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A dupla valoração do inquérito policial e comentários sobre a nova redação do artigo 155 do Código de Processo Penal

19/04/2010 às 00:00
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"O Inquérito Policial é instrumento democrático e multifacetado, promove garantia social e individual, evita juízos apressados e errôneos, serve de fonte indiciária para o Ministério Público e de verdadeira prova à disposição do juiz".

Há doutrinadores que ficam melindrados quando se reconhece a importância do inquérito policial. Quando se diz que aludido instituto tem valor probatório ou então que contém elementos de prova, há incompreensível irritação.

Por isso é comum o emprego de uma terminologia com contornos depreciativos ou que denotem uma pontinha de desconsideração. Ora se assevera que o inquérito policial é mera peça de informação (o adjetivo "mero" é despiciendo), ora que o que ali se colhe jamais se constituiria em prova, mas seriam, para eles, tão só "elementos de informação".

Embora sem muita importância prática, mas apenas estabelecendo padrões mais científicos, quadra gizar que o próprio termo "elemento" foi emprestado de outros ramos da ciência, mormente o da Física e da Química, e não se coaduna com o Direito.

Não obstante o artigo 155 caput do Código de Processo Penal reproduzir a expressão "elementos de informação", é sabido que nosso estatuto processual penal não é primoroso quanto à técnica, mas é sim, pródigo em impropriedades terminológicas, inclusive quando aduz que a autoridade policial tem competência, quando o certo seria atribuição, ou quando faz confusão entre indiciado e acusado etc.

Com o advento da Lei 11.690/08, que proporcionou uma microrreforma no Código de Processo Penal, especificamente no título da "prova", percebe-se que houve uma clara e manifesta vontade do legislador em fortalecer a persecução penal preliminar, isto é, a fase inquisitiva, instrumentalizada pelo inquérito policial.

Parte da doutrina, oligárquica e corporativista, tece críticas infundadas nesse particular. Sustentam que o legislador perdeu oportunidade de transformar nosso sistema processual em acusatório puro.

O relevo do dispositivo é de tamanha proporção que alguns doutrinadores acenam pela vedação da leitura de peças do inquérito policial no tribunal do júri, isso porque, segundo eles, os jurados poderiam decidir exclusivamente com base nas provas pré-processuais do inquérito policial, o que afrontaria o art. 155 caput do Código de Processo Penal.

É quase desnecessário mencionar que no tribunal do júri não vige o princípio do livre convencimento motivado, mas o do julgamento segundo íntima convicção. Aí está mais um argumento da importância do inquérito policial.

Já sustemos antes, e até que haja demonstração em contrário, continuaremos a defender: o inquérito policial é instrumento democrático, e se presta a evitar que se cometam injustiças na fase processual.

Precipuamente, faz-se oportuno colacionar a etimologia da palavra prova, que no esteio das lições de Guilherme de Souza Nucci (Código de Processo Penal comentado, 2. ed. P.293), deriva do latim probatio e significa ensaio, verificação, inspeção, exame, argumento, razão, aprovação ou confirmação.

O inquérito policial tem valoração que transcende à materialidade e indícios suficientes de autoria idôneos à eventual propositura de ação penal por parte do Parquet ou do ofendido, isto é, não se esgota nessa fase, mas antes, o que nele foi amealhado é transportado para a própria fase processual.

Esse é um dos motivos pelos quais é juntado na peça inaugural do processo, e se constitui em mecanismo inarredável para que o julgador se inteire dos fatos, e mais, pode ser crucial no próprio julgamento do magistrado. Desta forma, constata-se que não figura no processo apenas como um conjunto de documentos que já cumpriu a sua finalidade de supedâneo para a denúncia ou queixa-crime e está ali encartado como simples fonte histórica do caso.

Não, o inquérito continua vivo e com potencialidade por vezes suficiente de dirigir o julgamento para um lado ou para o outro. É devidamente valorado novamente pelo juiz, servindo-lhe sim, queiram ou não, como prova.

É o que dispõe o art. 155 do Código de Processo Penal com a redação da Lei 11.690/08: "o juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas".

O vocábulo "exclusivamente" deve ser interpretado lançando-se mão da denominada interpretação contrario sensu, ou seja, o juiz pode dar ao inquérito policial valor probatório decisivo ao seu julgamento, desde que o não faça de forma exclusiva, sendo premente assim, que outras provas, sob o manto do contraditório e da ampla defesa, corroborem ou se harmonizem com os resultados da investigação preliminar.

Assim, a não ser que precitado dispositivo seja revogado ou declarado inconstitucional, por algum fundamento de ordem política, como muitas vezes acontece, o inquérito policial também tem natureza probatória, e não somente informativa.

A tentativa de muitos em procurar fazer uma distinção entre prova, que só subsistiria no processo efetivamente, e elementos de informação, é inútil, já que acabam por se contradizerem afirmando que os elementos de informação são provas extraprocessuais.

Nosso entendimento poderia ser fundamentado na ressalva feita pelo próprio texto legal, quando menciona provas cautelares, não repetíveis e antecipadas, e aí discorreríamos acerca do princípio do contraditório diferido. Caso em que, inclusive, estaria autorizado o julgador a decidir fundamentado exclusivamente nessas provas.

Ocorre que alguns "elementos de informação" são verdadeiras provas, e escapam do contraditório judicial. Cite-se como exemplo, o caso de uma única testemunha que presenciou um crime de homicídio, e depois de ouvida no inquérito policial, mas antes de sua oitiva em juízo, acaba falecendo. Obviamente que não haverá contraditório desse depoimento, e, no entanto, aludido documento poderá ser decisivo no julgamento do magistrado.

Nesse esteio, o próprio artigo de lei em comento se refere textualmente à prova não repetível. Assim, a não ser por um contorcionismo jurídico de exclusão não teria o inquérito policial valor probatório.

Ora, todas as provas têm valor relativo, e com relação ao inquérito policial, se passado pelo crivo do contraditório e da ampla defesa, fica ainda mais robusto, e se não passar, nem por isso deve ser desconsiderado.

Não se faz, por evidente, apologia à renúncia de princípios com tamanha magnitude e importância, encartados na Constituição Federal e fruto de conquistas democráticas. Até porque existe, mesmo que diminuta parcela doutrinária, admitindo a existência do contraditório e da ampla defesa já na fase inquisitorial, e isso para fortalecer as garantias do indivíduo.

Em verdade, quiçá o legislador pudesse ter aproveitado o momento e disciplinado a incidência desses princípios na fase inquisitorial, compatibilizados, evidentemente, com a essência e dinâmica do inquérito policial. Seria um avanço e uma garantia a mais para o indivíduo, uma vez que um indiciamento lhe traz constrangimentos e repercussões por demais negativos.

Não se quer defender o argumento de que o delegado de polícia seria uma espécie de juiz, longe disso. É óbvio que o delegado não tem funções jurisdicionais, mas apenas administrativas. Contudo, como ocorre em outras situações do Direito, o juiz faria posterior controle e homologaria ou não, ratificaria mediante novo contraditório, ou na impossibilidade, como nas provas não repetíveis, algumas cautelares e antecipadas, daria o valor relativo que já é a regra legal inafastável.

Essa providência, não obstante aumentar as garantias do indiciado, conferiria, de outro lado, maior segurança à sociedade, e não desnaturaria o princípio do in dubio pro societate que vige nessa fase. Ao contrário, faria com que fosse mais efetivo, já que na fase judicial, o agora réu, quase que invariavelmente, desmente tudo o que disse na delegacia de polícia, afirmando que foi coagido, justamente porque não se faz obrigatória a presença de advogado, e porque muitas autoridades policiais não tomam a cautela de ouvir determinados indiciados na presença de advogado para dar maior legitimidade à oitiva.

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Da mesma forma, o ofendido que prestou um reconhecimento inequívoco e induvidoso de um suspeito na delegacia de policia, depois em juízo, por ameaças ulteriores, volta a trás e simplesmente afirma que se enganou.

No mesmo passo, testemunhas que antes afirmaram convictas terem presenciado o indiciado praticando o crime, no momento da oitiva processual, mostram-se titubeantes, e nem sempre será possível a prisão por falso testemunho.

É claro que isso tudo teria de passar por amplos debates técnicos e estudos aprofundados, e bem assim investimentos numa melhor estrutura da Polícia Judiciária e do próprio Judiciário.

Não duvidamos que muitos que militam na primeira fase da persecução penal possam, sob alegações peculiares, considerar tudo isso infundado e inviável, ponderando-se que uma possível abertura para a ampla defesa, por exemplo, poderia desnaturar a fase inquisitiva e tornar difícil a colheita de indícios.

Por exemplo, no interrogatório judicial, o preso tem o direito de se entrevistar reservadamente com o seu defensor, e não obstante o art. 6º, V, CPP, disciplinar que devem ser aplicadas na oitiva do indiciado, no quer for cabível, as regras do interrogatório judicial, o preso não tem esse mesmo direito de se entrevistar, e por uma razão simples: não existe ampla defesa.

Não vejo como prejudicial a entrevista do indiciado com o advogado no inquérito policial. E se o indiciado quiser mentir, que minta. Como ensina o Prof. Anderson Garcia, Delegado de Polícia que leciona inteligência policial na Academia de Polícia Judiciária Civil do Mato Grosso: "Quanto mais mentir, melhor, tudo o que eu quero é que ele minta".

E por que eminente professor ensina isso? Porque no moderno sistema processual, a confissão não é o móvel da investigação, e nem buscada como na Idade Média e no Estado policialesco, em que se fomentava a tortura aos investigados, julgamentos viciados e flanco aberto para injustiças de toda a ordem.

Ademais, porque o policial comprometido e eficiente deve ser conhecedor de técnicas de investigação, pautar-se na ética e no profissionalismo. A truculência é artifício do policial preguiçoso, amador, e do que oculta a própria ignorância.

O que se deve ter em mira, conforme já sustentado em outro artigo ("A imprescindibilidade do Inquérito Policial"), embora tenha sido lançado de forma equivocada como princípio, é o atributo inato da dignidade da pessoa humana, inserto no art. 1. º, inciso III da Constituição Federal, pois o inquérito policial não é instrumento cego que visa sempre ao indiciamento de alguém, destinando-se a servir de fonte de condenação, mas o será também mecanismo que impedirá açodados juízos, acusações e condenações injustas.

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Sobre o autor
João Romano da Silva Junior

Delegado de Polícia do Estado de Mato Grosso, graduado em Direito pela Universidade Estadual de Maringá, pós-graduado pela Escola da Magistratura do Paraná/Maringá, especialista em Direito Penal e Processo Penal pela Fundação Escola Superior do Ministério Público de Mato Grosso, Mestrando em Política Social pela Universidade Federal de Mato Grosso.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA JUNIOR, João Romano. A dupla valoração do inquérito policial e comentários sobre a nova redação do artigo 155 do Código de Processo Penal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2483, 19 abr. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14697. Acesso em: 22 nov. 2024.

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