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Neoconstitucionalismo e a nova hermenêutica dos princípios e direitos fundamentais

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09/05/2010 às 00:00
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A Constituição, que durante algum tempo obteve um papel de mera carta política, passa a assumir um papel central no ordenamento jurídico, ampliando a noção do que seria o ordenamento jurídico.

Sumário:1. NEOCONSTITUCIONALISMO 1.1ASPECTO HISTÓRICO 1.2 ASPECTO FILOSÓFICO 1.3 ASPECTO TEÓRICO 1.3.1 O reconhecimento de força normativa à Constituição1.3.2 A expansão da jurisdição constitucional 2. DISCIPLINA JURÍDICA DOS PRINCÍPIOS 2.1 CONCEITO DE PRINCÍPIO 2.2 NORMATIVIDADE DOS PRINCÍPIOS 2.3 PRINCÍPIOS X REGRAS 2.4 FUNÇÕES DOS PRINCÍPIOS 2.5 SOLUÇÕES TEÓRICAS PARA A COLISÃO DE PRINCÍPIOS E CONFLITOS NORMATIVOS 2.5.1 Corrente juspolítica liberal e não utilitarista estadunidense: a proposta de Ronald Dworkin 2.5.2 Corrente dogmática pós-positivista germânica ou alemã: a proposta de Robert Alexy 2.5.2.1 Critério da proporcionalidade 2.5.2.2 A primeira lei de ponderação 2.5.2.3 A segunda lei de ponderação 2.5.3 Corrente jurídica social-democrata portuguesa: a proposta de José Joaquim Gomes Canotilho REFERÊNCIAS


1 NEOCONSTITUCIONALISMO

Vive-se atualmente uma nova época nos estados do Direito Constitucional que se chama Neoconstitucionalismo. Através deste movimento passou-se a considerar um novo paradigma de compreensão, interpretação e aplicação do Direito constitucional moderno.

Consoante lição de Ricardo Maurício Freire Soares (2006, p.83), os pensadores vêm utilizando diversas expressões como "neoconstitucionalismo", "constitucionalismo avançado" ou "constitucionalismo de direitos" com o objetivo de caracterizar um modelo de direito próprio do Estado Constitucional de Direito já existente em alguns países da Europa.

A Constituição que durante algum tempo obteve um papel de mera carta política, passa a assumir um papel central no ordenamento jurídico ampliando a noção do que seria o ordenamento jurídico. A carta magna passou a ser reconhecida como dotada de força normativa, ou seja, aplicabilidade e eficácia de todas as palavras nelas contidas e não uma mera carta de intenções, superando a idéia advinda do iluminismo da centralidade da lei no ordenamento jurídico. Consolidou-se uma teoria dos direitos fundamentais veiculados na constituição, com regras próprias de interpretação e aplicação, bem como se expandiu a jurisdição constitucional, dotando a sociedade de métodos efetivos de controle dos atos da sociedade em desconformidade com a Carta Maior.

Adota-se aqui, para explicar o Neoconstitucionalismo, uma tripartição de sua análise (aspecto histórico, aspecto filosófico e aspecto teórico), baseada nas lições de Luis Roberto Barroso (2005, p. 1), Eduardo Cambi(2007, p.1).

ASPECTO HISTÓRICO

O neoconstitucionalismo é um novo paradigma de compreensão, interpretação e aplicação do direito constitucional ocidental após a segunda guerra mundial. Ele tem como marco as constituições italiana de 1947 e alemã de 1949 (BARROSO, 2005, p. 2). Entretanto, este movimento não se iniciou ao mesmo tempo em todo mundo. Decorreu de um longo processo histórico de conquista e consolidação dos direitos fundamentais e também da institucionalização do Estado Democrático de Direito em cada um dos países. Assim, tem-se que apenas em 1976 pode florescer em Portugal, em 1978, na Espanha e apenas em 1988, no Brasil, com a constituição cidadã.

Durante o período da segunda guerra mundial, os Estados Totalitários realizaram uma série de absurdos do ponto de vista da violação à dignidade básica dos seres humanos, a exemplo do genocídio dos judeus e restrições aos direitos de liberdade, como a impossibilidade de manifestação contrária ao regime estabelecido sob pena de morte. Tudo isso sendo respaldado pelo manto da legalidade, tal qual como concebida à época.

Naquele momento histórico, o direito era entendido como sendo aqueles atos emanados do Estado. Respeitado o processo legislativo formal(caráter objetivo) e sendo emanado do Estado(caráter subjetivo), agente legitimamente competente para produção de normas jurídicas, o ato normativo, independente de seu conteúdo, seria considerado válido e legítimo.

Tal idéia é facilmente perceptível diante do enquadramento apresentado por Hans Kelsen (2000, p. 163-165), quando vislumbra dois tipos básicos de sistemas normativos de acordo com a natureza da norma fundamental: os sistemas estáticos e os sistemas dinâmicos de normas. No primeiro sistema, as normas seriam consideradas válidas, caso seu conteúdo seja deduzível da norma fundamental, ou seja, se há consonância entre conteúdo da norma fundamental e o da norma avaliada. Já nos sistemas dinâmicos, elas serão consideradas válidas caso emanem do sujeito autorizado pela normal fundamental para produção de normas. A ordem jurídica tal qual nós a conhecemos, para Hans Kelsen(2000,p. 165) é justamente um sistema dinâmico. Em síntese, para este jurista, bastaria apenas o respeito ao procedimento formal de elaboração da norma jurídica, independe de seu conteúdo, para que a norma fosse considerada válida e legitima.

Contudo, ao final da guerra, os regimes totalitários não saíram vencedores. Diante disto, a doutrina percebeu os perigos de uma concepção do direito de grande dimensão avalorativa. Percebeu-se a necessidade da criação de um catálogo de direitos e garantias fundamentais para evitar os abusos do Estado(em verdade, de qualquer um que detenha o controle do poder). Mas, além de garantir esses direitos, era indispensável dotar de obrigatoriedade as disposições trazidas, bem como oferecer meios efetivos de controle e respeito aos valores positivados. O Direito como um todo passou a ser analisado no âmbito das relações de poder:

A superação do paradigma da validade meramente formal do direito, em que bastava ao Estado cumprir o processo legislativo para que a lei viesse a ser expressão do direito, resultou da compreensão de que o direito deve ser compreendido dentro das respectivas relações de poder, sendo intolerável que, em nome da "vontade do legislador", tudo que o Estado fizesse fosse legítimo. (CAMBI, 2007, p.4))

A legitimidade da lei decorre da chamada supremacia do parlamento, escolhido como representante da maioria do povo, para estabelecer as premissas da nação. Dentro da ótica do direito nas relações de poder, criou-se a falácia de que então a vontade do legislador, representaria a vontade geral, não podendo ser questionada. A concepção do Estado e da lei como representantes da vontade geral e, portanto, sujeitos legítimos restou superada, desde aquela época.

Consoante as lições de MARINONI (2008, p. 43-45), a idéia de lei como vontade geral e abstrata pressupunha uma sociedade homogênea, composta de homens livres. Ignorava-se a percepção de que na sociedade há desigualdades sociais, concretamente falando. No entanto, posteriormente, concluiu-se que para que o indivíduo pudesse ter uma vida digna, o Estado deveria se preocupar com questões sociais que permitissem a justa inclusão do indivíduo na sociedade e leis foram criadas nesse sentido. Nota-se que a lei não representa a vontade geral, tanto que nos casos de leis que garantam direitos a minorias (como o são as cotas para afro-descentes ou que concedam isenções tributárias para determinado setor, em detrimento da aplicação daquela renda em prol da sociedade) ou leis que aumentem ou criem tributos, nem sempre representam a vontade da maioria da sociedade, porém podem ser consideradas válidas e legítimas. Representam no máximo uma vontade política, entendida como a vontade do grupo mais forte no parlamento.

O que se questiona aqui é a formação de um modelo de legitimidade dos atos emanados do Estado unicamente por critérios formais ou de competência. O parlamento não é uma casa imune de erros e totalmente comprometida com a proporcionalidade e razoabilidade das normas, para que se possa adotar o sistema do controle dinâmico proposto por Hans Kelsen .

O que se buscou com o Neoconstitucionalismo foi a aproximação do direito com a ética, eis que durante certo período histórico e jusfilosófico, ambos andaram dissociados. Para isso foram introduzidos conceitos como razoabilidade, senso comum, interesse público(CAMBI, 2007, p.5), dignidade, justiça, liberdade(SOARES, 2006, p.84), proporcionalidade e uma série de princípios, que são cláusulas gerais as quais permitem a aferição da legitimação do conteúdo da norma no caso concreto. Evolui-se para uma nova forma de relacionamento entre o direito e a moral.

Não bastará que a norma respeite os aspectos meramente formais de elaboração, seja no ponto de vista subjetivo, seja no objetivo, mas também que o conteúdo evidenciado na norma esteja de acordo com os valores veiculados implícita ou explicitamente pela Constituição. Além disso, há hoje a aplicação do neoconstitucionalismo em todo e qualquer processo de produção de normas jurídicas −jurisdicional, administrativo,legislativo e negocial− (DIDIER JR., 2009, p. 29) em que haja relações de poder como gênero. A relação Estado-cidadão é apenas uma espécie, como também o são determinadas relações entre particulares. Por conta disso, a doutrina e a jurisprudência do STF vêm reconhecendo a eficácia horizontal dos direitos fundamentais (aplicabilidade direta dos direitos fundamentais nas relações privadas), por exemplo, nas relações entre condomínio e condôminos e associações e seus associados, quando há exclusão de membro sem o respeito aos princípios da ampla defesa e devido processo legal.

O Estado Democrático de Direito o qual surgiu conjuntamente ao Neoconstitucionalismo serve-se destes institutos como forma de garantir a legitimidade democrática, estabelecendo como um dos pilares deste pensamento o princípio da dignidade da pessoa humana.

1.2 ASPECTO FILOSÓFICO

No ponto de vista filosófico, o Neoconstitucionalismo é uma expressão do pós-positivismo jurídico. Esta escola da filosofia do direito buscou encontrar uma posição intermediária entre duas correntes que lhe precederam: o jusnaturalismo e o positivismo jurídico(BARROSO, 2005, p. 3).

Para o jusnaturalismo, em síntese, há direitos naturais que condicionam o direito positivo face a exigência de uma ideal universal de justiça. O direito estaria ligado a uma noção metafísica que seria considerada por todos os seres humanos em qualquer época como de conteúdo justo.

Inicialmente, a corrente do direito natural surgiu como doutrina para consolidar uma concepção que remonta ao início da humanidade em que o direito adviria de uma fonte divina, de um Deus, a que os homens deveriam crer e obedecer cegamente. Somente depois, com as suas diversas variantes é que aparece a doutrina jusnaturalista condicionando o conceito de direito a uma noção metafísica, que a depender do período histórico, poderia vir de Deus, das limitações dos fatos naturais – forças físicas e biológicas – ou até mesmo da própria condição humana (REALE, 2002, p. 371-372). "Essa doutrina sustenta que há um ordenamento das relações humanas diferente do direito positivo, mais elevado e absolutamente válido e justo, pois emana da natureza, da razão humana e da vontade de Deus"(KELSEN, 2000, p. 12)

O jusnaturalismo pode ser caracterizado por duas afirmativas essenciais (ARAUJO, 2009, p.161-163), quais sejam, o conceito de direito é inseparável do conceito de moralidade e existem não apenas leis positivas, como além disso leis naturais, que permitem a avaliação da qualidade moral das leis positivas. As leis naturais não resultariam de instituições humanas. Resultariam, conforme o momento histórico, de fontes metafísicas. Caso a lei positiva contrariasse o conteúdo de uma norma natural, esta seria considerada como não existente.

O que há de interessante nesta escola é o fato de ela tentar trazer os valores para o direito. Porém, peca em razão de trazer uma concepção muito aberta de direito, não permitindo facilmente ao intérprete identificar as normas que comporiam o ordenamento. Assim, traz instabilidade ao sistema e falta de segurança jurídica. Ressalte-se que nenhuma das numerosas teorias de Direito natural pode definir o conteúdo do ordenamento justo por eles defendido, tal qual é feito pelas ciências naturais(como as leis da física), dentro da ciência jurídica(KELSEN, 2000, p. 14). "Certo ou errado", " dar a cada um o que é seu", são normas excessivamente vagas que não respondem de forma peremptória quem tem o interesse juridicamente protegido e o interesse juridicamente subordinado de modo a ficar com o bem da vida objeto da pretensão.

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Ademais, esta teoria é muito criticada ainda por pressupor uma única idéia de justiça, universal e atemporal. Contudo, modernamente, entende-se o direito como fenômeno cultural (HÄRBELE, 2000) e assim também o é a justiça. Em face disto, conclui-se que a própria idéia de justiça é mutável e diversa de acordo com a época e o grupo social.

A dialética da justiça é marcada por essa intencionalidade constante no sentido da composição harmônica dos valores, sendo esta concebida sempre como momento de um processo cujas diretrizes assinalam os distintos ciclos históricos.

Cada época histórica tem a sua imagem ou a sua idéia de justiça, dependente da escala de valores dominantes nas respectivas sociedades, mas nenhuma delas é toda a justiça, assim como a mais justa das sentenças não exaure as virtualidades todas do justo.(REALE, 2002, p.375)

No passado mulheres já foram apedrejadas por serem consideradas impuras e tal comportamento era respaldado pela pretensa justiça divina como a dos homens. Todavia, tanto imagem de justiça é mutável, que, atualmente, um comportamento de tal ordem nas sociedades ocidentais democráticas, seria considerado repugnante e execrável. O mesmo se diga da aplicação da lei de Talião("olho por olho, dente por dente") e da admissão de relações poligâmicas ou monogâmicas. Não há um justo universal, mas sim aplicação direta do consciente coletivo de um povo em dado momento histórico e localização geográfica.

Em posição antagonista ao Jusnaturalismo, o Positivismo Jurídico considera a existência de um sistema puro de normas. Consubstancia-se na Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen, divorciando-se dos valores, em nome de uma técnica jurídico-científica.

De um modo inteiramente acrítico, a jurisprudência tem-se confundido com a psicologia e a sociologia, com a ética e a teoria política. Esta confusão pode porventura explicar-se pelo fato de estas ciências se referirem a objetos que indubitavelmente têm uma estreita conexão com o Direito. Quando a Teoria Pura empreende delimitar o conhecimento do Direito em face destas disciplinas, fá-lo não por ignorar ou, muito menos, por negar essa conexão, mas porque intenta evitar um sincretismo metodológico que obscurece a essência da ciência jurídica e dilui os limites que lhe são impostos pela natureza do seu objeto.(KELSEN,1998, p.1)(grifou-se)

O Direito normalmente deve ser pensado para ser algo justo. E em razão disto, muitas vezes ele está entrelaçado com a idéia de moral. Contudo, ele não será sempre justo, pois para ele há somente uma questão de dever-ser, e não uma obrigatoriedade. Até mesmo porque a moral é sempre relativa, não existindo uma única moral válida. Dizer que o Direito é sempre justo contraria a essa premissa básica (KELSEN, 1998, p. 45-47). Fundamental perceber que "[...]quando apreciamos ‘moralmente’ uma ordem jurídica positiva, quando a valoramos como boa ou má, justa ou injusta, que o critério é um critério relativo, que não fica excluída uma diferente valoração com base num outro sistema de moral[...]"(KELSEN, 1998, p. 48).

"O Estado cria o direito"(KELSEN, 1998, p. 164). O direito é norma (que deriva da lei), e a norma pensa a conduta dos indivíduos da sociedade. Porém, a interpretação do direito deve estar divorciada da apreciação valorativa dessa sociedade. O próprio Direito já positivaria os valores entendidos como relevantes, estabelecendo a moral coerente para ele. Ao intérprete caberia unicamente aplicar a lei, que, seria a representação da vontade geral, num raciocínio silogístico (premissa maior, premissa menor, logo, conclusão), afastando-se do questionamento quanto aos valores.

Esse sistema era fantástico para os desígnios do capitalismo, por fornecer a todos grande segurança jurídica, já que as normas estariam todas previstas na lei (facilitando conseqüentemente a interpretação e identificação dos interesses juridicamente protegidos), diferentemente do sistema do direito natural que era demasiadamente aberto.

Todavia, como já ressaltado anteriormente, o afastamento da questão ética e da legitimidade, com a utilização da legalidade em sentido forma, conduziu a absurdos durante a segunda guerra mundial.

Os pós-positivismo recorre aos pontos positivos de cada um dos seus antecessores, apresentando-se como uma renovação das proposições pretéritas. " A superação histórica do jusnaturalismo e o fracasso político do positivismo abriram caminho para um conjunto amplo e ainda inacabado de reflexões acerca do Direito, sua função social e sua interpretação"(BARROSO, 2005, p. 4).

Do positivismo trouxe-se a concepção da existência de um ordenamento jurídico positivo, como direito posto. Este elemento foi acolhido diante da grande segurança jurídica que se pode extrair de um sistema de direito posto, evitando surpresas por parte dos cidadãos. Todavia, este ordenamento não ficou alijado de uma concepção moral.

O retorno da ética e da moral ao direito, entrementes, não veio acompanhada da noção metafísica e dos voluntarismos típicos do direito natural. Isso se deu através da inclusão no ordenamento jurídico de uma nova categoria de normas, os princípios, dotados agora de normatividade e coercibilidade, além de cláusulas gerais existentes no corpo das leis positivadas, permitindo ao intérprete a análise no caso concreto numa idéia de justiça.

Os princípios deixaram de ter aplicação secundária, como forma de sanar lacunas, para ter relevância jurídica na realização dos direitos. Outrossim, exemplificam-se as cláusulas gerais através de institutos como a antecipação dos efeitos da tutela jurisdicional, do art. 273, do Código de Processo Civil e atribuição de efeito suspensivo ao Agravo de Instrumento, com previsões como "verossimilhança das alegações" e "dano irreparável ou de difícil reparação", aferíveis apenas no caso concreto, pelo julgador através da interpretação.

1.2.1 PRINCÍPIO DA JURIDICIDADE

Das conclusões advindas do Neoconstitucionalismo e do Pós-positivismo surgiu o chamado princípio da juridicidade, como sendo uma mutação constitucional do princípio da legalidade, decorrente do fenômeno da constitucionalização do Direito.

Quando do seu surgimento, o princípio da legalidade estava extremamente ligado à idéia do controle da atuação dos governantes dos Estados absolutistas, sendo um direito fundamental do cidadão para evitar os abusos do soberano. Visa-se garantir através dele que o Estado se mantivesse fiel à sua finalidade (interesse público), além de preservar as liberdades públicas dos cidadãos.

Entre os particulares, ele tem como conseqüência que estes podem fazer tudo aquilo que não foi proibido pela lei. Tudo aquilo que não é juridicamente proibido, é juridicamente facultado, pois são regidos pelo princípio da autonomia da vontade. Porém, relativamente, ao Estado, "a Administração Pública apenas pode fazer o que a lei permite"(DI PIETRO, 2006, p. 82).

Como obtempera José dos Santos Carvalho Filho (2007, p.17), esta limitação imposta à Administração Pública tem uma enorme conseqüência na esfera do direito dos indivíduos, pois "a própria garantia desses direitos depende de sua existência, autorizando-se então os indivíduos à verificação do confronto entre a atividade administrativa e a lei".

Quando se diz que o princípio da juridicidade é uma mutação constitucional do princípio da legalidade, ressalta-se, em verdade, não a mudança do conteúdo do princípio, que permaneceu um direito fundamental de primeira geração, assegurando prestações negativas (direitos de liberdade), mas sim do próprio conceito de direito ampliando o parâmetro de controle da legalidade.

Ele adveio com a construção do próprio Estado Democrático de Direito (DI PIETRO, 2006, p. 81). " Ao decidir-se por um Estado de direito a constituição visa conformar as estruturas do poder político e a organização da sociedade segundo a medida do direito. Mas o que significa direito neste contexto?"(CANOTILHO, 1993, p. 357).

Na acepção clássica, o princípio da legalidade era adstrito unicamente à noção de lei, pois a lei era o instrumento de veiculação da vontade geral. Em um segundo momento, com o avanço do Constitucionalismo nos países ocidentais, a lei passou a ser um parâmetro insuficiente de controle, face ao crescimento da importância atribuída às Constituições, como base e fonte normativa principal de um Estado. A partir daí, o ordenamento jurídico que gerava restrições e direitos não só ao Estado, quantos aos particulares, passou a enquadrar não somente as leis, mas também as normas constitucionais.

Carecia, entrementes, ainda que o conceito de ordenamento jurídico a servir de parâmetro de controle da atuação estatal, bem como dos indivíduos, englobasse conquistas do pós-positivismo. Os regimes facistas e nazistas da Itália e da Alemanha, já tinham provado ao mundo que mais do que uma noção formalista do direito, era indispensável recompor a noção de justiça ao conceito de direito.

Forma e conteúdo pressupõem-se reciprocamente: como meio de ordenação racional, o direito é indissociável da realização da justiça, da efectivação de valores políticos, económicos, sociais e culturais; como forma, ele aponta para a necessidade de garantias jurídico-formais, de modo a evitar acções e comportamentos dos poderes públicos arbitrários e irregulares. As palavras plásticas de JHERING são aqui recordadas: "a forma é inimiga jurada do arbítrio e irmã gémea da liberdade". (CANOTILHO, 1993, p. 358)

Era necessário trazer os valores para o Direito e a sua inclusão no ordenamento jurídico, além de se evitar que por trás de critérios meramente formais de produção de normas jurídicas, fossem forjadas normas absolutamente execráveis do ponto de vista da legitimidade e da proporcionalidade.

A simples legalidade estrita da atuação estatal passou a ser considerada insuficiente a título de legitimação do direito. Nesse sentido, o sistema não seria legítimo se apenas cumpridas pelo Estado as regras legais que o integram, sendo necessária a ampliação da legalidade para a noção de juridicidade, em cujo bloco inserem-se valores como eficácia, moralidade, segurança jurídica e proporcionalidade. A regra legal tornou-se apenas um dos elementos definidores da noção de juridicidade, que, além de abranger a conformidade dos atos como tais regras, exige que sua produção (e desses atos) observe — não contrarie — os princípios gerais de Direito previstos explícita ou implicitamente na Constituição. (CARVALHO, 2008, p. 53)

Assim, passou-se entender como princípio da juridicidade, a ampliação do que se entendia por ordenamento jurídico, aplicada diretamente ao parâmetro de controle do princípio da legalidade. O ordenamento seria formado de normas-regras e normas-princípio (ver capítulo 2), realçando a importância dos princípios, sejam expressos, sejam implícitos, tendo uma visão muito completa e integral do Direito.

Distingue-se a esfera da juridicidade — domínio amplo do Direito, composto de princípios e regras jurídicas — da esfera da legalidade — circunscrita às regras jurídicas, reduzindo-se somente a última ao sentido estrito de conformidade dos atos com as regras legais. É com noção de juridicidade que se abandona um conceito primário de legalidade, satisfeito com o cumprimento nominal e simplista de regras isoladas. Parte-se em busca da observância íntegra do Direito, compreendido este como um conjunto de normas dentre as quais se incluem os princípios expressos e implícitos, bem como as regras específicas do ordenamento. (CARVALHO, 2008, p. 53)

O Estado deve garantir aos indivíduos indistintamente através das regras de direito padrões de conduta (direito objetivo), mas, ao mesmo tempo, uma distanciação e diferenciação do indivíduo, detendo um caractere subjetivo, de oposição aos poderes públicos, criando direitos fundamentais, liberdades e garantias(CANOTILHO,1993, p.358). Deste modo, incluí-se a justiça no Direito, com uma ordem de domínio dotada de legitimidade plena, sem, contudo, voltar aos valores subjetivos ou princípios suprapositivos. A legitimidade plena e a justiça seriam contrastadas através dos princípios e regras da Constituição(CANOTILHO, 1993, p. 359), realizando o Estado Democrático de Direito.

1.3 ASPECTO TEÓRICO

No aspecto teórico, os pós- positivistas trouxeram três grande inovações à aplicação e compreensão do Direito Constitucional moderno(BARROSO, 2005, p. 4): o reconhecimento de força normativa à Constituição; a expansão da jurisdição constitucional e o desenvolvimento de uma nova dogmática da interpretação constitucional.

Os dois primeiros serão abordados dentro deste tópico do presente capítulo. O último, em vista da sua complexidade e necessidade de aprofundamento terá um capítulo inteiro apenas para discorrer sobre a temática, dentro do capítulo 2, "disciplina jurídica dos princípios".

1.3.1 O reconhecimento de força normativa à Constituição

Reconhecer a força normativa à Constituição é afirmar que ela não é um mero documento político, uma carta de intenções, detendo ela mesma imperatividade e força vinculante.

Na Europa, a partir do séc. XVIII, o crescimento dos movimentos liberais, enaltecendo o princípio da supremacia da lei e do parlamento, fez que fosse retardado o reconhecimento do valor jurídico das constituições (MENDES,COELHO;BRANCO, 2008, p. 181). "A Constituição não tem função de limite ou de garantia[...], não podendo restringir a expressão do povo soberano" (MENDES;COELHO;BRANCO, 2008, p. 186).

Na Revolução Francesa, o povo havia assumido a tarefa não de manter o regime anterior(absolutista) superando suas falhas, mas sim, de superá-lo, tomando o poder. "O povo não poderia ser apenas o autor da Constituição, mas tinha de ser soberano, sem se deixar de travar pela Constituição"(MENDES;COELHO;BRANCO, 2008, p. 186). Logo, a concepção de Constituição a esta época jamais seria uma constituição dotada de força normativa, pois, caso contrário, esta serviria de contenção aos burgueses, que eram os novos soberanos.

Fortalecia-se o parlamento, através da supremacia da lei, como uma forma de garantir a manutenção do status quo pós-revolucionário e o grupo dominante no poder. O reconhecimento da força normativa da constituição se baseia na premissa da supremacia da constituição. Todavia, esta se mostra integralmente inconciliável com a supremacia do parlamento, o que permitiria "explicar o desinteresse dos revolucionários na Europa por instrumentos destinados a resguardar a incolumidade da ordem constitucional" (MENDES;COELHO;BRANCO, 2008, p. 188), reduzindo consideravelmente o papel do judiciário na interpretação e aplicação do conteúdo da constituição(BARROSO, 2005, p. 4-5). Inclusive, em certa medida, isto evidenciou uma subordinação funcional do poder jurisdicional(MENDES;COELHO;BRANCO, 2008, p. 189).

Isto somente veio a ser rompido após a segunda guerra mundial, tendo início com as Constituições Alemã e Italiana. Os horrores cometidos no período da guerra, em meio a um sistema fraco para coibir os abusos estatais aos direitos humanos, provocam a redução da importância do parlamento, e o fortalecimento da Constituição, que a partir daí seria dotada de instrumentos de controle de sua efetividade. Passou-se a conceber a Constituição não como um mero protocolo de intenções dirigidas ao legislador para que a positivasse ou a discricionariedade do Administrador na conformação das políticas públicas, e sim como um uma norma jurídica em sentido pleno, dotada de aplicabilidade e eficácia.

A imperatividade da Constituição veio alinhada ao fortalecimento das normas constitucionais perante toda ordem jurídica. As constituições de vários países do mundo tornaram-se rígidas – ou seja, passaram exigir quorum e processo legislativo diferenciado, com mais dificuldades do que o procedimento para leis ordinárias –, evidenciando o princípio da supremacia da Constituição (BARCELLOS, 2009, p.2).

A complexa articulação da textura aberta da constituição com a positividade constitucional sugere, desde logo, que a garantia da força normativa da constituição não é tarefa fácil, mas se o direito constitucional é direito positivo, se a constituição vale como lei, então as regras e princípios constitucionais devem obter normatividade, (cfr. infra, Parte II, Cap. 3.°) regulando jurídica e efectivamente as relações da vida (P. HECK) dirigindo as condutas e dando segurança a expectativas de comportamentos (LUHMANN). (CANOTILHO, 1993, p.183)

Precisamente por isso, e marcando uma decidida ruptura em relação à doutrina clássica, pode e deve falar-se da "morte" das normas constitucionais programáticas. (CANOTILHO, 1993, p. 184). Diante desta conclusão, extinguem-se as chamadas normas de eficácia programática, subdivisão das normas de eficácia limitada, dentro da classificação que no Brasil ficou conhecida através de José Afonso da Silva (2002, p. 88-166), pois seriam normas que serviriam de mera indicação ao legislador e ao executivo dos caminhos que deveriam ser seguidos.

Reformula-se este conceito de normas programáticas para se entender que até mesmo elas gozariam de normatividade, imperatividade e eficácia, porém, com características um pouco diferentes. Não há na constituição palavras inúteis, sendo todo o seu texto importante, seja para parâmetros de defesa e veiculação de direitos fundamentais (por exemplo, o judiciário garantir o direito fundamental a saúde no caso concreto), seja para impedir que sejam criadas leis ou políticas públicas em sentido contrário à carta magna. Nesse sentido, sintetiza José Gomes Canotilho(1993, p. 184), como se daria a força normativa das normas programáticas:

(1) — Vinculação do legislador, de forma permanente, à sua realização {imposição constitucional);

(2) — Vinculação positiva de todos os órgãos concretizadores, devendo estes tomá-las em consideração como directivas materiais permanentes, em qualquer dos momentos da actividade concretizadora (legislação, execução, jurisdição);

(3) — Vinculação, na qualidade de limites materiais negativos, dos poderes públicos, justificando a eventual censura, sob a forma de inconstitucionalidade, em relação aos actos que as contrariam.

A Constituição finalmente alcança posição central do ordenamento jurídico, passando a todas as demais normas do sistema a serem interpretadas à luz do quanto disposto na carta magna. A este fenômeno nominou-se de revolução copernicana do direito constitucional.

1.3.2 A expansão da jurisdição constitucional

A partir do término dos regimes totalitaristas, inúmeros países ocidentais iniciaram o processo de constitucionalização dos direitos fundamentais. Trouxe-se até à Constituição estes direitos visando dar-lhes uma certa dose de perenidade, eis que a Constituição seria a base normativa de uma sociedade. Juntamente, com a concepção de uma Carta Magna por inteira diretamente aplicável, evitar-se-iam os abusos do Estado e daqueles que detivessem posição de verticalidade. Entrementes, de nada adiantaria dotar a lei maior de eficácia normativa, se não fossem construídos métodos de controle para garantir o seu cumprimento.

As constituições Européias e a Americana desenvolveram sistemas de controle de constitucionalidade atribuindo, na maioria delas, o papel de fiscal ao Poder Judiciário. Os países europeus, de modo geral, adotaram um sistema idealizado por Hans Kelsen, o chamado sistema austríaco. Por esta forma de controle, haveria uma única Corte Constitucional passível de realizar o controle de constitucionalidade, que como um órgão de cúpula, interpretaria a constituição e resolveria os conflitos de constitucionalidade, sempre no plano abstrato, ou seja, a lei em tese. Somente este órgão, que era considerado o Supremo Tribunal teria competência para declarar a inconstitucionalidade da lei, sendo um modelo concentrado.

Já o sistema americano, fundado na força do judicial review, atribui a cada juiz e tribunal a competência para declarar a inconstitucionalidade da norma no caso concreto (incidental, portanto), e não apenas a suprema corte, sendo, portanto, um sistema de controle difuso. Surgiu através do caso MARBURY x MADISON, julgado pela suprema corte americana, declarou a inconstitucionalidade do ato judiciário de 1799, independentemente de qualquer das partes ter provocado tal análise, estabelecendo as bases do controle de constitucionalidade, que deveria ser feito de ofício por qualquer juiz ou tribunal, face ao princípio da supremacia da constituição [01].

No Brasil, após as sucessivas emendas constitucionais, criou-se um sistema misto, contendo tanto o controle concentrado abstrato, quanto o controle difuso incidental, ampliando-se os métodos de controle.

O neoconstitucionalismo surgiu da oposição quanto a legitimidade de alguns atos dos Governantes em governos totalitários. Contudo, poder-se-ia questionar qual seria a legitimidade dos juízes, uma vez que têm formação meramente técnica, não são eleitos pelo voto, para tomar decisões políticas em nome da população, cobertos pela alegação de estar realizando um controle de constitucionalidade(CAMBI, 2007, p. 11).

Apesar de todas as críticas formuladas à supremacia do parlamento, esta assertiva baseia-se na própria idéia de democracia, em que os cidadãos, assim como determinado na Constituição, decidiriam os representantes que decidiriam o futuro do país. Deste modo, as decisões destes membros gozariam de legitimidade atribuída através do voto, representando a vontade geral.

Contudo, com o descrédito que o poder legislativo obteve na sua missão de proteger o interesse público e assegurar os direitos fundamentais, a sociedade necessitou de um órgão que se submetesse menos às ingerências políticas, e fizesse respeitar os comandos constitucionais. A legitimidade dos juízes vem da motivação da suas decisões, ou seja , do argumento.

Fala-se ainda que a judicial review feriria a clássica tripartição dos poderes(axioma do juiz como legislador negativo) e conduziria a ditadura do Judiciário, eis o Judiciário seria o único poder que não sofreria controle externo. A expansão ou restrição da jurisdição constitucional deve ser vista, no contexto de um pêndulo, que vai da autocontenção ao ativismo judicial(CAMBI, 2007, p.12).

O ativismo judicial deve ser reservada à concretização das condições materiais mínimas de tutela da dignidade da pessoa humana(mínimo existencial). "O judiciário ao proceder essa interpretação jurídica, deve apresentar argumentos substanciais de que o ato ou omissão do agente público é incompatível com a constituição" (CAMBI, 2007, p. 14), o que se chama de reserva de consistência (relaciona-se com a fundamentação robusta como legitimação).

A Autocontenção deve ser adotada quando não for superada a tal reserva de consistência, isto é, quando o magistrado não tiver argumentos jurídicos consistentes o suficiente para demonstrar a necessidade de sua interferência na atividade política.

Assim, em nível principiológico, o ativismo judicial deve imperar quando se trate de concretizar os direitos fundamentais inerentes ao que se denominou mínimo existencial e a autocontenção prevalecer, como postura geral, em relação às atividades dos demais poderes. Tudo isso visando à supremacia da constituição e a sua máxima efetividade.

Por fim, cai o mito do legislador positivo. Classicamente, coloca-se o juiz como capaz apenas de declarar a vontade concreta da lei(moldes iluministas), podendo agir no máximo como legislador negativo. Entretanto, tal idéia se amolda ao Estado liberal, no qual apenas se impunha deveres negativos ao Estado (1ª geração de direitos fundamentais), não se compatibilizando com o modelo de Estado previsto na Constituição Brasileira , que requer também prestações positivas.

Ademais, a atividade interpretativa, principalmente, tratando-se de princípios é visivelmente criativa. Quanto mais, quando se resgatam as cláusulas gerais como meio de implementar os direitos fundamentais. A sentença, pois, resulta de uma interpretação dinâmica , e não da lógica formal, sendo a jurisdição atividade criativa.

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Sobre o autor
Isan Almeida Lima

Advogado em Salvador (BA). Sócio da Lima e Lima Advogados Associados. Professor efetivo de Direito processual civil, prática cível e direito civil na Universidade do Estado da Bahia (UNEB), campus VIII. Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Pós-graduado Lato sensu em Direito do Estado pela Faculdade Baiana de Direito/Jus Podivm. Bacharel em Direito pela Universidade Federal da Bahia-UFBA. Professor de Direito Processual Civil, Direito Constitucional e Direito Administrativo em cursos preparatórios da carreira jurídica . Autor de livros e artigos jurídicos em revistas especializadas.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA, Isan Almeida. Neoconstitucionalismo e a nova hermenêutica dos princípios e direitos fundamentais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2503, 9 mai. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14737. Acesso em: 22 nov. 2024.

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