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O princípio da dignidade humana como "locus" hermenêutico da nova interpretação constitucional

24/04/2010 às 00:00
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1.INTRODUÇÃO

O ordenamento jurídico está escalonado em diferentes patamares, estando no topo a Constituição Federal, cujas normas e princípios regem a aplicação das demais normas jurídicas, de acordo com o princípio da supremacia da constituição.

Sendo o princípio da dignidade da pessoa humana um dos fundamentos da Republica Federativa do Brasil - constituída em um Estado democrático de direito - importante investigar se esse princípio tem prevalência entre os demais, diante da ausência de hierarquia entre os princípios, cujos conflitos são solucionados através da técnica da ponderação.

O presente trabalho pretende verificar a relevância desse princípio diante da busca por uma nova hermenêutica constitucional que se adapte ao modelo pós-positivista proposto, que apresenta os princípios como regras auto-aplicáveis.

Com essa finalidade, será empreendida pesquisa bibliográfica, com destaque para o material estudado durante a disciplina de Interpretação Constitucional, a fim de se efetuar uma análise crítica do tema.


2.O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE HUMANA COMO LOCUS HERMENÊUTICO DA NOVA INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL

Embora a hermenêutica seja comumente conceituada como a "teoria ou a arte da interpretação" [01], é importante ressaltar a diferença entre as duas atividades. Enquanto a intepretação é a prática concreta, a hermenêutica visa à definição de métodos ou critérios de interpretação, podendo atuar nos diversos ramos do saber (hermenêutica filosófica, hermenêutica jurídica, hermenêutica lingüística).

No Direito, após um longo período de predominância da visão juspositivista – "dedutiva, silogística, subsuntiva e fechada" [02] – esta tem se mostrado cada vez mais insuficiente para solucionar os casos concretos de acordo com uma leitura moral [03] da Constituição, exigência da pós-modernidade, que pretende satisfazer os anseios da sociedade por justiça.

Em especial no âmbito do Direito Constitucional, tal perspectiva pós-positivista tem como propósito dar plena efetividade aos princípios e aos direitos fundamentais, colocando-os no mesmo patamar das regras jurídicas, e como características a valorização da dimensão retórico-argumentativa das decisões judiciais e a reaproximação entre o direito e a ética [04], cujo divórcio havia sido promovido pelo juspositivismo.

Tal dogmática traz, entretanto, em seu bojo, o risco de se transformar em mero decisionismo judicial [05], daí a importância do estudo da hermenêutica, a fim de estabelecer os princípios de Interpretação Constitucional.

Da filosofia Heideiggeriana, aprendemos que a possibilidade de questionar e a compreensão fazem parte da condição essencial do ser humano, sendo designados por aquele filósofo como pre-sença, ou Dasein (ser-aí) [06]. Disso decorre que a tarefa hermenêutica tem como ponto de partida o homem, ser histórico e social, e, portanto, não pode estar dissociada dos preconceitos, preferências e valores do homem de nossa sociedade [07], assim como a tarefa cognitiva não pode estar dissociada dos esquemas [08] (schemata) do aprendiz.

Inegavelmente, a dignidade da pessoa humana é um valor que sempre ocupou um lugar central no pensamento filosófico, político, e jurídico, inclusive tendo sido positivado como valor fundamental da ordem jurídica por parte de um expressivo número de constituições [09].

A idéia de dignidade humana já era encontrada na época clássica, embora então significasse a posição social então ocupada pelo indivíduo e o seu grau de reconhecimento pelos demais membros da comunidade, sendo possível a gradação e a existência de maior ou menor dignidade. Por outro lado, já era então reconhecida como uma qualidade inerente ao ser humano [10].

Antes disso, no entanto, já se encontra raízes do valor da dignidade humana no ideário judaico-cristão. A partir da informação contida no Antigo Testamento de que o homem foi criado "à imagem e semelhança" de Deus (Gênesis 1,26), o Cristianismo extraiu o corolário de que o ser humano é dotado de um valor próprio, que lhe é intrínseco, não podendo ser transformado em objeto ou instrumento, ou tratado como tal [11]. Mais tarde, seria Santo Tomás de Aquino o pioneiro no uso do termo "dignitas humana".

Na Renascença e na Idade Moderna, com o resgate dos clássicos, retornou a vinculação da dignidade com a liberdade pessoal de cada indivíduo, senhor e responsável por seus atos e seu destino, formulada pela filosofia estóica. A partir daí, o conceito de dignidade se funda na capacidade de autodeterminação e na autonomia ética (Kant) do ser humano [12].

A concepção consagrada pela maioria das constituições, no entanto, funda-se no pressuposto jusnaturalista de que "o homem, em virtude tão somente de sua condição biológica humana, e independentemente de qualquer outra circunstância, é titular de direitos que devem ser reconhecidos e respeitados pelos seus semelhantes e pelo Estado". Como algo inerente à sua natureza, a dignidade da pessoa humana é irrenunciável e inalienável [13].

Segundo José Afonso da Silva, a dignidade da pessoa humana é um valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem, tendo sido concebido como referência constitucional unificadora de todos os direitos fundamentais [14].

Na lição de Alexandre de Moraes, o princípio da dignidade da pessoa humana concede unidade aos direitos e garantias fundamentais, sendo inerente às personalidades humanas e constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve considerar [15].

Na constante tarefa de interpretação do texto constitucional o jurista irá trabalhar com regras que não tem hierarquia, mas sim graus de abrangência diferentes, devendo atentar para a harmonização entre as normas, o chamado princípio da concordância prática.

Tal princípio estabelece que deva haver harmonização entre as normas ou valores do texto constitucional. A desarmonia implicaria na negativa de aplicação de uma norma, o que precisa a todo custo ser evitado. Mais do que possibilitar a máxima efetividade possível, o postulado ou princípio da harmonização relaciona-se com o da unidade, na medida em que não se podem admitir contradições.

No dizer de Canotilho:

"[...] o princípio da concordância prática impõe a coordenação e combinação dos bens jurídicos em conflito ou em concorrência de forma a evitar o sacrifício (total) de uns em relação aos outros. O campo de eleição do princípio da concordância prática tem sido até agora o dos direitos fundamentais (colisão entre direitos fundamentais ou entre direitos fundamentais e bens jurídicos constitucionalmente protegidos). Subjacente a este princípio está a idéia do igual valor dos bens constitucionais [...]" [16]

Assim, ainda que confrontado com a não hierarquização dos bens constitucionalmente protegidos, o intérprete não deverá fazer sacrifícios de uns em relação aos outros, utilizando a ponderação para criar certa limitação recíproca entre eles, de forma que haja a harmonização ou concordância prática entre estes bens.

O locus hermenêutico é a sede do sentido, ou seja, eixo a partir do qual se conformam possibilidades de sentido de todas as normas "inferiores". No caso da constituição de 1988 o princípio da dignidade humana irradia-se para todo o texto, no que se convencionou chamar de "constitucionalização" do direito.

Resulta, portanto, que a dignidade humana é o ponto de partida de toda e qualquer ação do ente estatal, paradigma avaliativo de cada ação do Poder Público [17], bem como fundamento de validade da ordem jurídica, sendo princípio norteador de toda interpretação constitucional.


3.CONSIDERAÇÕES FINAIS

Desde sempre, o homem buscou conceituar a dignidade humana como limitadora das relações entre Estado-Indivíduo. O constitucionalismo trouxe essa preocupação para as constituições escritas, o que resultou na positivação da ampla gama de direitos fundamentais.

No caso da República Federativa do Brasil, tal princípio foi positivado em si mesmo, alçado à condição de fundamento do Estado Brasileiro, ao lado de valores como a soberania, cidadania, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e pluralismo político.

Disso resulta que não há como negar que todos os demais direitos fundamentais – individuais, sociais ou transindividuais – derivam do princípio da dignidade da pessoa humana, devendo toda interpretação, quer seja das normas da própria constituição ou das normas infraconstitucionais, observar e respeitar o aludido princípio. Tal princípio adquire, assim, característica de relevância, constituindo locus hermenêutico da nova interpretação constitucional, embora não se possa dizer que seja, em si mesmo, superior aos demais princípios, uma vez que estes não são hierarquizados.

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Com a transição do positivismo para o neoconstitucionalismo, faz-se necessário atentar para o risco de subjetivismos interpretativos, em face da relevância adquirida pela hermenêutica na aplicação do direito. Em se tratando da aplicação da lei a conflitos concretos, há, de um lado, o perigo de um casuísmo irracional, e de outro, a crença em uma única decisão correta.

Contra esses riscos milita a necessidade de se interpretar a constituição a partir do princípio da dignidade da pessoa humana, diminuindo-se a discricionariedade, bem como a necessidade de motivação das decisões judiciais, que permite que estas sejam submetidas a controle.

Por fim, pode-se dizer que a fixação do princípio da dignidade da pessoa humana como locus hermenêutico da interpretação constitucional é uma das estratégias à disposição dos aplicadores do direito para se evitar o ativismo judicial e ao mesmo tempo resgatar a força moral da constituição.


BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

Livros e Textos:

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 5. ed. Coimbra: Livraria Almedina, 1992.

DA SILVA, José Afonso; Curso de Direito Constitucional Positivo. 31ed. São Paulo: Malheiros, 07.2008.

MACIEL, Álvaro dos Santos. A dignidade da pessoa humana como fonte garantidora do progresso social. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 5, no 259. Disponível em: <http://www.boletimjuridico.com.br/ doutrina/texto.asp?id=1925> Acesso em: 26 set. 2009.

MORAES, Alexandre de; Direito Constitucional. 16ed. São Paulo: Atlas, 2004.

SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. Uma Teoria Geral dos Direitos Fundamentais na Perspectiva Constitucional. 10ed. Porto Alegre: Do Advogado, 2009.

Material Disponibilizado pelo Campus Virtual:

APOSTILA DE INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL. Artigo Científico. Disponível, pela diretoria de educação a distância da Universidade Estádio de Sá, da disciplina Teoria Constitucional Contemporânea, do Curso de Pós-Graduação em Direito Constitucional, acesso em 22.08.2009.

O QUE É HERMENÊUTICA. Artigo Científico. Disponível, pela diretoria de educação a distância da Universidade Estádio de Sá, da disciplina Interpretação Constitucional, do Curso de Pós-Graduação em Direito Constitucional, acesso em 22.08.2009.

O POSITIVISMO JURÍDICO E SUAS PRINCIPAIS CARACTERÍSTICAS. Artigo Científico. Disponível, pela diretoria de educação a distância da Universidade Estádio de Sá, da disciplina Interpretação Constitucional, do Curso de Pós-Graduação em Direito Constitucional, acesso em 22.08.2009.

A RECONSTRUÇÃO NEOCONSTITUCIONALISTA DO DIREITO E A LEITURA MORAL DA CONSTITUIÇÃO. Artigo Científico. Disponível, pela diretoria de educação a distância da Universidade Estádio de Sá, da disciplina Interpretação Constitucional, do Curso de Pós-Graduação em Direito Constitucional, acesso em 29.08.2009.

A RUPTURA EXEGÉTICA E AS CARACTERÍSTICAS DA NOVA DOGMÁTICA POSPOSITIVISTA. Artigo Científico. Disponível, pela diretoria de educação a distância da Universidade Estádio de Sá, da disciplina Interpretação Constitucional, do Curso de Pós-Graduação em Direito Constitucional, acesso em 29.08.2009.

TEOREMAS DA DIFERENÇA ONTOLÓGICA E DO CÍRCULO HERMENÊUTICO. Artigo Científico. Disponível, pela diretoria de educação a distância da Universidade Estádio de Sá, da disciplina Interpretação Constitucional, do Curso de Pós-Graduação em Direito Constitucional, acesso em 22.08.2009.

DO PROBLEMA METODOLÓGICO AO PROBLEMA ONTOLÓGICO – A IMPORTÂNCIA DA HERMENÊUTICA FILOSÓFICA. Artigo Científico. Disponível, pela diretoria de educação a distância da Universidade Estádio de Sá, da disciplina Interpretação Constitucional, do Curso de Pós-Graduação em Direito Constitucional, acesso em 22.08.2009.


Notas

  1. O QUE É HERMENÊUTICA. Artigo Científico. Disponível, pela diretoria de educação a distância da Universidade Estádio de Sá, da disciplina Interpretação Constitucional, do Curso de Pós-Graduação em Direito Constitucional, acesso em 22.08.2009.
  2. O POSITIVISMO JURÍDICO E SUAS PRINCIPAIS CARACTERÍSTICAS. Artigo Científico. Disponível, pela diretoria de educação a distância da Universidade Estádio de Sá, da disciplina Interpretação Constitucional, do Curso de Pós-Graduação em Direito Constitucional, acesso em 22.08.2009.
  3. A RECONSTRUÇÃO NEOCONSTITUCIONALISTA DO DIREITO E A LEITURA MORAL DA CONSTITUIÇÃO. Artigo Científico. Disponível, pela diretoria de educação a distância da Universidade Estádio de Sá, da disciplina Interpretação Constitucional, do Curso de Pós-Graduação em Direito Constitucional, acesso em 29.08.2009.
  4. A RUPTURA EXEGÉTICA E AS CARACTERÍSTICAS DA NOVA DOGMÁTICA POSPOSITIVISTA. Artigo Científico. Disponível, pela diretoria de educação a distância da Universidade Estádio de Sá, da disciplina Interpretação Constitucional, do Curso de Pós-Graduação em Direito Constitucional, acesso em 29.08.2009.
  5. Ibidem.
  6. TEOREMAS DA DIFERENÇA ONTOLÓGICA E DO CÍRCULO HERMENÊUTICO. Artigo Científico. Disponível, pela diretoria de educação a distância da Universidade Estádio de Sá, da disciplina Interpretação Constitucional, do Curso de Pós-Graduação em Direito Constitucional, acesso em 22.08.2009.
  7. DO PROBLEMA METODOLÓGICO AO PROBLEMA ONTOLÓGICO – A IMPORTÂNCIA DA HERMENÊUTICA FILOSÓFICA. Artigo Científico. Disponível, pela diretoria de educação a distância da Universidade Estádio de Sá, da disciplina Interpretação Constitucional, do Curso de Pós-Graduação em Direito Constitucional, acesso em 22.08.2009.
  8. Termo cunhado por Piaget para designar as estruturas mentais ou cognitivas pelas quais os indivíduos intelectualmente se adaptam e organizam o meio.
  9. SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. Uma Teoria Geral dos Direitos Fundamentais na Perspectiva Constitucional. 10ed. Porto Alegre: Do Advogado, 2009, p. 99.
  10. Idem, p.98
  11. Ibidem.
  12. Idem p. 99.
  13. Idem p. 100.
  14. DA SILVA, José Afonso; Curso de Direito Constitucional Positivo. 31ed. São Paulo: Malheiros, 07.2008, p. 105.
  15. MORAES, Alexandre de; Direito Constitucional. 16ed. São Paulo: Atlas, 2004, p.52.
  16. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 5. ed. Coimbra: Livraria Almedina, 1992, p. 234.
  17. MACIEL, Álvaro dos Santos. A dignidade da pessoa humana como fonte garantidora do progresso social. Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 5, no 259. Disponível em:<http://www.boletimjuridico.com.br/ doutrina/texto.asp?id=1925> Acesso em: 26 set. 2009.
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Sobre a autora
Maria Thereza Tosta Camillo

Analista Judiciária - Justiça Federal do Rio de Janeiro. Especialista em Direito Constitucional, Universidade Estácio de Sá). Bacharel em Direito pela Universidade Estácio de Sá. Habilitada no Exame de Ordem, área Direito Administrativo (OAB-RJ, 2008.3). Bacharel em Letras - Português/Inglês pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CAMILLO, Maria Thereza Tosta. O princípio da dignidade humana como "locus" hermenêutico da nova interpretação constitucional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2488, 24 abr. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14746. Acesso em: 23 dez. 2024.

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