, ou seja, é inadmissível a punibilidade penal das pessoas jurídicas, havendo a previsão de aplicação somente de sanções administrativas ou civis [04].
Os países anglo-saxões e os que receberam suas influências, nos quais vigora o common law, admitem a responsabilidade penal da pessoa jurídica [05], como Inglaterra, Portugal, Brasil e Estados Unidos [06], pois com o desenvolvimento e com a descoberta de novas tecnologias para prática de crime, e com a utilização da pessoa jurídica como meio para elidir a responsabilização, verificaram-se efeitos devastadores e irreparáveis aos bens de terceiros e a bens difusos, demonstrando a necessidade de responsabilização da pessoa coletiva.
Mesmo após a lei nº 59, de 04 de setembro de 2007, que alterou o Código Penal Português e leis extravagantes que aceitam a responsabilização penal da pessoa coletiva, assim como o artigo 173, § 5º e artigo 225, § 3º da Constituição Brasileira de 1988 e a Lei nº 9605, de 12 de fevereiro de 1998, que instituiu no Brasil sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente praticadas por pessoas jurídicas, verifica-se a necessidade de revelar a profundidade e alcance do tema, pela importância que a responsabilidade penal da pessoa coletiva tem para a manutenção da segurança jurídica e da ordem e pela contribuição que ela oferece à perenidade dos direitos e garantias proporcionados pelas Constituições Portuguesa e Brasileira.
Para tanto, dividiu-se o artigo em quatro partes. Na primeira, estabelecem-se marcos históricos relativos à responsabilidade penal da pessoa coletiva, tendo por base a formação da pessoa coletiva. Em seguida, será analisada a responsabilidade no ordenamento jurídico português e no ordenamento brasileiro, assim como a respectiva jurisprudência dominante. Na terceira parte, serão demonstrados os argumentos favoráveis e desfavoráveis à responsabilidade penal da pessoa coletiva. Na ultima parte, sintetiza-se a discussão, realizando-se uma reflexão sobre o tema.
1 Evolução histórica da responsabilidade penal da pessoa coletiva
No direito romano não se conhecia a responsabilidade criminal das pessoas coletivas. Era o princípio societas delinquere non potest, ou seja, a sociedade não comete crimes. O jurisconsulto Ulpiano, com a intenção de responsabilizar o município por cobranças indevidas, iniciava a ideia de responsabilização da pessoa coletiva. Entretanto, já havia certa responsabilidade delitiva de uma corporação [07] e também já se separava nitidamente a responsabilidade coletiva da responsabilidade individual [08].
No início da Idade Média, os glosadores, em virtude da relevância das corporações, consideravam-nas responsáveis por suas ações civil e penalmente. Para eles, diferentemente dos romanos, os direitos das corporações eram ao mesmo tempo direitos de seus membros, pois quando estes agiam em seu nome, eram atos e vontades destas, e começaram a admitir a responsabilidade criminal das pessoas coletivas de forma mais patente [09].
O Direito Canônico sustenta que os titulares dos direitos eclesiásticos não são os membros da comunidade religiosa, e sim Deus. Dessa forma, surge o conceito de instituição eclesiástica, distinto do conceito de corporação adotado pelos glosadores. A pessoa coletiva era vista como pessoa sujeito de direito. Então, pela primeira vez, se faz a distinção entre o conceito jurídico de pessoa e conceito real de pessoa como ser humano, dando origem ao conceito de pessoa jurídica que, por ficção jurídica, passa a ter capacidade jurídica [10].
No Iluminismo, em razão da mudança na forma de pensar, a responsabilidade coletiva era incompatível com a nova ideia de liberdade e de autodeterminação do indivíduo, direcionando apenas à responsabilidade individual, em detrimento da responsabilidade coletiva. Figueiredo Dias afirma que, na transição do século XVIII para o XIX, passou-se a entender o princípio societas delinquere non potest praticamente como um dogma, especialmente em razão das teorias da ficção [11] sobre a essência das pessoas morais. [12] Nesse período, então, reafirmou-se este princípio, e somente nas esferas civil e administrativa a pessoa coletiva poderia ser responsabilizada.
Contudo, com o crescimento da criminalidade, principalmente por grandes empresas a partir do século XIX, a dogmática penal verificou a necessidade de punir as pessoas coletivas, diante da impunidade em relação àquelas pessoas físicas cuja participação não se podia comprovar. É neste sentido que o ordenamento jurídico português e brasileiro definem as normas e critérios de responsabilização penal da pessoa coletiva.
2 Responsabilidade penal da pessoa coletiva no ordenamento jurídico português e brasileiro
Primeiramente, na Constituição da República Portuguesa não há dispositivo que se refira à responsabilidade penal da pessoa coletiva, muito menos ao princípio da individualidade da responsabilidade criminal, o que demonstra não haver impedimento constitucional em serem responsabilizadas penalmente as pessoas coletivas.
A partir da Lei 59/2007, o Direito penal português passou a reconhecer o princípio geral da responsabilidade criminal da pessoa coletiva. Contudo, o início da responsabilidade se deu em 1976, com o Dec.-Lei 630/76, de 28 de julho, e depois com o Dec.-Lei 28, de 20 de janeiro de 1984, que trata das infrações antieconômicas e contra a saúde pública. Posteriormente surgiram mais leis para punir criminalmente as pessoas coletivas, a exemplo da Lei da Criminalidade Informática (nº 109/1991); Lei de Regime Geral das Infrações Tributárias (nº 15/2001), Lei da Criminalidade Organizada e Econômico-Financeira (nº 05/2002), Código da Propriedade Industrial (Dec.-Lei 36/2003); Lei de Combate ao Terrorismo (nº 52/2003); Código do Trabalho (nº 99/2003) e o Regime Jurídico de Armas (nº 05/2006) [13].
O Código Penal Português foi alterado pela lei 59/2007, de 04 de setembro, e no artigo 11º [14] passou a tratar do Princípio Geral da Responsabilidade Criminal das Pessoas Coletivas, ampliando os crimes que podem ser cometidos por pessoas coletivas. A regra é a responsabilização criminal da pessoa individual, conforme o art. 11, nº 1, do CP português, exceto nos crimes arrolados no art. 11, nº 2 e em outros casos especialmente previstos em lei, em que a pessoa coletiva poderá ser responsabilizada [15].
Entretanto, é necessário que a pessoa singular cometa o crime em nome e no interesse coletivo e que exerça posição de liderança, podendo o crime ser decorrente de violação dos deveres de vigilância ou controle que a incumbe. O código adotou a teoria da responsabilidade ou identificação (modelo vicarial ou vicarius liablity) em que há responsabilidade da pessoa coletiva pelos fatos cometidos por um órgão ou administrador no exercício das suas funções, ou seja, a empresa assume o papel de dirigente, e, por conseguinte, responde pelos crimes cometidos pelos seus órgãos ou representantes que atuaram em seu nome e no interesse coletivo. Nesse sentido Inês Fernandes [16]
"Os órgãos dirigentes eram, assim, considerados como o ‘cérebro’ da pessoa colectiva, razão pela qual as suas acções e a sua culpa seriam aquelas da própria empresa, motivo que, consequentemente, levava a que lhe fossem imputadas."
Importante ressaltar que se deve responsabilizar a pessoa coletiva por atos das pessoas que atuam como representantes de fato e de direito, pois do contrário, a impunidade das pessoas coletivas seria certa. Isto porque poderiam ter nos seus estatutos pessoas desconhecidas [17] ou inexistentes, que perante a jurisdição penal de um determinado Estado seria impossível punir, visto que muitas empresas utilizam-se deste artifício para elidir a responsabilização dos reais representantes.
Com base no Código Penal Português, as pessoas que podem cometer crimes em nome da pessoa coletiva não são necessariamente titulares de órgãos ou não são os representantes em sentido estrito das pessoas coletivas (presidente, vice-presidente, administrador, diretor-geral, etc.), mas são os que recebem atribuições para, em situações concretas e específicas, decidirem em nome da pessoa coletiva, ou porque têm autoridade para exercer o controle dessa atividade específica ou porque agem sob a autoridade de uma pessoa que tem posição de liderança.
A pessoa coletiva responderá criminalmente em virtude de violar os deveres de vigilância ou controle que lhes incumbem. Portanto, responderá por atos de seus representantes oficiais, representantes de fato, ou por atos de qualquer pessoa que na empresa tenha o poder de controle, seja titular ou não do órgão, seja representante ou não da pessoa coletiva. A responsabilidade da pessoa coletiva também poderá ser concretizada através de uma ação ou de uma omissão do representante e o elemento subjetivo poderá ser tanto por dolo como por negligência. A comissão direta ocorre quando o líder da pessoa coletiva atua no nome e no interesse dela com dolo.
Entretanto, para que a pessoa coletiva seja responsabilizada criminalmente, conforme o art. 11 nºs 2 e 4, torna-se necessário que as pessoas físicas atuem em posição de liderança, que independente do direito de regresso, serão subsidiária e solidariamente responsáveis pelo pagamento de multas, bem como indenizações no período em que exerceram o cargo, ou em que agiram sob a autoridade dessas pessoas, em virtude de violação dos deveres de vigilância ou controle.
Indaga-se se a partir do momento em que a infração for cometida por pessoas que não atuam em posição de liderança, se a pessoa coletiva ficará à margem de qualquer responsabilização criminal? Acredito que a pessoa coletiva só tem vinculação com os seus representantes (pessoas físicas) que estão no exercício de suas respectivas funções, pois se eles agirem para além de suas funções, a pessoa jurídica não poderá ser responsabilizada, e sim somente a pessoa física.
A lei portuguesa não exige que a responsabilidade criminal da pessoa coletiva seja cumulada com a pessoa individual, apenas não exclui essa possibilidade, podendo responsabilizar criminalmente somente a pessoa coletiva, somente os seus representantes, ou ambos, conforme nº 7 do artigo 11º do Código Penal [18]. O órgão ou a pessoa singular titular do órgão precisa atuar com vontade (culpa) própria, e pelo vínculo e interesse coletivo, agindo no exercício de sua função, transmitindo a vontade (culpa) à pessoa coletiva, surgindo, então, vontade (culpa) da pessoa coletiva [19].
No que diz respeito as penas, o regime previsto no Decreto- Lei nº 28/84 e no artigo 90º - A e seguintes do Código Penal existem três categorias de penas aplicáveis às pessoas coletivas, as principais, as acessórias e as de substituição. As principais são as de multa ou de dissolução, conforme artigo 90º - A. nº 1; as penas de substituição estão previstas no artigo 90º C, como a admoestação, pena de substituição da pena de multa, a caução de boa conduta no artigo 90º - D, e a de vigilância judiciária (artigo 90º - E). As penas acessórias são a injunção judiciária, a proibição de celebrar contratos, a privação do direito a subsídios e subvenções ou incentivos, a interdição do exercício de atividade, o encerramento do estabelecimento e a publicidade da decisão condenatória, previstas nos artigos 90º - G a 90ª – M do Código Penal Português. [20]
Por fim, no que tange a jurisprudência, o Tribunal Constitucional Português declarou que não há vício de constitucionalidade em punir criminalmente as pessoas coletivas. [21]
2.2 Ordenamento jurídico brasileiro
No Brasil, a previsão dos artigos 173, § 5º e 225, § 3º [22] da Constituição Federal de 1988, por outros já denominada de obscura relativamente ao meio ambiente, tem levado alguma parte da doutrina a sustentar que a Carta Magna consagrou a responsabilidade penal da pessoa jurídica independente da responsabilidade de seus dirigentes, sujeitando-a às punições compatíveis com sua natureza a partir de atos praticados contra a ordem econômica que tem como um de seus princípios a defesa do meio ambiente [23].
No caso brasileiro, há discussões sobre estes dispositivos na Constituição Federal, porque não há possibilidade de se sancionar penalmente a pessoa jurídica, pois as penas compatíveis com a natureza da pessoa jurídica, previstas no § 5º, são de ordem administrativa ou civil, e não de natureza penal. Também discute-se pelo fato de a responsabilidade penal continuar ser pessoal, conforme o teor dos incisos XLV e XLVI [24] do artigo 5º da Constituição Federal que define a responsabilização individual, sem admitir exceção.
Para reforçar o dispositivo constitucional, a Lei 9.605, de 12 de fevereiro de 1998 empreendeu uma abordagem mais eficaz quanto à tutela do meio ambiente, prevendo uma diversidade de crimes ambientais e de penas aplicáveis a pessoa jurídica. Apesar de ser criticada, a lei cumpriu seu objetivo de tutelar a proteção do meio ambiente. Entretanto, entende-se que a mesma eficácia legislativa poderia ter sido obtida sem que se utilizasse o direito penal, visto que o ordenamento jurídico contém sanções de outras naturezas, como as civis e administrativas, que seriam bem mais eficazes na proteção dos bens jurídicos do que a tutela penal.
Isto quer dizer que seria prescindível a previsão de sanções penais as pessoas jurídicas, visto que medidas sancionadoras extrapenais, de ordem administrativa ou civil são eficazes na punição de entes coletivos em atividades delituosas, como ao meio ambiente, ao consumidor e à economia, havendo previsão para a efetiva aplicação de sanções extrapenais como a Lei do Mercado de Capitais (Lei 4.728/65), a Lei de Sonegação Fiscal (Lei 4.729/65), Lei de Crimes contra o Sistema Financeiro (Lei 7.492/86), Lei de Fauna (Lei 5.197/67), Decreto – Lei sobre a produção, o comércio e o transporte clandestino de açúcar e do álcool (Dec.-Lei 16/66) e a própria Lei 9.605/98 que dispõe sobre as sanções administrativas derivadas de condutas e de atividades lesivas ao meio ambiente.
Porém, a responsabilização penal da pessoa jurídica pela prática de delitos ambientais advém de uma escolha política, como forma não apenas de punição das condutas lesivas ao meio ambiente, mas como forma de prevenção geral e especial, estabelecendo penas autônomas de multas, de prestação de serviços à comunidade, restritivas de direitos, liquidação forçada e desconsideração da pessoa jurídica, todas adaptadas à sua natureza jurídica, conforme o artigo 8º [25] da Lei 9605/1998.
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça Brasileiros entende que é perfeitamente cabível a responsabilização da pessoa jurídica, contudo desde que haja a imputação simultânea do ente moral e da pessoa física que atua em seu nome ou em seu benefício, uma vez que não se pode compreender a responsabilização do ente moral dissociada da atuação de uma pessoa física, que age com elemento subjetivo próprio. [26]
3. Não responsabilidade ou responsabilidade penal da pessoa coletiva?
Os argumentos contra a responsabilidade penal da pessoa jurídica estão baseados na concepção tradicional do Direito Penal, construída em alicerces que há séculos vem sustentando a Teoria Geral do Crime. Isto porque a função ético-social e preventiva do Direito penal funciona, inicialmente para garantir a segurança e a estabilidade da sociedade e num segundo plano, reage diante do caso concreto, contra a violação ao ordenamento jurídico com a imposição da pena correspondente.
Assim, a sanção penal seria a ultima ratio, devendo ser utilizada apenas em hipóteses muito graves, exercendo função auxiliar, subsidiária ou de garantia de preceitos administrativos. Portanto, existindo sanções civis e administrativas à pessoa jurídica, não se justifica a previsão de sanções penais, pois responsabilizariam da mesma forma [27].
Ademais da Teoria Geral do crime, a teoria da ficção, de autoria de Savigny, afirma que as pessoas jurídicas têm existência fictícia, irreal ou de pura abstração sendo, portanto, incapazes de delinquir, carecendo de vontade e de ação. Desse modo, para a teoria da ficção, só o homem é capaz de ser sujeito de direitos, e consequentemente de ser responsabilizado criminalmente.
Na teoria finalista da ação o único sujeito com capacidade de ação é o indivíduo, quer se tenha em conta o conceito causal, quer o conceito final de ação. Para ambos o essencial é o ato de vontade, ou seja, o comportamento humano voluntário conscientemente dirigido a um fim. A ação se manifesta por um comportamento exterior, de conteúdo psicológico, que é a vontade dirigida a um fim, fato que impossibilita a responsabilização de pessoa coletiva por inexistência de conteúdo psicilógico, inerente à pessoa humana [28].
O princípio da culpabilidade [29] consiste na reprovabilidade do fato antijurídico individual, cujo conteúdo material e finalista tem como base a capacidade de livre autodeterminação, isto é, o poder ou faculdade de atuar de modo distinto de como atuou.
Ocorre que inexiste responsabilidade sem culpa, vez que o sistema penal trabalha com a noção de culpabilidade individual. O fato de a pessoa jurídica ser desprovida de inteligência e vontade, ela é incapaz de cometer um crime, necessitando sempre recorrer a seus órgãos integrados por pessoas físicas, estas sim, com consciência e vontade de infringir a lei. [30]
A exigibilidade da conduta conforme o direito também não é exigível da pessoa jurídica, visto que não é imputável e que não possui consciência sobre a ilicitude do fato, o que, por fim, torna inexistente a culpabilidade, e por conseguinte, a responsabilização da pessoa jurídica.
3.2 Argumentos a favor da responsabilidade penal da pessoa coletiva
Primeiramente, Figueiredo Dias defende que as pessoas coletivas devem ser punidas criminalmente, pelo fato de a responsabilização da pessoa coletiva ter por fundamento política criminal, visto que a dogmática penal é subordinada à política criminal, não podendo subvertê-la. Afirma também que a ação e a culpa embasam-se na liberdade do homem individual, porém as organizações humano-sociais são como o próprio homem individual ‘obras da liberdade’ ou ‘realizações do ser livre’. Assim, as obras e realizações coletivas podem substituir as do homem individual, abrindo-se caminho para a responsabilização criminal das pessoas coletivas [31].
Também, Faria Costa complementa ser "insuficiente fundamentar a punibilidade das pessoas colectivas em um modo de argumentação cesgado à idéia de necessidade", ou seja, é insuficiente justificar apenas com base de política criminal. Assim complementa que antropologicamente os menores cometem as mesmas condutas que os imputáveis, porém, o ordenamento jurídico-penal estabelece que os menores não podem receber imputação de pena [32]. Assim, discorre:
[…] enquanto na imputabilidade formal (idade) o direito penal esquece, esmaga ou ficciona a inexistência de uma liberdade onto-antropológica [...] que o menor jamais deixa de ter, na responsabilidade penal das pessoas coletivas, inversamente, o direito penal liberta, cria, expande aquilo que os órgãos das pessoas coletivas assumem como vontade própria e, por isso, tem legitimidade para as responsabilizar penalmente. [33]
Também, baseado na Teoria da Realidade [34], pessoa moral é um ente real (vivo e ativo), independente dos indivíduos que a compõem. Nesse sentido, a pessoa física atua como o indivíduo, ainda que mediante procedimentos diferentes e pode, por conseguinte, atuar mal, delinquir e ser punida. Entretanto, a pessoa coletiva possui uma personalidade real, dotada de vontade própria, com capacidade de ação e de praticar ilícitos penais, ou seja, é uma realidade social, possuindo direitos, deveres e dupla responsabilidade: civil e penal.
Na realidade, embora tal teoria tenha sofrido críticas, a pessoa jurídica não é uma ficção, mas um verdadeiro ente social que surge da realidade concreta e que não pode ser desconhecida pela realidade jurídica. A mudança a nível mundial das funções de direito penal, a dispersão das atividades operativas das empresas, o poder de decisão e acúmulo de informações por parte de seus representantes e a tendência internacional em favor da sanção penal das organizações, justificam a necessidade de responsabilizar a pessoa jurídica [35].
No Brasil, a teoria da responsabilidade da pessoa jurídica é prestigiada com base nos dispositivos constitucionais e na lei de crimes ambientais. Contudo, haveria necessidade de serem cumpridos certos requisitos. O primeiro é que a infração há de ser praticada em favor da pessoa coletiva e dentro da atividade da empresa, ou seja, deve ser realizada dentro do domínio normal de atividade da empresa [36].
O Código Penal português, no artigo 11º, nº 9, define melhor a atuação da pessoa física para que ela e a pessoa jurídica sejam responsabilizadas, diferentemente no Brasil em que a doutrina e a jurisprudência [37] dispõem que a infração deve ser praticada por alguém que se encontre ligado à pessoa jurídica, a exemplo do empregado ou preposto, no exercício de suas funções, ou até aquele que beneficiando-se diretamente da infração, possa não estar vinculado oficialmente a empresa. Apesar de que, ao meu entender, em ambos os ordenamentos, a pessoa que estiver de alguma forma vinculada a pessoa jurídica e realizar infrações em nome desta, deve ser punida criminalmente.
Entendo que é fator para responsabilização a utilização da infraestrutura da empresa para o cometimento do crime, por meio da reunião de esforços de várias pessoas, que por vezes, utilizam a pessoa jurídica como meio de elidir a responsabilidade pessoal. Nesse sentido, Sérgio Sheicara afirma que o poder se oculta por detrás da pessoa jurídica e por meio da concentração de forças econômicas agrupadas que permite dizer que tais infrações tem uma robustez e força orgânica impensáveis em uma pessoa física [38].
A partir de medidas de política criminal, da análise da teoria da realidade, da inversão do instituto da imputabilidade do menor ininputável e a necessidade do combate a impunidade, justifica-se a responsabilização da pessoa jurídica. Dessa forma, a teoria da ficção do direito penal clássico não é motivo suficiente para evitar a responsabilização da pessoa coletiva.