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O derradeiro fim do protesto por novo júri

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O protesto por novo júri foi instituído na legislação pátria na época do império, mais precisamente pelo Código de Processo Criminal de 1832, e visava, originariamente, combater condenações à pena de morte ou à prisão perpétua (galés), consideradas as sanções mais graves do ordenamento jurídico de então. Em virtude da gravidade dessas sanções, concedia-se ao réu uma nova oportunidade de julgamento.

Posteriormente, passou a ser regulamentado pelos artigos 607 e 608 do Código de Processo Penal, tendo como fundamento a quantidade de pena imposta. O artigo 607, caput, do Código de Processo Penal preconizava que "o protesto por novo júri é privativo da defesa, e somente se admitirá quando a sentença condenatória for de reclusão por tempo igual ou superior a vinte anos, não podendo em caso algum ser feito mais de uma vez".

O recurso sempre foi alvo de críticas, pois sua admissibilidade estava ligada unicamente à gravidade da sanção imposta e não a eventual erro no julgamento, levando, ademais, a um injustificável e demasiado prolongamento do processo. O saudoso Júlio Fabbrini Mirabete assim discorria sobre o assunto:

O principal fundamento apresentado para a existência de tal recurso era o de possibilitar sem formalidades o reexame da causa quando aplicadas as penas de morte ou de prisão perpétua face a gravidade de tais sanções. Hoje, diante da abolição de tais sanções, com a única exceção da pena de morte para os crimes militares em tempo de guerra, há várias críticas por manter-se tal espécie de recurso, que revelaria, inclusive, a diminuta crença no julgamento efetuado pelo tribunal popular. [01]

Após quase dois séculos de vigência, o vetusto recurso foi enfim abolido do ordenamento jurídico brasileiro pelo artigo 4º da Lei n.º 11.689/08, o que contou com o aplauso e a simpatia da doutrina nacional:

Embora existissem alguns entusiastas da manutenção do protesto por novo júri, cremos ter sido acertada a decisão de suprimi-lo do cenário legislativo brasileiro, o que se deu em face da edição da Lei 11.689/08. Afinal, não havia pena capital ou de caráter perpétuo, ou mesmo cruel, no Brasil, motivo pelo qual uma segunda chance de julgamento, somente para o contexto da condenação produzida no Tribunal do Júri, onde as penas aplicadas não eram e não são as mais elevadas do Código Penal, soava exagerada. [02]

Uma das mais bem-vindas alterações trazidas pelo advento da Lei n. 11.689/2008 foi a supressão do protesto por novo júri. Cuidava-se de recurso especial, privativo da defesa, admissível quando a sentença condenatória alcançasse 20 anos ou mais de reclusão por um único crime. Poderia ser utilizado uma única vez. Tratava-se de verdadeira excrescência jurídica, a bom tempo extirpado de nosso ordenamento jurídico. Instituto criado em tempos longínquos, nos quais o acusado poderia padecer penas gravíssimas como o desterro, as galés, ou mesmo a pena capital, não mais se justificava a sua permanência nos dias de hoje, em que as penas impostas aos condenados em processos de competência do júri não mais se encontram entre as mais elevadas previstas no Código Penal. [03]

E a questão que se colocou após a abolição do recurso é a seguinte: a Lei n.º 11.689/08, que suprimiu o protesto por novo júri, é retroativa? Ela alcança condenações por crimes ocorridos antes de sua vigência? O tema ganhou relevo principalmente após o julgamento do famoso casal Nardoni, ocorrido na cidade de São Paulo, no final do mês de março de 2010, que teve ampla cobertura da imprensa. Condenados a penas superiores a 20 (vinte) anos de reclusão, os acusados protestaram por novo júri, ao fundamento de que o fato delituoso a eles imputado ocorreu antes da entrada em vigor da Lei n.º 11.689/08. Têm eles realmente direito a novo júri apenas em decorrência da quantidade de pena fixada na sentença?

O tema é controverso e ainda não se tem entendimento solidificado na doutrina e na jurisprudência. Enfrentando o debate e apegados aos princípios da ampla defesa e do duplo grau de jurisdição, os professores Luiz Flávio Gomes, Rogério Sanches Cunha e Ronaldo Batista Pinto defendem a possibilidade de interposição do protesto por novo júri contra condenações por crimes praticados antes da vigência da Lei n.º 11.689/08:

A despeito dessa última observação, andou bem o legislador ao abolir de nosso sistema o protesto por novo júri. Ressalte-se, contudo, que para os crimes perpetrados antes da entrada em vigor da lei, a possibilidade de manejo desse recurso fica mantida. Ou seja: crimes ocorridos até o dia 08.08.2008 ainda admitirão o protesto por novo júri. Trata-se de orientação benéfica ao réu posto que vê assegurada sua possibilidade recursal, existente na data do delito. De tal sorte que, condenado a pena igual ou superior a 20 anos, pela prática de um crime cometido à época em que existia o protesto – e desde que preenchidos os requisitos legais elencados nos revogados arts. 607 e 608 do CPP – deve ser admitido o recurso.

(...)

Pensar-se de forma diversa implicaria em restringir o direito de recurso do réu (recurso que, aliás, neste caso é exclusivo do réu), em afronta à ampla defesa e ao duplo grau de jurisdição, previstos na Constituição de forma expressa (no primeiro caso), e como conseqüência de uma análise sistemática (na segunda hipótese). [04]

No mesmo sentido é a conclusão do Procurador de Justiça no Estado da Bahia, Rômulo de Andrade Moreira, que escreveu valioso e recomendado artigo sobre o tema:

Diante do exposto, entendemos que os dispositivos revogados e que tratavam da possibilidade do protesto por novo júri terão incidência em relação àqueles agentes que praticaram a infração penal anteriormente à entrada em vigor da nova lei, atentando-se para o disposto no art. 2º da Lei de Introdução ao Código de Processo Penal e no art. 2º, do Código Penal.

(...)

Assim, como o crime supostamente praticado pela casal Nardoni ocorreu no dia 29 de março de 2008, concluímos que ambos fazem jus ao Protesto por Novo Júri, ou seja, devem ser levados a novo julgamento pelo Tribunal Popular. [05]

Em que pese o respeito pelas opiniões acima citadas, a razão parece estar com aqueles que não mais admitem o recurso, tenha o delito sido praticado antes ou depois da Lei n.º 11.689/08.

É que as normas reguladoras do protesto por novo júri tinham conteúdo genuinamente processual, sem reflexos na órbita penal, pois apenas dispunham sobre um recurso. Não versavam sobre o status liberdade do réu (sua admissibilidade não implicava a soltura ou a permanência do réu na prisão), tampouco sobre causas de extinção da punibilidade (prescrição, decadência, abolitio criminis e outras). Dessa forma, ante o conteúdo estritamente processual das normas que o disciplinavam, a legislação que revogou o protesto por novo júri tem aplicabilidade imediata, é dizer, aplica-se a todos os processos em curso, independentemente de quando ocorreu o delito, nos termos do artigo 2º do Código de Processo Penal.

Além disso, a supressão do recurso não está relacionada com os princípios da ampla defesa e do duplo grau de jurisdição. O condenado pela prática de delito doloso contra a vida dispõe de vários outros meios para insurgir-se contra a decisão proferida pelo Tribunal do Júri (apelação, habeas corpus e revisão criminal). Não era o protesto por novo júri o único meio de impugnação. Era, sim, repita-se, um recurso ultrapassado, que atentava contra o princípio da economia processual e não encontrava guarida na doutrina nacional, tendo sido em boa hora excluído da legislação.

O mestre Guilherme de Souza Nucci tratou do assunto com a clareza e a profundidade que lhe é peculiar:

As normas que o regiam (arts. 607 e 608, CPP) tinham conteúdo tipicamente processual, sem qualquer ponto de contato com o direito material. Portanto, jamais, poderão ser consideradas normas processuais penais materiais. Disciplinavam a existência de um recurso, benéfico à defesa (como outros ainda perduram: embargos infringentes e de nulidade), que concedia uma segunda chance par o réu condenado a uma pena igual ou superior a vinte anos. Não implicava em soltura ou prisão do acusado, nem tampouco invadia o campo da punibilidade.

(...)

Ora, o protesto por novo júri não provocava a extinção da punibilidade, nem afetava a liberdade do réu. Constituía, apenas, em nova chance para ser julgado pelo Tribunal do Júri. Um direito de caráter processual, mas não penal.

(...)

Os réus a serem julgados pelo Tribunal do Júri, quando já em vigor a Lei n.º 11.689/2008 (agosto de 2008), se condenados a penas iguais ou superiores a 20 anos, não mais poderão invocar o protesto por novo júri, uma vez que inexiste o recurso em nossa legislação. [06]

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O Procurador da República Andrey Borges de Mendonça também defende a abolição do instituto do arcabouço jurídico pátrio, aduzindo que a partir da entrada em vigor da Lei n.º 11.689/08 não é mais possível sua utilização:

Diante destas considerações, entendemos que a partir de 9 de agosto de 2008 não será mais possível a utilização do protesto por novo júri, que está sepultado definitivamente, seja o crime praticado antes ou depois desta data. Ou seja, independentemente da data do fato criminoso, para a interposição do protesto por novo júri será necessário verificar a data da publicação da decisão condenatória. Se for anterior a 9 de agosto de 2008, será possível se valer do recurso mencionado (obedecendo, é claro, aos requisitos de admissibilidade do referido recurso). Se a decisão condenatória for proferida após 9 de agosto de 2008, não terá cabimento o protesto por novo júri. [07]

Corroborando, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo também está se inclinado a não mais admitir o recurso:

HABEAS CORPUS. PROTESTO POR NOVO JÚRI. Alegação de que ao tempo do crime ainda vigia dispositivo legal permitindo o recurso. Entendimento de que o novo preceito não se aplica ao caso, frente ao princípio da irretroatividade da lei penal mais gravosa, por se tratar de norma de conteúdo material ligada à ampla defesa. Inadmissibilidade do pleito. Inteligência do artigo 2°, do CPP, que prevê a imediata aplicação da lei processual penal. Ampla defesa garantida, inclusive porque previsto recurso de apelação na lei vigente. Constrangimento ilegal não evidenciado. Ordem denegada. [08]

HOMICÍDIOS QUALIFICADOS. Sentença condenatória. Alegação de decisão manifestamente contrária à prova dos autos. Pleitos de anulação do julgamento, reconhecimento da ocorrência de crime continuado e redução da pena imposta, ante a menoridade relativa do paciente na data dos fatos. Impossibilidade de exame da matéria na sede restrita do writ constitucional. Apelação interposta pela Defesa, sede em que serão apreciados os pedidos. Pleito alternativo de recebimento do presente habeas corpus como protesto por novo júri. Inadmissibilidade. Instituto abolido pela Lei n° 11.689/08. Ausência de constrangimento ilegal. Ordem denegada. [09]

Assim, força convir que o protesto por novo júri foi definitivamente suprimido do cenário legislativo nacional, mostrando-se irrelevante a data da ocorrência do delito (antes ou depois da entrada em vigor da Lei n.º 11.689/08), de forma que andou bem o magistrado paulista em não admiti-lo contra a decisão que condenou o casal Nardoni a penas privativas de liberdade superiores a 20 (vinte) anos de reclusão.


Notas

  1. MIRABETE, Júlio Fabbrini. Processo Penal, Editora Atlas, São Paulo, 7ª edição, 1997, pág. 649
  2. NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 5ª edição, 2008, pág. 906
  3. BONFIM, Edilson Mougenot. O novo procedimento do júri: comentários à lei n. 11.689/2008, Edilson Mougenot Bonfim e Domingos Parra Neto, Editora Saraiva, São Paulo, 2009, pág. 149/150
  4. GOMES, Luiz Flávio. Comentários às reformas do Código de Processo Penal e da Lei de Trânsito, Luiz Flávio Gomes, Rogério Sanches Cunha e Ronaldo Batista Pinto, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 2008, pág. 260/261
  5. MOREIRA, Rômulo de Andrade. Casal Nardoni tem direito de protestar por novo júri. Artigo publicado no dia 29 de março de 2010, disponível em www.conjur.com.br
  6. Obra citada, pág. 907
  7. MENDONÇA, Andrey Borges de. O protesto por novo júri e o casal Nardoni. Um estudo sobre a aplicação da lei processual penal no tempo. Jus Navigandi, Teresina, ano 14, n.º 2464, 31 de março de 2010, disponível em http://jus.com.br/artigos/14604
  8. TJSP, Habeas Corpus n.º 990.09.257545-7, Rel. Pinheiro Franco, 5ª Câmara de Direito Criminal, julgado em 17/12/2009, publicado em 15/01/2010, extraído do site www.tjsp.jus.br
  9. TJSP, Habeas Corpus n.º 990.09.254052-1, Rel. Tristão Ribeiro, 5ª Câmara de Direito Criminal, julgado em 12/11/2009, publicado em 10/12/2009, extraído do site www.tjsp.jus.br
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Sobre o autor
Pedro Evandro de Vicente Rufato

Promotor de Justiça no Estado do Tocantins. Presidente da Associação Tocantinense do Ministério Público. Assessor Especial da Corregedoria-Geral do Ministério Público (2015/2020). Especialista em Estado de Direito e Combate à Corrupção pela Escola Superior da Magistratura Tocantinense (ESMAT). Especialista em Ciências Criminais pela PUC de Minas Gerais. Especialista em Direito Processual Civil pela PUC de Minas Gerais. Graduado em Direito pela Universidade Estadual Paulista (UNESP)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RUFATO, Pedro Evandro Vicente. O derradeiro fim do protesto por novo júri. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2490, 26 abr. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14740. Acesso em: 22 nov. 2024.

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