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A possibilidade de corte do fornecimento de energia elétrica por débito pretérito (estimado em decorrência de fraude no consumo).

Uma tentativa de reversão da jurisprudência

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11/05/2010 às 00:00
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7. Conclusões:

1ª. O regime econômico e financeiro da concessão do serviço de energia elétrica previu a contraprestação do usuário, representada em termos do pagamento de um preço pelo consumo. Especificamente as Leis 8.987/95 e Lei 9.427/92 previram que o usuário do serviço assume uma contraprestação financeira, cuja não satisfação autoriza o corte do fornecimento de energia elétrica. Em se tratando de consumidor pessoa privada (física ou jurídica), a concessionária tem direito de proceder à suspensão diante de inadimplemento, sendo suficiente a notificação prévia, pois em tal situação o corte (em regra) não tem relação com nenhum direto interesse da coletividade.

2ª. O contrato que o usuário assina com a concessionária, termina por gerar o vínculo obrigacional que autoriza esta a exigir o cumprimento de sua contraprestação. Sem a satisfação de sua própria e específica obrigação, prevista em lei e assumida em negócio jurídico contratual, consistente na prestação positiva de realizar o pagamento do preço, o usuário não pode pretender a execução da prestação da outra parte. Em outras palavras, a empresa distribuidora de energia não pode ser compelida a continuar fornecendo o serviço se não recebe a compensação prestacional da outra parte. Em sendo privada a relação entre o concessionário e o usuário, é admissível por aquele o recurso a faculdades próprias das partes em contratos regidos pelo direito privado, especificamente a da exceção de contrato não cumprido (art. 476 do C.C.), que permite a um dos contraentes deixar de cumprir com sua obrigação quando haja descumprimento da do outro.

3ª. As Leis (8.987/95 e Lei 9.427/92), ao estatuírem o direito ao corte na hipótese de inadimplência, não fizeram distinção em relação a débito novo ou antigo (decorrente da medição de faturamento não apurado em razão de fraude no consumo). Assim, não especificando a lei a natureza do débito que autoriza o corte, não poderia o intérprete restringir o alcance dos dispositivos legais, em atenção ao princípio hermenêutico Ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus, ou seja, onde a lei não distingue, não pode o intérprete distinguir. Se a lei não menciona que o corte só pode acontecer na hipótese de inadimplemento de conta regular, relativa ao mês de consumo, não poderia o julgador restringi-lo em relação a débitos antigos.

4ª. A atual jurisprudência do STJ, que faz distinção entre débito novo (relativo à fatura do último mês de consumo) e débito antigo (decorrente de apuração de consumo não faturado em decorrência de fraude), admitindo o corte de energia na primeira situação e impedindo-o na segunda, desconsidera o sistema integrado de normas que regulam o setor de distribuição de energia no país, além de gerar a gritante incongruência de o bem (energia elétrica) ser considerado essencial (e, assim, impedido o corte) em um determinado momento e em outro, não. O STJ já afastou o argumento da essencialidade do bem para os casos de (simples) inadimplência do usuário, mas continua a utilizá-lo para obstaculizar o corte de energia em relação ao fraudador, o que é inexplicável. Se a essencialidade do bem serve de fundamento para obstaculizar a suspensão de seu fornecimento, então em toda e qualquer situação não poderia haver corte. Se o bem é essencial para manutenção de necessidades básicas do consumidor, a sua fruição não pode ser interrompida. O que não pode é ora o bem ser essencial e ora não sê-lo. A postura da Corte de Justiça, por conseguinte, é incompreensível. O mais grave é que a distinção é feita em prejuízo do consumidor honesto, que não se utiliza de meios fraudulentos para burlar a medição regular do consumo. A jurisprudência atual, portanto, além de tudo representa um incentivo à fraude.

5ª. O corte de energia elétrica é um direito que assiste ao Poder Público ou a seu concessionário, no caso de inadimplência do usuário. Decorre de disposição legal e, por isso mesmo, jamais poderia ser considerado um expediente constrangedor ou qualquer tipo de ameaça ou infração a direitos do consumidor. A permanência do serviço para o fraudador, sem o efetivo pagamento, quebra o princípio da igualdade das partes e ocasiona o enriquecimento sem causa.

6ª. A perspectiva para o fornecedor de energia elétrica de poder realizar o corte do fornecimento em caso de inadimplemento (ainda com mais razão quando o não cumprimento da obrigação decorre de fraude) é uma forma de garantir a continuidade, qualidade e eficiência da prestação do serviço para toda a sociedade. Essa garantia foi dada legalmente (nas Leis 8.987/95 e Lei 9.427/92) ao distribuidor, sobretudo para possibilitar a diminuição dos custos de sua atividade e, por decorrência, a modicidade das tarifas do serviço. Uma descabida intervenção judicial nessa equação pode ter o efeito de interferir no equilíbrio do setor elétrico, notadamente nos custos da distribuição de energia. Pode inviabilizar o sistema de distribuição de energia elétrica, tal qual foi pensado e deliberado politicamente, pelos representantes eleitos do povo. Ao se impedir o corte de energia elétrica do fraudador, está-se subvertendo a ordem econômica do setor.

7ª. Impedir o prestador do serviço de realizar o corte, mesmo quando constatada a fraude, a par de gerar insegurança jurídica, estimular o cometimento de crimes e interferir no equilíbrio econômico-financeiro dos contratos de concessão, é também medida socialmente injusta. Não existindo qualquer norma constitucional ou infraconstitucional obrigando a que o prestador privado (concessionário de serviço de fornecimento de energia elétrica) garanta o fornecimento quando não ocorre o pagamento da contraprestação do usuário, o impedimento do corte da energia elétrica do consumidor fraudador (inadimplente por ter fraudado o faturamento do consumo) representa uma injustiça para com o restante da comunidade, formada por consumidores honestos e que procuram pagar suas contas em dia.

8ª. Não existe um direito subjetivo constitucional de acesso universal, gratuito, incondicional e sem qualquer custo ao fornecimento de energia elétrica. Daí que uma política pública de caráter social no setor elétrico pode ser viabilizada no sentido de prever tarifas mais baixas para determinadas categorias de usuários, mas nunca isentando completamente e sem qualquer critério o usuário do pagamento de sua contraprestação. A natureza social do serviço de distribuição deve ser entendida no sentido de que é um bem destinado a toda comunidade, e não somente a uma parcela dela, e que como um bem finito, envolve a racionalização do custo financeiro de sua geração e distribuição. Por isso, todos os que consomem esse bem escasso devem pagar por ele, nos termos das previsões legais. As parcelas mais pobres da sociedade, ou seja, os consumidores de baixa renda são beneficiados através de desconto na tarifa da energia elétrica. Já existe lei estabelecendo as bases da política social para o setor de distribuição de energia elétrica (Lei 12.212/10), fincada na previsão de tarifas reduzidas para os consumidores de baixa renda, sem desmantelar o regime constitucional da concessão desse serviço, que prevê a contraprestação do usuário mediante pagamento do preço. O que não se admite é uma intervenção judicial que desconsidere todo o sistema integrado de normas para dispensar um consumidor qualquer de sua contrapartida remuneratória, sem exigência de qualquer ordem e sem levar em conta sua classe social e capacidade econômica.


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Notas

  1. Representativos desse entendimento podem ser citados os seguintes acórdãos: STJ: AgRg no Ag 886502/RS, DJ de 19/12/2007; REsps nºs 756591/DF, DJ de18/05/06; 772486/RS, DJ de 06/03/06; e 772781/RS, DJ de 10/1005.
  2. O procedimento de "revisão do faturamento", para o caso de identificação de conduta irregular (do usuário) que provoque faturamento inferior ao correto ou mesmo ausência de faturamento, está previsto no inc. IV do art. 72 da Resolução n. 456, de 29 de novembro de 2000, da ANEEL – Agência Nacional de Energia Elétrica. Os critérios para realizar a "revisão do faturamento", ou seja, para o preposto da concessionária poder estimar a diferença entre os valores faturados a menor (por causa da irregularidade) e os que deveriam ter sido regularmente apurados, estão descritos nas alíneas "a", "b" e "c" do inciso IV.
  3. O inc. I do art. 90 da Resolução n. 456, de 29 de novembro de 2000, da ANEEL, permite que a concessionária suspenda de imediato o fornecimento de energia quando verifica a fraude no consumo. Na verdade, além da cobrança da diferença apurada (em razão do erro de medição causado pelo emprego de procedimentos irregulares), a Resolução 456 da ANEEL autoriza a distribuidora de energia a cobrar do usuário o custo administrativo adicional pela revisão do faturamento (art. 73, caput) e a proceder a suspensão do fornecimento de energia elétrica (arts. 73, parágrafo único, 74 e 90).
  4. As normas contidas no art. 6º, § 3º, II, da Lei 8.987/95 (Lei das concessões de serviços públicos) e art. 17 da Lei 9.427/96 (Lei que instituiu a ANEEL e disciplinou o regime das concessões dos serviços de energia elétrica) permitem o corte do fornecimento da energia em caso de inadimplemento, sem fazer distinção quanto a débito pretérito ou se relativo à fatura do último mês de medição.
  5. O impedimento ao corte vai gerar a possibilidade de o fraudador requerer indenização por danos morais, toda vez que a distribuidora realizar a suspensão. Foi o que ocorreu em julgamento do TJRN, que reconheceu a configuração de dano moral nessa hipótese. Em recurso especial, tendo como relator o Min. Mauro Campbell Marques, o STJ reformou o acórdão do tribunal estadual, mas se colocou na incômoda posição de ter que reconhecer a ilicitude do corte de energia em relação a débito pretérito (estimado em razão de fraude no medidor) e, por outro lado, ter que afastar a configuração do dano moral (REsp 1070060-RN). Dissecaremos mais adiante esse e outros julgados sobre a questão do dano moral por corte de energia em caso de fraude no consumo, em item específico deste trabalho.
  6. Não existe norma constitucional prevendo a gratuidade universal, como princípio informativo da atividade dos concessionários, daí que a própria Lei de concessões e permissões vigente no país (Lei n. 8.987/95) prevê a existência de uma política de tarifa pública remuneratória à prestação dos serviços de distribuição de energia elétrica. A Lei 9.427/96 (que disciplinou o regime das concessões dos serviços de energia elétrica), por sua vez, estabelece que o regime econômico e financeiro da concessão de serviço público de energia elétrica, conforme estabelecido no respectivo contrato, compreende a contraprestação pela execução do serviço, paga pelo consumidor final com tarifas baseadas no serviço pelo preço (art. 14, I).
  7. No art. 6º, § 3º, II, da Lei 8.987/95 (Lei das concessões de serviços públicos) e no art. 17 da Lei 9.427/96 (Lei que instituiu a ANEEL e disciplinou o regime das concessões dos serviços de energia elétrica).
  8. Diante do inadimplemento do consumidor, parte da jurisprudência inclinou-se por inadmiti-lo, ao argumento da essencialidade do bem em questão e da característica de continuidade do serviço de fornecimento de energia elétrica, com apoio no art. 22 do CDC (Lei 8.078/90), que consagra o princípio da continuidade dos serviços públicos essenciais. O Poder Público ou seu delegado só ficaria autorizado a proceder à cobrança executiva do débito, sob pena de infringir o art. 42 do mesmo diploma, que proíbe o uso de expedientes constrangedores na cobrança de dívidas a consumidores. Essa corrente prevaleceu durante algum tempo na Primeira Turma do STJ, tendo o Min. José Augusto Delgado sido o relator do acórdão padrão que resultou no assentamento desse entendimento (ver o acórdão proferido no ROMS 8915-MA, unânime, j. 12.05.98, DJ 17.08.98). Posteriormente, essa jurisprudência ficou superada, por ter a Corte passado a entender que o direito à continuidade do serviço público, como está assegurado ao consumidor no art. 22 (bem como no § 1º do art. 6º, da Lei 8.987/95), não significa que não possa haver corte do fornecimento na hipótese de inadimplência do consumidor. Para maiores detalhes sobre o assunto, sugerimos a leitura de nosso artigo "Ações judiciais para impedir o corte do fornecimento de energia elétrica – alguns apontamentos sobre sua natureza e a autoridade competente para julgá-las", publicado no site Jus Navigandi, disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/5215>.
  9. A Defensoria Pública do Estado de São Paulo ajuizou ação civil pública (Processo n. 576.01.2009.049673-1) com pedido de antecipação de tutela na 2ª Vara Cível da Comarca de São José do Rio Preto – SP, objetivando, essencialmente, que fosse determinado à Companhia Paulista de Força e Luz – CPFL o imediato religamento da energia para os consumidores que tiveram seu fornecimento suspenso em decorrência de fraude ou violação de medidor de consumo. O Juízo de 1º grau deferiu o pedido de antecipação de tutela e determinou, para todos os consumidores, "o imediato restabelecimento do fornecimento de energia," ou a não-interrupção, "nos casos de débitos pretéritos e estimados em decorrência de suposta fraude ou violação de medidores". Inconformada, a CPFL interpôs recurso de agravo de instrumento (Processo n. 990.09.251986-7) no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. O Desembargador relator recebeu o recurso apenas no efeito devolutivo, daí o pedido de suspensão de liminar (SLS n. 1.136-SP) apresentado no STJ.
  10. O instrumento da suspensão da execução de liminar é previsto no art. 4º. da Lei n. 8.437, de 30.06.02, o qual prediz que o Presidente do tribunal poderá suspender a execução de liminar ou sentença contra o Poder Público, em caso de manifesto interesse público ou de flagrante ilegitimidade, e para evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas.
  11. Em item específico deste trabalho, examinaremos mais detalhadamente os termos dessa decisão do Presidente do STJ (SLS 1.136-SP).
  12. Tendo em vista a co-originariedade entre direito e moral, de certa forma abandonada pelo positivimo.
  13. Décio Zylbersztajn e Rachel Sztajn. Direito & Economia. Análise Econômica do Direito e das Organizações.Rio de Janeiro: Elsevier 2005.p.103-104.
  14. Armando Castelar Pinheiro. Direito e economia num mundo globalizado: cooperação ou confronto. Disponível: www.an.org.br/arquivo/destaques/armando_castelar_pinheiro.pdf.Acesso em 09.out.2007. Apud
  15. Manuel Castells. A sociedade em rede. 2 ed.v.1 São Paulo: Paz e Terra, 1999, p 12-18.
  16. O ativismo judiciário, ao invés de configurar propriamente um problema, revela um lado positivo da atuação dos juízes brasileiros, em uma sociedade carente da concretização de direitos fundamentais. De fato, o "ativismo" geralmente se manifesta quando o Poder Legislativo se mostra incapaz para suprir as demandas sociais pela concretização de direitos, daí o surgimento da atitude mais avançada do Judiciário, como protagonista de decisões que implicam em escolhas morais e implementação de políticas públicas e, portanto, preenchendo espaços políticos antes reservado aos outros poderes. Como explica Luís Roberto Barroso, "o ativismo judicial é uma atitude, a escolha de um modo específico e proativo de interpretar a Constituição, expandindo o seu sentido e alcance. Normalmente ele se instala em situações de retração do Poder Legislativo, de um certo descolamento entre a classe política e a sociedade civil, impedindo que as demandas sociais sejam atendidas de maneira efetiva" (em Judicialização, Ativismo Judicial e Legitimidade Democrática, artigo publicado no site Conjur, em 22.12.08). Mas, como alerta o citado constitucionalista, "decisões ativistas devem ser eventuais, em momentos históricos determinados", pois "não há democracia sólida sem atividade política intensa e saudável, nem tampouco sem Congresso atuante e investido de credibilidade".
  17. Luís Roberto Barroso, ob. cit.
  18. Em Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito, artigo publicado na Revista de Direito Administrativo n °240, 2005.
  19. "Na medida em que uma questão – seja um direito individual, uma prestação estatal ou um fim público – é disciplinada em uma norma constitucional, ela se transforma, potencialmente, em uma pretensão jurídica, que pode ser formulada sob a forma de ação judicial. Por exemplo: se a Constituição assegura o direito de acesso ao ensino fundamental ou ao meio-ambiente equilibrado, é possível judicializar a exigência desses dois direitos, levando ao Judiciário o debate sobre ações concretas ou políticas públicas praticadas nessas duas áreas" (Luís Roberto Barroso).
  20. Esse último fator de "judicialização" das relações sociais é descrito por Luís Roberto Barros como "ascensão institucional do Poder Judiciário". Descreve esse fenômeno na seguinte passagem de sua obra:
  21. "Uma das instigantes novidades do Brasil dos últimos anos foi a virtuosa ascensão institucional do Poder Judiciário. Recuperadas as liberdades democráticas e as garantias da magistratura, juízes e tribunais deixaram de ser um departamento técnico especializado e passaram a desempenhar um papel político, dividindo espaço com o Legislativo e o Executivo. Tal circunstância acarretou uma modificação substantiva na relação da sociedade com as instituições judiciais, impondo reformas estruturais e suscitando questões complexas acerca da extensão de seus poderes" (em Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito).

  22. Demócrito Reinaldo Filho. Comentários à Lei 9.099/95. Editora Saraiva. 1995.
  23. Demócrito Reinaldo Filho. Ob. cit.
  24. As penas previstas para a litigância de má-fé, no art. 14 e seguintes do CPC, parecem não ser suficientes para desestimular as lides temerárias. Isso ocorre pela dificuldade de cobrança posterior da multa aplicada e até mesmo pela exagerada parcimônia que os juízes revelam na aplicação dessas sanções processuais.
  25. Lei n.º 9.307/96.
  26. Pedro Câmara Raposo Lopes faz considerações sobre aspectos sociológicos de nossa formação cultural, que levam os brasileiros a preferirem a solução estatal a qualquer outra forma de solução de conflitos, comprometendo o passivo judicial. Diz ele: "Sociologicamente, explica-se a morosidade pela formação ibérica do povo brasileiro, que recebe com suspeita todo ato que não conte, de alguma forma, com o sufrágio estatal. Confia-se mais no terceiro imparcial do que na contraparte que, assim como o interessado, conhece a fundo a raiz do negócio comum. Avulta a cultura do carimbo, da "cartorização", da jurisdição graciosa como meio de oficialização de atos particulares absolutamente inanes à ordem jurídica justa. O Poder Judiciário deixou de ser a ultima ratio. Ao invés, é o primeiro passo na resolução de conflitos de interesses que vão desde o pequeno entrevero entre vizinhos até as grandes demandas societárias. Esta peculiar característica da formação da personalidade do homem brasileiro, tomada de empréstimo do homem ibérico por sua gênese, amesquinha as tentativas mais bem intencionadas de reduzir o passivo judicial, como, verbi gratia, as medidas paraestatais de solução de conflitos (mediação, arbitragem e quejandos) que não encontraram no solo brasileiro terreno virente, justamente pela carência do elemento judicial a lhe conferir a chancela estatal (absolutamente desnecessária nos povos de tradição oriental ou anglo-saxã)." (em Judiciário deve refletir sobre os impactos das decisões, artigo publicado no site Conjur, em 14.01.09, acessível em: http://www.conjur.com.br/2009-jan-14/poder_judiciario_refletir_impactos_economicos_decisoes ).
  27. Ele explica que essa "criatividade" é ainda uma herança do período de ditadura pelo qual passou o Brasil. Na explicação de Streck, como o cidadão quase não tinha direitos antes da Constituição de 1988, os juízes tinham de usar de todo conhecimento e imaginação para encontrar brechas e contornar o autoritarismo legal. Vinte anos depois, os juízes ainda não se acostumaram com a lei prevendo tantos direitos para o cidadão. "Os juízes, que agora deveriam aplicar a Constituição e fazer a filtragem das leis inconstitucionais, passaram a achar que sabiam mais do que o constituinte. Saímos da estagnação para o ativismo" (entrevista para o site Consultor Jurídico, intitulada "Justiça Lotérica – Ativismo judicial não é bom para a democracia", publicada no dia 15.03.09, podendo ser acessada no seguinte link: http://www.conjur.com.br/2009-mar-15/entrevista-lenio-streck-procurador-justica-rio-grande-sul ).
  28. No art. 170, mas também dispersos por outros dispositivos.
  29. Claro que, mesmo focados na economia de mercado, o conjunto de princípios que regem a atividade econômica consagram importantes institutos de proteção ao ser humano.
  30. A Constituição está impregnada de uma série de valores e princípios que visam à realização da democracia econômica, por meio da regulação do mercado e da atividade econômica. O Estado deve garantir as condições para o crescimento econômico como condição para erradicar a pobreza, promovendo o crescimento justo e equitativo para suprir as necessidades de emprego, alimentação, energia, água e saneamento. O Estado apóia os agentes econômicos nacionais, na sua relação com o resto do mundo e, de modo especial, os agentes e atividades de contribuam positivamente para a inserção dinâmica do nosso país no sistema econômico mundial. O Estado incentiva e apóia, nos termos da lei, o investimento externo que contribua para o desenvolvimento econômico e social do país. É garantida, nos termos da lei, a coexistência dos setores público e privado na economia. Enfatiza-se, como deveres do Estado, em democracia econômica, os de assegurar uma concorrência sã, a fiscalização da atividade econômica para verificação do cumprimento das leis e regulamentos, a qualidade, regularidade e acessibilidade a bens de consumo e a serviços públicos fundamentais (água, electricidade, telecomunicações, etc.), a qualidade e o equilíbrio ambientais, o ordenamento territorial e o planeamento urbanístico equilibrados.
  31. Repercussões econômicas de decisões judiciais preocupam magistrados, entrevista do Des. Rogério Gesta Leal para o portal do STJ, publicada no dia 29.03.09, no seguinte endereço:
  32. http://www.stj.jus.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp?tmp.area=398&tmp.texto=91452

  33. Ressaltando que não se trata de defender um Judiciário completamente neutro diante de questões sociais que se lhe apresentam, notadamente quando se trata de conferir proteção contra a violação de direitos fundamentais, Rogério Gesta Leal alerta para o risco da "substituição de um dirigismo sempre estatal centrado no Executivo para um focado no Judiciário" (ob. cit., p. 90).
  34. Josilene Hernandes Ortolan e Norma Sueli Padilha, em "O Impacto Econômico do Direito: em busca de uma economia mais justa e de um direito mais eficiente", trabalho publicado nos Anais do XVII Congresso Nacional do CONPEDI, realizado em Brasília – DF, nos dias 20, 21 e 22 de novembro de 2008.
  35. Josilene Hernandes Ortolan e Norma Sueli Padilha, ob. cit.
  36. Josilene Hernandes Ortolan e Norma Sueli Padilha, ob. cit.
  37. Para saber mais sobre a questão dos impactos econômicos das decisões judiciais e as teorias hermenêuticas pós-positivistas, recomendamos a leitura do nosso artigo "A PREOCUPAÇÃO DO JUIZ COM OS IMPACTOS ECONÔMICOS DAS DECISÕES - Uma análise conciliatória com as teorias hermenêuticas pós-positivistas", publicado na Revista Eletrônica Jus Navigandi, Teresina, ano 13, n. 2299, 17 out. 2009, disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/13707>.
  38. Sobre a cláusula da garantia do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos de concessão, Rogério Gesta Leal explica que esta garantia econômica "coloca a realização do serviço público por pessoa de direito privado em uma situação segura no sentido de ter resguardada a saúde orçamentária de tal mister, haja vista que tal cláusula contratada em regime público não se submete às mutações unilaterais da Administração, sob pena de inviabilizar a própria concessão ou permissão, quando lhe onera o ofício de forma insuportável" (Condições e Possibilidades Eficaciais dos Direitos Fundamentais Sociais – Os desafios do Poder Judiciário no Brasil, Porto Alegre. Livraria do Advogado Editora, 2009, p. 142).
  39. Ob. cit., p. 141.
  40. A tarifa de energia elétrica é o preço definido pela ANEEL - Agência Nacional de Energia Elétrica que deve ser pago pelos consumidores finais de energia elétrica. Pelo regime tarifário do Preço-Teto, a Aneel avalia os custos gerais e a receita requerida por uma determinada concessionária e define os níveis tarifários a serem cobrados dos consumidores residenciais (população em geral) e das demais classes de consumidores.
  41. No art. 6º, § 3º, II, da Lei 8.987/95 (Lei das concessões de serviços públicos) e art. 17 da Lei 9.427/96 (Lei que instituiu a ANEEL e disciplinou o regime das concessões dos serviços de energia elétrica).
  42. STJ, Corte Especial, acórdão unânime, j. 20.03.06, DJ 10.04.06.
  43. Essa decisão monocrática do Ministro Cesar Asfor Rocha foi proferida no dia 10.02.10 e publicada no DJe de 18.10.02. Contra ela foi interposto agravo regimental, que se encontra pendente de julgamento pela Corte Especial.
  44. O pedido de suspensão da eficácia de decisão contrária ao Poder Público é endereçado ao presidente do tribunal competente para conhecer do respectivo recurso. Diversas leis atualmente disciplinam os pedidos de suspensão de liminares no âmbito de diferentes demandas envolvendo o Poder Público. Com efeito, o pedido de suspensão pode ser formulado contra liminar ou sentença proferidas: (a) em mandados de segurança (art. 4º, da Lei 4.348/64), (b) em ações civis públicas (art. 12, § 1º, da Lei 7.347/85 c/c art. 4º, § 1º, da Lei 8.437/92), (c) em ações cautelares (art. 4º, caput e § 1º, da Lei 8.437/92), (d) em ações populares (art. 4º, caput e § 1º, da Lei 8.437/92) e (e) em ações no âmbito das quais tenha sido deferida tutela antecipatória ou tutela específica (art. 1º da Lei 9.494/97 c/c art. 4º da Lei 8.437/92). O incidente de suspensão também será cabível para sustar a eficácia da sentença que conceder o habeas data (art. 16 da Lei 9.507/97).
  45. O art. 4º. da Lei 8.437/92 estabelece que o presidente do tribunal, ao qual couber o conhecimento do respectivo recurso, pode suspender a execução da liminar nas ações movidas contra o Poder Público ou seus agentes, "em caso de manifesto interesse público ou de flagrante ilegitimidade, e para evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas".
  46. O princípio da continuidade do serviço público essencial apenas impõe para o prestador (Poder Público ou seu delegatário) a obrigatoriedade de prosseguir em sua exploração, depois que implantá-lo em uma determinada área e para um grupo delimitado de usuários, não podendo, posteriormente, simplesmente deixar de prestá-lo, segundo suas próprias conveniências. A respeito dos serviços públicos essenciais, Hely Lopes Meirelles já explicava que: "estes serviços, desde que implantados, geram direito subjetivo à sua obtenção por todos aqueles que se encontram na área de sua prestação ou fornecimento, e satisfaçam às exigências regulamentares" (MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Municipal Brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 265). Para o Prof. Caio Tácito, o princípio da continuidade do serviço público impõe ao concessionário o dever de prosseguir na exploração do mesmo, ainda que tal atividade seja ruinosa, pois à Administração incumbe, correlatamente, partilhar das cargas extraordinárias, restaurando a economia abalada e a eficácia da execução do contrato (TÁCITO, Caio. Direito Administrativo. São Paulo: Saraiva, 1974, p. 209. Apud LEAL. Rogério Gesta. Condições e Possibilidades Eficaciais dos Direitos Fundamentais Sociais – Os desafios do Poder Judiciário no Brasil. Livraria do Advogado Editora. Porto Alegre, 2009). No mesmo sentido, o Prof. Mário Masagão ensina que "a continuidade significa que as necessidades públicas, a cuja satisfação se destina o serviço, não devem ser atendidas esporadicamente, mas de forma ininterrupta e constante" (MASAGÃO, Mário. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1974, p. 254. Apud LEAL. Rogério Gesta. Condições e Possibilidades Eficaciais dos Direitos Fundamentais Sociais – Os desafios do Poder Judiciário no Brasil. Livraria do Advogado Editora. Porto Alegre, 2009). Assim, por exemplo, se uma determinada concessionária resolve levar sua rede de distribuição elétrica a uma comunidade longínqua do interior de um Estado, e os membros dessa comunidade passam a se servir desse serviço, não pode em momento posterior, verificando que a expansão não teve o retorno econômico desejado, simplesmente deixar de prestar o serviço. O princípio da continuidade implica na obrigação da permanência da disponibilização do serviço, a não ser em caso de caso fortuito ou força maior. O que ele não significa é que o prestador esteja obrigado a prestar o serviço, mesmo não cumprindo o consumidor com sua obrigação de pagamento do preço.
  47. O artigo em questão tem a seguinte redação:
  48. "Art. 6º Toda concessão ou permissão pressupõe a prestação de serviço adequado ao pleno atendimento dos usuários, conforme estabelecido nesta Lei, nas normas pertinentes e no respectivo contrato.

    (...)

    § 3º Não se caracteriza como descontinuidade do serviço a sua interrupção em situação de emergência ou após prévio aviso, quando:

    I - motivada por razões de ordem técnica ou de segurança das instalações; e,

    II - por inadimplemento do usuário, considerado o interesse da coletividade".

  49. O interesse da coletividade, que impede a suspensão do fornecimento de energia, pode excepcionalmente ficar configurado mesmo na hipótese de consumidor privado (pessoa física ou jurídica), caracterizado por circunstâncias peculiares que o distinguem da comunidade dos usuários. Seria o caso, e.g., da hipótese em que o corte tivesse de recair sobre um consumidor submetido a tratamento de doença, e que dependesse do funcionamento de um determinado aparelho elétrico para manutenção de sua vida. Nesse caso, haveria um interesse superior de preservação da vida do consumidor de energia elétrica, que justificaria o impedimento ao corte. Fora desses casos excepcionais, onde o corte poderia inclusive conflitar com direitos de base constitucional, não há impedimento.
  50. Os critérios para revisão do faturamento estão dispostos nas alíneas a, b e c do inc. IV do art. 72 da Res. 456, com a seguinte redação:
  51. "Art. 72. Constatada a ocorrência de qualquer procedimento irregular cuja responsabilidade não lhe seja atribuível e que tenha provocado faturamento inferior ao correto, ou no caso de não ter havido qualquer faturamento, a concessionária adotará as seguintes providências:

    (...)

    IV - proceder a revisão do faturamento com base nas diferenças entre os valores efetivamente faturados e os apurados por meio de um dos critérios descritos nas alíneas abaixo, sem prejuízo do disposto nos arts. 73, 74 e 90:

    a)aplicação do fator de correção determinado a partir da avaliação técnica do erro de medição causado pelo emprego dos procedimentos irregulares apurados;

    b)na impossibilidade do emprego do critério anterior, identificação do maior valor de consumo de energia elétrica e/ou demanda de potência ativas e reativas excedentes, ocorridos em até 12 (doze) ciclos completos de medição normal imediatamente anteriores ao início da irregularidade; e

    c)no caso de inviabilidade de utilização de ambos os critérios, determinação dos consumos de energia elétrica e/ou das demandas de potência ativas e reativas excedentes por meio de estimativa, com base na carga instalada no momento da constatação da irregularidade, aplicando fatores de carga e de demanda obtidos a partir de outras unidades consumidoras com atividades similares".

  52. A possibilidade de cobrança do custo administrativo pelo procedimento de revisão do faturamento está disciplinada no art. 73 da Resolução, que tem a seguinte redação:
  53. "Art. 73. Nos casos de revisão do faturamento, motivada por uma das hipóteses previstas no artigo anterior, a concessionária poderá cobrar o custo administrativo adicional correspondente a, no máximo, 30 % (trinta por cento) do valor líquido da fatura relativa à diferença entre os valores apurados e os efetivamente faturados.

    Parágrafo único. Sem prejuízo da suspensão do fornecimento prevista no art. 90, o procedimento referido neste artigo não poderá ser aplicado sobre os faturamentos posteriores à data da constatação da irregularidade, excetuado na hipótese de auto-religação descrita no inciso II, art. 74."

  54. A possibilidade de corte de energia, nesses casos, está prevista em diversos dispositivos, mas é tratada de maneira mais completa no art. 90, assim redigido;
  55. "Art. 90. A concessionária poderá suspender o fornecimento, de imediato, quando verificar a ocorrência de qualquer das seguintes situações:

    I - utilização de procedimentos irregulares referidos no art. 72;

    II - revenda ou fornecimento de energia elétrica a terceiros sem a devida autorização federal;

    III - ligação clandestina ou religação à revelia; e

    IV - deficiência técnica e/ou de segurança das instalações da unidade consumidora, que ofereça risco iminente de danos a pessoas ou bens, inclusive ao funcionamento do sistema elétrico da concessionária".

  56. Ver, e.g., o acórdão proferido no REsp 363943-MG, rel. Min. Humberto Gomes de Barros, j. 10.12.03, DJ de 01.03.04.
  57. A jurisprudência anterior permitia o corte por débito do fraudador. Nesse sentido: AgRg no REsp 969.928/RS, 1ª. Turma, rel. Min. Francisco Falcão, j. 02.10.2007, DJ 12.11.2007 p. 196; EDcl no REsp 956.172/SP, 1ª. Turma, rel. Ministro Francisco, j. 02.10.07, DJ 22.11.2007, p. 206; EDcl no REsp 786165 / SP, 2ª. Turma, rel. Min. Castro Meira, j. 15.08.06, DJ 25.08.06, p. 328; REsp 631843 / MG, 2ª. Turma, rel. Min. Eliana Calmon, j. 28.06.05, DJ 15.08.05; REsp 41557/SP, 1ª. Turma, rel. Min. Cesar Asfor Rocha, j. 23.05.94, DJ 20.06.94.
  58. No AgRg no REsp 820665/RS, rel. Min. José Delgado, 1ª. Turma, j. 18/05/06, DJ 08/06/06.
  59. Representativos dessa linha de pensamento, ainda podem ser citados os seguintes acórdãos: REsp 772.486/RS, Primeira Turma, Rel. Min. Francisco Falcão, DJ de 06.03.2006; AgRg no REsp 854002/RS, Rel. Ministro Luiz Fux, 1ª. Turma, julgado em 15.05.2007, DJ 11.06.2007, p. 282; AgRg no Ag 752292/RS, Rel. Ministra Denise Arruda, 1ª. Turma, julgado em 21.11.2006, DJ 04.12.2006, p. 268; REsp 834.954/MG, Rel. Ministro Castro Meira, 2ª. Turma, julgado em 27.06.2006, DJ 07.08.2006, p. 213; REsp 914828/RS, Rel. Ministra Eliana Calmon, 2ª. Turma, julgado em 08.05.2007, DJ 17.05.2007, p. 232; REsp 975.314/RS, Rel. Ministro Castro Meira, 2ª. Turma, julgado em 20.09.2007, DJ 04.10.2007 p. 229.
  60. O Des. Cândido Saraiva, do Tribunal de Justiça de Pernambuco, adverte que a essencialidade do bem (energia elétrica) pode até ser invocada em favor do consumidor honesto (simples inadimplente), mas jamais em favor do fraudador: "Não se pretende repudiar o caráter de essencialidade do serviço de fornecimento de energia elétrica. Tal característica, no entanto, deve ser considerada em relação àqueles que pagam regularmente o serviço recebido. Pensar de forma diversa encoraja a inadimplência e - o que é tanto ou mais relevante - onera e põe em risco a prestação do serviço para toda a coletividade, o que, por si só, é razão suficiente para caracterizar o direito da Agravante". (TJPE- 2ª. Câmara Cível, Agravo de Instrumento n. 89503-6, rel. Des. Cândido Saraiva).
  61. A jurisprudência do STJ inclinou-se inicialmente por inadmitir o corte, ao argumento da essencialidade do bem em questão e da característica de continuidade do serviço de fornecimento de energia elétrica, com apoio no art. 22 do CDC (Lei 8.078/90), que consagra o princípio da continuidade dos serviços públicos essenciais. O Poder Público ou seu delegado só ficaria autorizado a proceder à cobrança executiva do débito, sob pena de infringir o art. 42 do mesmo diploma, que proíbe o uso de expedientes constrangedores na cobrança de dívidas a consumidores. Essa corrente prevaleceu durante algum tempo na Primeira Turma do STJ, tendo o Min. José Augusto Delgado sido o relator do acórdão padrão que resultou no assentamento desse entendimento (ver o acórdão proferido no ROMS 8915-MA, unânime, j. 12.05.98, DJ 17.08.98). Mas depois houve a reversão desse entendimento inicial, por ter a Corte reconhecido que o direito à continuidade do serviço público, como está assegurado ao consumidor no art. 22 (bem como no § 1º do art. 6º, da Lei 8.987/95), não significa que não possa haver corte do fornecimento, mesmo na hipótese de inadimplência do consumidor. A continuidade, aqui, tem outro sentido, significando que, já havendo execução regular do serviço, a Administração ou seu agente delegado (concessionário ou permissionário) não pode interromper sua prestação, sem um motivo justo, a exemplo das excludentes de força maior ou caso fortuito. O dispositivo nem sequer obriga a Administração a fornecer o serviço, mas, desde que implantado e iniciada sua prestação, não poderá ser interrompida se o consumidor vem satisfazendo as exigências regulamentares, aí incluído o pagamento da tarifa ou preço público. O art. 6º, par. 3º, inc. II, da Lei 8.987/95 ("Lei das Concessões dos Serviços Públicos"), deixa isso bem claro, ao dizer que "não se caracteriza como descontinuidade do serviço a sua interrupção em situação de emergência ou após aviso prévio", em caso de "inadimplemento do usuário, considerado o interesse público". O novo posicionamento do STJ considera legítimo o corte no caso de inadimplemento do usuário, não caracterizando descontinuidade do serviço essa hipótese (ver, e.g., o acórdão proferido no REsp 363943-MG, rel. Min. Humberto Gomes de Barros, j. 10.12.03, DJ de 01.03.04).
  62. STJ-2ª. Turma, REsp 1026639-SP, rel. Min. Carlos Fernando Mathias, j. 17.04.08, DJe 13.05.08.
  63. Rogério Gesta Leal, invocando o ensinamento de Ingo Scarlet e Mariana Figueiredo. Ver "Condições e Possibilidades Eficaciais dos Direitos Fundamentais Sociais – Os desafios do Poder Judiciário no Brasil", Porto Alegre. Livraria do Advogado Editora, 2009, p. 81.
  64. Ob. cit., p. 97. Mas o próprio Rogério Gesta Leal destaca que esse papel do Judiciário é muito controvertido, havendo razoável crítica dessa iniciativa.
  65. Recurso Extraordinário n. 410715/SP, publicado no DJ de 03.02.2006.
  66. Rogério Gesta Leal adverte que o argumento da reserva do possível tem que ser examinado dentro do contexto factual de determinado caso concreto, sob pena de condicionar a realização de direitos fundamentais a questões orçamentárias, o que "reduziria sua eficácia a zero", sabendo-se da inexorável escassez de recursos para atender demandas de massa. Ob. cit., p. 105.
  67. Rogério Gesta Leal. Ob. cit. p. 101.
  68. Ob. cit., p. 103.
  69. A tarifa de energia elétrica é o preço definido pela ANEEL - Agência Nacional de Energia Elétrica que deve ser pago pelos consumidores finais de energia elétrica. Pelo regime tarifário do Preço-Teto, a Aneel avalia os custos gerais e a receita requerida por uma determinada concessionária e define os níveis tarifários a serem cobrados dos consumidores residenciais (população em geral) e das demais classes de consumidores.
  70. A Lei n. 12.212, de 20 de janeiro de 2010, prevê um desconto de 100% para as famílias indígenas e quilombolas inscritas no CadÙnico com renda familiar mensal per capita menor ou igual a meio salário mínimo ou que tenha entre seus moradores quem receba o benefício de prestação continuada da assistência social (previsto nos arts. 20 e 21 da Lei no 8.742/93). 
  71. Mesmo o consumidor de baixa renda, beneficiado pela Tarifa Social, pode ter suspenso seu fornecimento de energia em caso de inadimplemento. O art. 9º. da Lei n. 12.212/10 estabelece que resolução da Aneel deve definir os critérios para a interrupção do fornecimento e o parcelamento da dívida.
  72. A exceção de contrato não cumprido – exceptio non adimpleti contractus – se acha consagrada pelo art. 476 do atual Código Civil (correspondente ao art. 1092, caput, 1ª parte, do Código Civil de 1916), nos seguintes termos: "nos contratos bilaterais, nenhum dos contratantes, antes de cumprida a sua obrigação, pode exigir o implemento da do outro".
  73. Art. 2º. da Lei 8.987/95.
  74. No regime legal da concessão de serviço público de energia elétrica, é previsto que o concessionário se remunere através da cobrança de um preço pago pela prestação do serviço ao consumidor final (art. 14 da Lei 9.427/96). É a sua contraprestação pela execução dos serviços, que resulta na necessidade de se envolver em outras relações contratuais (de ordem privatística) com os destinatários finais do serviço. Essa característica privatística do contrato de fornecimento de energia tem origem, em princípio, na própria Constituição Federal, quando admitiu a prestação de serviço público por particular, em colaboração ao Poder Público, em regime de concessão ou permissão (art. 175).
  75. O art. 2º. do CDC (Lei 8.078/90), ao definir consumidor, inclui também as pessoas jurídicas adquirentes de produtos e serviços na qualidade de destinatário final. Como a lei não restringe, é de se concluir que também as pessoas jurídicas de direito público podem assumir a posição de consumidor em relação contratual de consumo.
  76. Em decisão monocrática proferida em Agravo de Instrumento, o Des. Cândido Saraiva, do Tribunal de Justiça de Pernambuco, reconheceu a natureza privatística do contrato entre a distribuidora de energia e o usuário, autorizando aquela a se utilizar da faculdade prevista no art. 476 do C.C., nesses termos: "... trago à baila os preceitos do diploma adjetivo civil para ressaltar o caráter contratual do referido serviço. Com fulcro no artigo 476 do Código Civil, nenhum dos contratantes, antes de cumprida sua obrigação, poderá exigir do outro o seu implemento - é o princípio da exceptio non adimpleti contractus. Assim, mesmo possuindo a Recorrente outros meios para perseguir o adimplemento da obrigação, a suspensão da energia elétrica por falta de pagamento caracteriza-se como uma extinção, mesmo que temporária, do contrato de fornecimento e não, como muitos defendem, uma forma de coerção para efetuação do pagamento" (TJPE- 2ª. Câmara Cível, Agravo de Instrumento n. 89503-6, rel. Des. Cândido Saraiva).
  77. Para uma melhor diferenciação entre os atos do delegado (concessionário) do serviço público de fornecimento de energia elétrica que podem ser enquadrados como atos de gestão e atos de polícia, sugerimos a leitura do nosso artigo "Ações judiciais para impedir o corte do fornecimento de energia elétrica - alguns apontamentos sobre sua natureza e a autoridade competente para julgá-las", publicado na Revista Eletrônica Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 309, 12 maio 2004. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/5215>.
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Sobre o autor
Demócrito Reinaldo Filho

Juiz de Direito. Doutor em Direito. Ex-Presidente do IBDI - Instituto Brasileiro de Direito da Informática.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

REINALDO FILHO, Demócrito. A possibilidade de corte do fornecimento de energia elétrica por débito pretérito (estimado em decorrência de fraude no consumo).: Uma tentativa de reversão da jurisprudência. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2505, 11 mai. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14832. Acesso em: 23 dez. 2024.

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