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Quesitação no procedimento do tribunal do júri e seus reflexos para o direito administrativo disciplinar

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28/04/2010 às 00:00
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3.a nova quesitação do procedimento do tribunal do júri à luz da lei n. 11.689/08

Como já consignado, a Lei n. 11.689/08 alterou o procedimento dos processos submetidos ao Tribunal do Júri, gerando reflexos ainda em assimilação pela doutrina.

Um reflexo ainda não detectado está na mudança de quesitação e sua influência na esfera disciplinar, exatamente com lastro nos postulados acima citados acerca da influência da sentença criminal absolutória nessa esfera.

Na atual concepção, a decisão será tomada por maioria de votos, ou seja, quatro ou mais votos, contudo, haverá situações em que será impossível saber o fundamento a absolvição.

A lei em comento trouxe o novo art. 483 do Código de Processo Penal, segundo o qual os quesitos a serem formulados aos jurados corresponderão à indagação sobre:

I – a materialidade do fato;

II – a autoria ou participação;

III – se o acusado deve ser absolvido;

IV – se existe causa de diminuição de pena alegada pela defesa;

V – se existe circunstância qualificadora ou causa de aumento de pena reconhecidas na pronúncia ou em decisões posteriores que julgaram admissível a acusação.

Havendo a absolvição nos termos do inciso I ou II, afetos à materialidade e à autoria ou participação, a sentença absolutória surtirá efeito na esfera disciplinar, devendo o militar, se expulso, demitido ou sancionado com outra punição disciplinar, ter reconhecida a invalidade da punição e, em consequência, ser reintegrado às fileiras da Instituição Militar ou ter eliminada de seu Assentamento Individual (registro profissional) a punição não exclusória aplicada [11].

O problema, no entanto, refere-se ao terceiro quesito, que sem nenhuma argumentação jurídica pergunta apenas se o acusado deve ser absolvido.

Em outros termos, após vencidas as deliberações acerca da materialidade do fato e da autoria (ou participação), uma vez confirmadas, é quesito obrigatório, em terceiro momento, a indagação se os jurados absolvem o acusado. Veja-se que, como afirmam Edilson Mougenot Bonfim e Domingos Parra Neto [12], a pergunta é sugestiva de absolvição, não perguntando se o acusado é "culpado de ter cometido o fato", como no sistema francês, ou se é culpado ou inocente (guilty or not guilty), como na Inglaterra, nem se permitindo uma terceira via, como no sistema escocês em que podem os jurados optar por considerar o acusado culpado, inocente ou reconhecida a insuficiência de provas (not proven), que traria importante reflexos cíveis, entre os quais a possibilidade de discussão ou não acerca do dever de reparação do dano.

Assim, o novel modelo poderá impedir o conhecimento da fundamentação da absolvição, no terceiro quesito, desconhecendo-se, por exemplo, se houve ou não a legítima defesa, já que os jurados apenas respondem se absolvem ou não o acusado, independentemente da prevalência de uma ou outra tese defensiva.

Acerca do problema, muito bem sintetizam Eloísa de Souza Arruda e César Dario Mariano da Silva:

"No primeiro quesito, se indagará sobre a materialidade do fato, ou seja, sobre a existência concreta do crime, o que, na maioria das vezes, pode-se demonstrar com laudo elaborado por peritos médicos.

No segundo quesito, serão os jurados indagados sobre a autoria ou a participação no crime.

Mas a grande inovação reside no quesito relativo às teses absolutórias. A questão posta aos jurados será simplesmente se eles absolvem o acusado. Assim, invocada qualquer causa que exclua o crime ou isente o réu de pena, será ela incluída num só quesito, a ser votado pelos julgadores leigos nesse momento. Ou seja, em uma única pergunta estarão incluídas todas as teses defensivas, mesmo que alternativas e aparentemente incompatíveis. Este quesito somente será votado quando reconhecidas a materialidade e a autoria ou participação no crime.

A despeito da inegável simplicidade da pergunta posta aos jurados por determinação do legislador, alguns problemas certamente advirão.

Sustentada mais de uma tese defensiva, não se saberá ao certo qual o fundamento da absolvição, visto que os julgadores populares julgam pelo sistema da íntima convicção, não necessitando explicitar as razões do seu convencimento. E a defesa poderá alegar diversas teses, antagônicas ou não, ou até mesmo pedir clemência aos jurados, que poderão acolhê-las, dando ensejo à absolvição.

Com efeito, apresentadas diversas teses, reconhecendo quatro ou mais jurados uma delas, o resultado será a absolvição, mesmo que o motivo do convencimento seja distinto.

No procedimento estabelecido pelo Código de Processo Penal de 1941, somente seria o caso de absolvição se ao menos quatro dos jurados acolhessem a mesma tese. Pelas novas regras, caso sejam apresentadas hipoteticamente quatro teses de defesa (ex: legítima defesa real, legítima defesa putativa, estado de necessidade e clemência), aceitando cada jurado uma delas, o resultado será a absolvição, sem haver a possibilidade de se saber qual o seu fundamento. Assim, mesmo que as razões da persuasão sejam diversas, poder-se-á chegar a um veredicto absolutório. " [13].

Ainda a apontar o problema trazido pela nova quesitação, Edilson Mougenot Bonfim e Domingos Parra, expõem que a nova sistemática causará perplexidade, exemplificando:

"(...). Imagine-se, por exemplo, que a única tese apresentada pela defesa seja a de negativa de autoria. Afastada a tese, respondidos afirmativamente os quesitos relativos à materialidade e à autoria e participação, deverá o juiz presidente, ainda assim, indagar aos jurados se absolvem o acusado. Respondendo negativamente, nenhum problema se suscita, eis que os jurados confirmam a condenação. Todavia, se os jurados responderem afirmativamente ao quesito, absolvendo o acusado, qual o fundamento da absolvição? O resultado de um julgamento decidido nestes termos trará perplexidade, e, havendo recurso do órgão acusador, parece-nos que não resta outra alternativa ao tribunal ad quem senão ordenar que o réu seja submetido a novo julgamento, por ser a decisão dos jurados manifestamente contrária à prova dos autos" [14].

Em arremate, Gustavo Octaviano Diniz Junqueira e Guilherme Madeira Dezem, com a perspicácia peculiar, deflagram:

"Embora seja digna de elogios a tentativa do legislador de, com este quesito, resolver uma série de problemas, aglutinando-se em um único quesito todas as teses defensivas possíveis, é de se criticar seu reducionismo, o qual não contemplou a miríade de possibilidades que cercam a vida das pessoas e – não nos esqueçamos – da relevância que tal questão tem no Direito, visto que é disso que substancialmente trata" [15].

A situação até aqui exposta importará em um problema a ser dirimido pelo Direito Administrativo Disciplinar, até agora não detectado pelos operadores do Direito, consistente na consequência disciplinar em face de uma absolvição na terceira quesitação. No terceiro quesito, a impossibilidade de conhecimento do fundamento da absolvição trouxe um gravame ao jurisdicionado, de sorte que não será evidente o necessário reconhecimento de causa de justificação e, consequentemente, não será necessária a eliminação da punição disciplinar, por exemplo, gerando a reintegração de um militar demitido. No caso do estado de São Paulo, de se notar, essa situação interferirá também na possibilidade recursal em processos regulares de praças.

Como bem sintetizaram os autores acima, os jurados não precisam indicar o fundamento de seus votos, manifestando apenas se condenam ou absolvem o acusado, ainda que por clemência, em alinho ao sistema e valoração das provas pela íntima convicção. Esse sistema, também chamado da livre convicção ou da certeza moral do juiz, permite que o jurado avalie a prova com ampla liberdade, decidindo ao final de maneira a aplicar o direito segundo sua livre convicção, não estando obrigado "a fundamentar suas decisões e seu veredicto, o que acaba por se resumir a simples sentença – culpado ou inocente. Isto porque este sistema está baseado na idéia de certeza moral do julgador e na sua própria vontade, não lhe exigindo a explicitação de justificativas na exposição de suas razões de julgamento" [16].

Para exemplificar, imagine-se um militar do Estado de São Paulo que esteja sendo processado pelo delito de homicídio perante o Tribunal do Júri, lembrando-se que hoje, para os militares Estaduais, com as inovações legal e constitucional, mesmo os crimes militares serão submetidos ao Júri quando dolosos contra a vida de civil. Ao mesmo tempo, dito militar responde, em observância à autonomia das esferas sustentada, a um processo administrativo que resulte, antes do julgamento do crime, na aplicação da sanção disciplinar de expulsão. Anos depois, no julgamento pelo Júri, os jurados decidem afirmativamente pela materialidade e pela autoria, ou seja, os dois primeiros quesitos, entendendo, todavia, em terceira avaliação, que o réu deve ser absolvido. No entanto, aproveitando o exemplo de César Dario e de Eloísa Arruda, a defesa apresentou as teses de legítima defesa real, legítima defesa putativa, estado de necessidade e clemência, não sendo possível, pela nova sistemática aferir o fundamento da decisão. Terá esse militar ou não direito à reintegração nos termos do § 3º do art. 138 da Constituição do Estado de São Paulo, com as limitações trazidas pela doutrina e jurisprudência?

Curioso notar que, se o caso se referisse a uma decisão colegiada da Justiça Militar, como no caso de um homicídio doloso praticado de militar da ativa contra militar na mesma situação, onde o Conselho de Justiça, por diferentes fundamentos, decidisse pela absolvição, a solução seria clara e não parece poder fugir, como muito bem propôs Ronaldo Roth, da fundamentação mais favorável ao réu.

Nos termos consignados pelo citado autor:

"A diversidade de causas absolutórias no julgamento colegiado castrense sempre determinará - com a explicitação de todos os fundamentos legais divergentes do artigo 439 do CPPM na sentença -, o aproveitamento do fundamento legal que for mais favorável ao réu, seja em caso de empate ou não, para fins de repercussão da decisão judicial transitada em julgado no cível ou perante a Administração Pública Militar" [17].

Frise-se que na Justiça Militar avalia-se a prova pelo livre convencimento motivado, de modo que cada integrante o Conselho de Justiça irá motivar sua decisão, o que não ocorre no Conselho de Sentença do Tribunal do Júri, não sendo possível aplicar a mesma solução, já que não se conhecem os fundamentos da absolvição.

Resta, agora, buscar a solução para o problema acerca da vinculação ou não do ilícito disciplinar à sentença absolutória nos casos de absolvição no Tribunal do Júri de militar por crime que também configure transgressão no momento do terceiro quesito.

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Algumas soluções, embora propostas, devem ser rechaçadas.

Em primeiro plano, seria possível sustentar que, por exemplo, um militar do Estado expulso, não poderia pleitear sua reintegração à instituição diante de uma sentença absolutória nas condições versadas, justamente pela falta de fundamentação. Mais ainda, a nova realidade levaria à proibição de a Administração Militar proceder a reintegração, por falta de amparo legal. Não parece, com a devida vênia, ser essa visão razoável, porquanto estar-se-ía negando argumento próprio do Direito Administrativo que, sob o escudo do princípio da autotutela, autoriza a própria Administração Pública a rever seus atos, buscando alinhá-los a princípios outros, como a proporcionalidade, a legalidade, a moralidade etc.

Em segunda linha, poderão alguns defender que o juiz, ao formular o terceiro quesito, deveria explorar as teses defensivas, de sorte a encontrar o fundamento da absolvição, e, em consequência, possibilitando que a esfera administrativa seja afetada pela sentença absolutória. Também não pode essa solução prosperar, pois não é essa a visão consignada pelo novel procedimento, que buscou simplificar a quesitação sob argumento compreensível pelo Conselho de Sentença, sem o preciosismo verificado em profundas teses defensivas.

Poder-se-ía ainda defender que nesses casos, diante de teses defensivas diversas e a absolvição no terceiro quesito sem indicação de uma delas, a Administração Militar estaria obrigada a acolher a tese defensiva mais favorável ao militar demitido ou expulso, isso com a necessidade de compulsar os autos e verificar os argumentos da defesa. Ilógica, para não dizer perigosa, essa visão, pois, sabedores dessa premissa, os defensores ao militarem no Tribunal do Júri, ainda que sem nenhum lastro, sempre alegariam a legítima defesa, por exemplo, para, em caso de absolvição, ainda que intimamente ligada à não convicção dos jurados pela suficiência das provas produzidas, alcançarem sucesso na via administrativa.

Rechaçadas as anteriores, a postura que parece mais adequada é torneada pela tão sustentada independência das esferas, podendo a Administração Militar, fundamentadamente, decidir pela manutenção da punição aplicada em face da absolvição ou, caso seja convencida de que o caso mereça revisão, realizar a reintegração do demitido (ou expulso) ou a anulação a punição aplicada, entendendo, por exemplo, que, embora a sentença absolutória não tenha incursionado pela tese defensiva, a arguta peça produzida pelo defensor evidencia a legítima defesa e, em conseqüência, calcada no princípio da autotutela, a Administração Militar procederá a revisão e reforma do ato punitivo. Frise-se bem que o exemplo idealizado parte da pluralidade de teses defensivas, contudo, em havendo tese única, a legítima defesa, por exemplo, também não se conhecerá como fundamento de absolvição no terceiro quesito, reiterando-se a liberdade da Administração Militar para decidir o caso.


4.CONCLUSÃO

Por tudo o que foi aduzido, conclui-se que a inovação trazida ao procedimento do Tribunal do Júri, embora tenha o escopo de facilitar a participação popular simplificando a quesitação, teve como conseqüência reflexa a impossibilidade de se conhecer os fundamentos da absolvição na sentença, impedindo que a peça absolutória surta efeito favorável também na via administrativa nos casos de absolvição referente ao terceiro momento da quesitação ao Conselho de Sentença.

Nesse contexto, parece ser a única solução entender que nesses casos de absolvição, a Administração Militar estará livre para valorar as provas, sem se preocupar com os reflexos da sentença absolutória, devendo, diante da provocação por recurso ou remédio autônomo, a exemplo do exercício do direito de petição, compulsar as peças produzidas, para decidir. Nesse sentido, com o fito de litigar de forma plausível, o pedido de revisão da punição (por via recursal ou autônomo) deve ser instruído com as peças necessárias para a reavaliação da questão por parte da Administração Militar.

A conclusão acima, é preciso que se diga, não tem o escopo de engessar o entendimento, mas apenas de inaugurar um debate que se espera instalar, consignando-se um primeiro ponto de vista que carece, como todo raciocínio jurídico, de constantes "revisitações" que permitam, dia-a-dia, agregar novos conceitos e premissas, mais maturados com o passar dos estudos.

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Sobre o autor
Cícero Robson Coimbra Neves

Promotor de Justiça Militar em Santa Maria/RS. Mestre em Direito Penal pela PUC/SP (2008) e em Ciências Policiais de Segurança e Ordem Pública pelo Centro de Altos Estudos de Segurança da Polícia Militar de São Paulo (2013). Foi Oficial Temporário do Exército, de Artilharia (1989 a 1991), e Oficial da Polícia Militar do Estado de São Paulo, ingressando na Reserva não Remunerada no posto de Capitão (1992 a 2013). Foi professor de Direito Penal Militar na Academia de Polícia Militar do Barro Branco (2000 a 2013).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NEVES, Cícero Robson Coimbra. Quesitação no procedimento do tribunal do júri e seus reflexos para o direito administrativo disciplinar. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2492, 28 abr. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14761. Acesso em: 24 abr. 2024.

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