Sumário: 1. Introdução - 2. Os Novos Anseios da Sociedade do Risco – 3. A Influência da Mass Media – 4. As Transformações do Direito Penal - 5. Conclusão – 6. Referências Bibliográficas.
RESUMO: O presente estudo tem por principal escopo examinar o Direito Penal do Risco, criticando-o. Preambularmente, analisa-se o fenômeno da globalização e o surgimento do que foi denominado de Sociedade do Risco, que é o modelo social presente e é marcado pela incerteza e medo. Identificam-se os efeitos do mencionado modelo de sociedade na criação de um novo Direito Penal, que pensa ser o melhor instrumento para combater o temor que aflige atualmente os cidadãos. Neste trabalho, contudo, o que predomina é o rechaço a essa tese.
PALAVRAS-CHAVE: Sociedade do Risco, globalização, mass media, Direito Penal do Risco.
1. INTRODUÇÃO
Não obstante os grandes esforços dos juristas clássicos para conferir ares de absolutismo e universalidade ao Direito, atualmente não se nega que ele é produto cultural e que, assim sendo, sofre alterações em sua conformação de acordo com a sociedade que o origina, bem como com a época na qual isso ocorre.
Não se pode, pois, definir em essência o que é o Direito, variando sua concepção necessariamente conforme o próprio uso conceitual, é dizer, modificando-se de acordo com a maneira pela qual são resolvidos os casos concretos que afloram em determinado grupo social. As relações interpessoais travadas na sociedade originam pontos de tensão, que devem ser solucionados de acordo com critérios elaborados diretamente pela coletividade ou por seus representantes [01], e isso é que será o substrato para a criação do Direito.
Nesse contexto, percebe-se que o Direito Penal, assim como qualquer outro ramo jurídico, possui as características e desempenha as funções que o homem, de acordo com seus interesses e raízes históricas, lhe atribui em determinada época. Consoante Fábio Bittencourt da Rosa [02], "a sensibilidade política do criador da regra penal impõe que traduza, por meio dela, a disciplina desejada pelo destinatário, que é a sociedade".
No tempo presente, é mister estudar a configuração da sociedade, a fim de perscrutar acerca de seus interesses e objetivos. Uma vez identificados tais anseios, perceber-se-á a significativa influência que exercem na definição do ordenamento jurídico, especialmente de seus instrumentos e institutos criminais, afinal o Direito Penal é o ramo mais utilizado quando se tem por escopo conferir uma suposta solução rápida para os conflitos interpessoais.
Diante das sobreditas influências, no campo penal, faz-se necessário que o jurista aplique as melhores doutrinas para atender aos reclames da coletividade atual, mas sem olvidar, nem por um instante, de proteger os interesses individuais daqueles que têm sobre si a imputação típica.
Hodiernamente, o modelo de Sociedade do Risco tem importado em um generalizado sentimento de incerteza, o que delineia nas pessoas o desejo desesperado por mais segurança e estabilidade [03]. Nesse diapasão, surgem os movimentos de lei e ordem e uma grande pressão da sociedade civil para que sejam adotadas medidas protetoras em todos os setores, especialmente no que se refere à segurança pública. Crescem em número e conquistam espaço, então, as chamadas providências simbólicas, isto é, disposições que tão-somente aplacam a sensação geral de incômodo, mas quase nada fazem no sentido de efetivamente solucionar ou ao menos minorar a real inconstância do cenário vivido desde o final do século XX. É nesse contexto que se insere o Direito Penal do Risco.
2. Os novos anseios da Sociedade do Risco
O fenômeno da globalização — conceito básico para que se entenda a atual sociedade — consiste na substancial diminuição das distâncias entre as nações, ainda que suas fronteiras e localização geográfica em nada tenham se alterado. Através dos meios de comunicação, de transporte e de outros inventos tecnológicos, criaram-se redes de interação entre povos e mercados, o que terminou por fortalecer uma nova visão mundial cujo ponto de partida é justamente a coletividade [04].
Processo histórico que acompanha a evolução humana, a globalização se tornou mais perceptível a partir do período das Grandes Navegações [05] e, na passada década de noventa, ganhou particular notoriedade, em razão das peculiaridades que passou a demonstrar.
Atualmente, a globalização tem se mostrado em uma escala nunca antes vista, abarcando, de fato, todos os países do mundo (o que os diferencia é o nível de interação de que usufruem, mas hoje já é inconteste que todos eles participam desse fenômeno). Além disso, o intercâmbio de dados e de pessoas tem ocorrido a uma velocidade antes inimaginável, propiciando-se o compartilhamento de informações quase sempre em tempo real [06]. Por fim, impende notar que se globalizaram não só os aspectos positivos, como também os negativos.
Delineia-se, então, um quadro no qual, em razão da interligação entre nações, as decisões tomadas e suas consequências são relevantes para um número bem maior de pessoas do que aquele que efetivamente participou do processo decisório. As ações oriundas de qualquer parte do planeta têm repercussões importantes, sejam elas positivas ou negativas, em diversos pontos do globo, e seus efeitos serão suportados por uma gama bastante grande e diversificada de indivíduos.
Paulo Silva Fernandes [07] assim define o fenômeno da globalização:
[...] podemos falar da globalização como sendo um estreitamento e aprofundamento espacio-temporal de toda uma estrutura económica, social, política e cultural, suportado por uma densa, complexa e interligada rede de comunicações que, possibilitando-o, acelera ainda mais todo um processo de diluição (outra vez a figura do Leviatão nos assalta...) do uno no múltiplo, do ser-aí-diferente no ser-em-todo-lado-igual, de caldeirão onde se fundem diversidades culturais, econonómicas, políticas e sócias em conseqüência do qual cada vez menos se encontra um eu ‘genuíno’.
Com efeito, da ideia de aldeia global, advém outro conceito, qual seja, o de Sociedade do Risco. Dessa rapidez de comunicação, grande incremento intelectual e tecnológico, bem como da complexidade das interações nacionais e mesmo humanas, surgem grandes, frequentes e rápidas alterações no contexto do cotidiano social. Em razão da efemeridade dos contornos em que se baseiam as relações humanas contemporâneas, os indivíduos vivem uma permanente sensação de instabilidade.
Não se pode dizer, em termos absolutos, que, atualmente, os perigos que rodeiam o homem são mais intensos ou frequentes que os do passado [08]. Em verdade, em numerosos campos, a possibilidade de sofrer um dano até mesmo diminuiu, como, por exemplo, em relação às enfermidades, cujo controle ou efetivo tratamento permitiu o aumento da expectativa de vida em todo o mundo [09]. Então, por que, no tempo presente, a insegurança impera? O que faz com que o homem sinta-se tão desprotegido e suscetível a padecer de um mal que julga iminente?
O que gerou essa imensa sensação de medo foi a grande decepção suportada pelo homem hodierno, que viu suas esperanças frustradas quando acreditava que, em razão do desenvolvimento científico por ele proporcionado, poderia não apenas diminuir os riscos dos fatos da natureza, mas sim extirpar os riscos de todas as áreas. Buscavam-se segurança e previsibilidade absolutas. Olvidou ele, entretanto, de que as novidades de agora, sejam elas tecnológicas ou sociais, conseguiriam, sim, diminuir os riscos visíveis e há muito conhecidos, mas poderiam também criar novas situações de perigo, menos evidentes, porém algumas vezes até mais incômodas que as do passado [10].
Origina-se, então, a chamada Sociedade do Risco, denominação cunhada por Ulrich Beck [11], para expressar o modelo social marcado pela instabilidade que se mostra predominante desde a década de oitenta [12] nas sociedades pós-industriais.
Nesse modelo, a instabilidade não se origina mais de catástrofes naturais ou desastrosos problemas sociais e médicos, causados, exclusivamente, por agentes não humanos. Essas questões, no que se refere à urgência das preocupações, perdem um pouco de espaço para aqueles problemas oriundos de decisões humanas.
Cabe esclarecer que os riscos atuais consistem nos danos improváveis, malgrado possíveis, decorrentes das decisões tomadas pela própria sociedade. É um estágio intermediário entre o dano real e a segurança. A grande preocupação social não gira em torno da real iminência de um dano, mas, sim, da mera possibilidade de risco advindo das deliberações humanas [13]. Observa-se, então, que, em regra, a própria sociedade tem criado os riscos que tanto teme [14].
Paulo Silva Fernandes [15] elenca como traços característicos dos riscos que hoje se evidenciam a invisibilidade, a perdurabilidade de seus efeitos e a grande dimensão que assumem.
Os riscos tornaram-se invisíveis, isto é, imperceptíveis à primeira vista para a maioria dos cidadãos, somente se tornando mais concretos em suas possibilidades quando já instalados na consciência coletiva. De maneira sorrateira, eles passam a integrar o cotidiano social, sendo que os indivíduos, de repente, passam a concebê-los como verdades absolutas, sem espaço, portanto, para reflexão acerca do receio que provocam. Apenas sente-se medo, não se sabe exatamente por que, de que nem como se chegou a esta situação. Surpreendida com tal estado de insegurança, não resta outro sentimento que não o de inquietação à sociedade.
Além disso, os riscos também adotaram feições bastante particulares quanto às proporções em que se apresentam. Uma atitude ou comportamento tomado em um determinado local do planeta pode ter suas consequências estendidas a uma grande quantidade de países, ou até mesmo, somente se fazerem sentir em local diverso daquele em que foi praticada sua ação desencadeadora. Desse modo, as populações locais têm que se preocupar com as ações praticadas em seus territórios, mas também com as executadas em qualquer outra parte do mundo. Mesmo em relação aos supostos riscos aos quais não deu causa, a população se sente na obrigação de ficar alerta. Tem lugar aqui o conceito utilizado por Ulrich Beck [16] de glocalidade, que agrega a possibilidade de riscos simultaneamente sentidos em perspectiva local e global.
Ainda quanto ao aspecto da atual configuração dos riscos, cabe ressaltar que as ações hoje perpetradas possuem efeitos que podem perdurar por muito tempo. Durante esse período, a população padece sempre sob o medo de que os efeitos prejudiciais sejam por ela sofridos, vivendo em uma angustiante incerteza.
É de se mencionar como exemplo, o acidente nuclear de Chernobyl, ocorrido em 1986. Até hoje são sentidos os efeitos desse desastre e milhares de habitantes das zonas afetadas ainda temem serem vítimas das consequências de morarem em locais contaminados ou de conviverem com pessoas que tiveram contato direto com a radiação [17]. Redefine-se, pois, o conceito de tempo, sendo possível que o temor de que o risco se concretize subsista durante várias gerações.
As novas ameaças transcendem, no dizer de Paulo Silva Fernandes [18], "tanto as gerações quanto as nações". No mesmo sentido é a posição de Luciano Anderson de Souza [19]:
Quer isto significar que os riscos atualmente enfrentados pela sociedade volatizam-se no tempo e no espaço. Assim, no que concerne ao eixo temporal, tanto se pode sofrer hoje as conseqüências de um ato ou fato ocorrido há algumas décadas, como pode ocorrer de uma decisão humana tomada hoje vir a produzir seus efeitos daqui há algumas gerações, vivendo-se, em conseqüência, sob a ameaça constante de uma incerta produção de efeitos previstos, mas ainda desconhecidos. E não é diferente a situação quando se analisa as conseqüências de um ato ou fato no eixo espacial. Com efeito, há possibilidade de que as conseqüências derivadas da situação mencionada venham a se produzir tão-somente em outro Estado, mantendo ilesa a população do local de onde partiu a ação que desencadeou a concretização do risco, que, não obstante, vai atingir a população vizinha, por exemplo, que em princípio não contribuiu para a verificação do resultado danoso, daí porque se falar que já não fazem mais sentido as vetustas noções de Estado e fronteira, nesse particular.
3. a influência da mass media
A situação de terror até aqui exposta, sem dúvida, é potencializada pela ação dos veículos de informação, especialmente da mass media.
Esse tipo de meio de comunicação lastreia-se na divulgação, em grande volume, dos mais diversos dados e conhecimentos, é dizer, no fornecimento de uma verdadeira avalanche de informações. Através do uso da tecnologia, verdadeiras empresas de comunicação proveem seus espectadores, ouvintes ou leitores — que compõem um grupo bastante heterogêneo, geograficamente disperso, e que somente representa números estatísticos, permanecendo, pois, no anonimato — das mais diversas informações, nas maiores quantidade e velocidade possíveis [20].
Os grandes comunicadores frequentemente deixam de lado a preocupação com a qualidade da informação e se voltam para sua lucratividade. É a transposição da ideia de produção em série para os meios de comunicação, afinal todos estão consumindo, em larga escala, um grande número de informações, selecionadas e veiculadas pelos empresários do ramo em tamanha quantidade. Pode-se dizer que é a divulgação de uma massa volumosa de informação para uma massa incógnita de receptores.
Houve uma grande revolução na atividade de informar, superando-se a maneira clássica de fazer jornalismo por outra, mais fantasiosa, porque necessita ser mais atraente aos consumidores, o que, muitas vezes, faz com que seja menos comprometida com a realidade. A ideia de informação, então, afasta-se do conceito de conhecimento e aproxima-se da noção de produto [21].
Ainda cabe ressaltar em relação aos meios de comunicação coletiva que eles são o veículo principal de informação — quando não o único — das sociedades contemporâneas. Não há como negar, portanto, a significativa influência que eles exercem no comportamento social, uma vez que são o principal elemento modelador da opinião pública [22].
Se certa atividade é desempenhada praticamente em regime de monopólio, seu detentor poderá decidir quase monarquicamente como desempenhá-la. É o que se passa com os meios de comunicação. A mass media, por meio de seus variados veículos, é a grande responsável pela maioria da informação disponível atualmente e, por isso, seleciona-a livremente, decidindo também o enfoque que concederá. Tal estado de coisas confere amplos poderes aos detentores dos veículos de comunicação, que podem divulgar certos fatos da maneira que seja mais conveniente aos seus interesses. Há ampla margem para a manipulação da maioria da população.
É inegável, portanto, que a mass media incrementa uma situação de instabilidade já gerada pela simples vigência do modelo de Sociedade do Risco. Situações de terror são exploradas porque vendem, isto é, são rentáveis. Nos meios de comunicação, são divulgadas, incessantemente, diversas situações de perigo e até de efetiva violência, pois manchetes acerca de situações de instabilidade ou sobre o que fazer para preveni-las, junto a uma sociedade que vive todo tempo sob a insígnia da insegurança, despertam maior audiência e tornam-se um negócio bastante lucrativo. Acerca do inegável valor mercantil das alarmantes notícias veiculadas pelos meios de comunicação coletiva, insta destacar o posicionamento de Peter-Alexis Albrecht [23]:
La criminalidad y la persecución penal no sólo tienen valor para el uso político, sino que son también el objeto de auténticos melodramas cotidianos que se comercializan con texto e ilustraciones en los medios de comunicación. Se comercia con la criminalidad y su persecución como mercancia de la industria cultural. Consecuentemente, la imagen pública de esa mercancia es trazada de forma espectacular y omnipresente, superando incluso la frontera de lo empíricamente contrastable.
Em uma Sociedade do Risco que já é susceptível à criação e manutenção de situações aparentes de perigo, o comportamento dos comunicadores termina por intensificar a sensação de medo, apresentando-a de maneira muito mais gravosa do que realmente é. A população, por sua vez, receptora das referidas informações, absorve as notícias negativas de maneira acrítica e se comporta como se efetivamente estivesse todo o tempo na iminência de concretização do risco. A sensação de perigo e desproteção, pois, é superior às reais probabilidades de padecer de um mal. Isso é o que nos esclarece Luis Flávio Gomes [24]:
Pesquisa elaborada pelo Datafolha e divulgada no início de 2000 demonstra que a sensação de violência supera os dados reais. Os números mostram que, apesar de o percentual de pessoas assaltadas ou roubadas na cidade ter ficado estável nos últimos meses, 79% dos entrevistados achavam que esses crimes haviam aumentado em novembro (de 1999). Só 18% opinaram que o número de furtos, roubos e agressões continuou igual.
Evidente, portanto, que não há estrita correspondência entre o risco imaginado e o risco real, seja porque o próprio modelo social atual incentiva o aludido desequilíbrio, ou porque a indústria da comunicação, com vistas a estimular o consumo de seus produtos, explora demasiadamente os ilícitos penais que se tornam públicos, contribuindo para a instauração do sentimento de temor.
4. AS TRANSFORMAÇÕES DO DIREITO PENAL
Uma vez que os riscos modernos advêm das decisões humanas, imagina-se que a solução para tais problemas também decorre de uma atitude humana. Tal raciocínio, em princípio, mostra-se correto. O homem, por meio de mudanças comportamentais, educacionais e estruturais pode influir positivamente e alterar o destino desventuroso que vive hoje e que promete se prolongar. Entretanto, tal mudança não se dará por meio do uso dos instrumentos de Direito Penal, solução que tem sido apresentada por muitos como a mais fácil e rápida [25].
Em resposta ao cenário antes exposto, surgem demandas sociais por mais segurança, frequentemente confundidas pelos próprios requerentes com demanda por mais punição penal, ideia que é reforçada pelos veículos de comunicação [26] e por governantes com tendências populistas. Espera-se que o Direito Penal, seja capaz de aplacar os problemas da real insegurança e também de sua sensação [27].
Escolhido o ramo do Direito Penal para aplacar o medo social atualmente vigorante, veio à tona um problema de adequação: as estruturas e institutos do Direito Penal tradicional serviriam à moderna tarefa que ora lhe atribuem? Claramente que não. Porém, esta constatação, ao invés de ser tomada como justificativa para o reproche da solução penal da insegurança coletiva, terminou por gerar a adaptação e desnaturação desse ramo do Direito, visando ao atendimento das novas expectativas preventivas [28].
Vem a lume, então, o Direito Penal do Risco, nova construção jurídico-penal que possui características bastante peculiares e confronta-se com o modelo de Direito Penal tradicional, lastreado em um modelo liberal.
Pode-se afirmar que existem três grandes mudanças que foram realizadas na configuração penal: a criação de novos bens jurídicos supraindividuais, a disseminação dos delitos de perigo e o crescente informalismo do direito penal material e processual [29]. Aliadas a estas principais esferas de mudanças existem outras que a elas se agregam. Passa-se ao exame de tais características.
Surgiu, nesse contexto, uma grande tendência de criminalização [30]. Iniciou-se um largo processo de expansão do Direito Penal, passando ele a abarcar ofensas mínimas que não chegavam a apresentar — e não demonstram até hoje, apesar do caráter penal que lhes foi conferido — lesividade suficiente para justificar o uso da violência institucionalizada representada pela pena [31].
Ademais, em razão das mudanças proporcionadas pelo grande desenvolvimento técnico e científico, surgiram novos valores e direitos, principalmente coletivos, que, evidenciando-se como novos bens jurídicos, demandaram tutela penal. É esse o caso, por exemplo, do meio ambiente, da ordem econômica, e também das relações jurídicas travadas pela internet, que são chamados de bens jurídicos supraindividuais, uma vez que sua titularidade é exercida por uma coletividade indefinida de indivíduos [32].
Esses bens jurídicos novos, em razão de sua própria natureza, são indeterminados, dificultando sobremaneira o seu enquadramento no sistema penal, tradicionalmente norteado por rígidos limites, a exemplo do princípio da taxatividade. Sem embargo, atualmente, são referidos amplamente, e agiganta-se o Direito Penal, a fim de abarcar essas condutas que antes não eram previstas como penalmente relevantes.
Evidencia-se, então, um paradoxo. Uma maior difusão dos instrumentos penais como primordiais soluções para os conflitos implica mais restrição do exercício de liberdade de todos os membros do corpo social. Surpreendentemente, esse cenário de coerção é clamado pela própria sociedade, principal vítima das repressões advindas de sua implementação. O que leva a organização social a pedir por maior violência institucionalizada e restrição, medidas prejudiciais que ela própria sofrerá?
O referido comportamento contraditório tem lugar porque os indivíduos, quando observam um conflito penal, apenas se identificam com a vítima da infração, tendendo sempre a se afastar do autor do delito. A sociedade se reconhece na pessoa da vítima, que apenas sofreu as consequências do crime, afastando-se da figura do delinquente, ser normalmente marginalizado [33]. Como não supõem que podem vir a ocupar a posição social do delinquente, os indivíduos não se sentem em situação embaraçosa ao pedir por medidas mais opressoras, pois pensam que, ao final, elas somente serão suportadas por certo grupo de pessoas, as quais não são reconhecidas como semelhantes.
Surge, então, lugar para o renascimento [34] das doutrinas lastreadas na ideia de inimigo, isto é, na exclusão de um indivíduo que não se identifica com os demais membros do corpo social — denominados de cidadãos —, conferindo-lhe tratamento penal e processual penal menos garantista.
Essa classificação excludente só se justifica numa sociedade em que não esteja presente uma consciência coletiva e que dê espaço para a coexistência de duas classes de membros: os que são pessoa, e portanto, gozam das garantias jurídicas em sua integralidade, e os que não são, em razão do que sofrem sérias restrições em sua esfera de atuação e usufruem de menos proteção estatal [35]. A noção que termina por predominar socialmente é, pois, de que pode haver tal discriminação, afinal, inimigos serão sempre os outros.
Outro aspecto que cumpre ressaltar é que a Sociedade do Risco volta-se para um tempo vindouro, tentando, a todo custo, antecipar-se na proteção, isto é, evitar as possíveis situações indesejadas que podem advir no futuro. Em razão de tal postura defensiva, aliada ao fato de que o Direito Penal é percebido como solução primordial dos problemas, é que surgem as tendências de criminalização prévia. Passam-se a punir exacerbadamente [36] atos preliminares, é dizer, anteriores aos que compõem o tradicional núcleo penal, permitindo-se mesmo a penalização de atos meramente preparatórios, bem como de condutas que representam apenas perigos genéricos aos bens jurídicos.
No que tange aos atos preparatórios, impende observar que, atualmente, os limites da tentativa são ultrapassados com frequência, e existem punições imputadas a atos que sequer iniciaram o iter criminis, é dizer, não ultrapassaram os momentos de cogitação e planejamento [37]. No nosso Código Penal, podem-se citar como breves exemplos de delitos de preparação os previstos nos arts. 288 e 291, respectivamente: quadrilha ou bando [38] e petrechos para falsificação de moeda [39].
Os delitos de perigo abstrato, por sua vez, consubstanciam-se no principal meio de antecipação da tutela penal utilizado pela Sociedade do Risco. Isso se dá porque em face da assunção de novos tipos de bens jurídicos (supraindividuais), mais fluidos e indeterminados, torna-se dificultosa a atividade de identificar uma lesão real, buscando o legislador a tipificação prévia, que exima os aplicadores do direito da árdua tarefa mencionada e não frustre as expectativas sociais de confiança [40]. São exemplos da situação descrita os crimes ambientais e os referentes à relação de consumo.
Decorrente do princípio da precaução [41] — a ação é legítima quando há mera suspeita de risco —, esse tipo de delito tem como objeto condutas suposta e genericamente perigosas, não exigindo, por conseguinte, uma antijuridicidade material, mas meramente formal [42]. Não lhes importa que se concretize o dano temido, o que, se vier a ocorrer, será mero exaurimento, ou poderá até mesmo ser tipificado por outro dispositivo do ordenamento jurídico. Em verdade, para sua configuração sequer importa a concretização do perigo, bastando que ele possa ocorrer.
Com efeito, é evidente que, pouco a pouco, vai-se transigindo com a esfera de liberdade dos cidadãos. Primeiro, a intervenção penal somente se justificava se houvesse efetiva lesão a um bem jurídico (crimes de dano). Depois, passou-se a aceitar que a colocação de certos bens jurídicos — aqueles valorados como mais importantes — em situações de perigo já era suficiente para respaldar a intervenção estatal punitiva. Agora, procura-se a legitimação da interferência penal para as situações em que as atitudes humanas possam vir a criar uma situação de perigo para um bem jurídico [43]. Afastamo-nos, portanto, da concretude e, cada vez mais, dirigimo-nos às águas turvas e revoltas da mera possibilidade.
A propagação dos delitos preparatórios, bem como dos crimes de perigo abstrato se confronta diretamente com o princípio da ofensividade, que defende a todos do arbítrio estatal, no momento em que determina os limites para a atuação punitiva. Segundo ele, somente são passíveis de repreensão as condutas que resultem, ao menos, em um perigo real a um bem jurídico protegido pelo sistema penal, preceito que é frontalmente violado com a antecipação da criminalização.
Outrossim, o abuso das mencionadas técnicas de prevenção, apesar de se mostrar bastante atraente no aspecto social, traz problemas internos incontornáveis ao Direito Penal, que modernamente se pautou na proteção de valores alçados à condição de bens jurídico-penais. Como as aludidas medidas de proteção não levam em conta a ofensa aos bens jurídicos como requisito para a punição, elas não se coadunam com a teoria amplamente aceita pelos penalistas.
Como visto, o principal traço distintivo do mencionado tipo de Direito Penal é a disseminação de técnicas de antecipação da tutela penal.
Cabe, ainda, observar que, no modelo social aludido, o sistema penal não é resguardado apenas para os conflitos mais graves e cuja relevância seja de tal monta que justifique a intervenção das sanções jurídicas mais invasivas; ao revés: ele é usado para resolver qualquer questão social relevante e com importante repercussão pública.
O Direito Penal, pois, transforma-se na política de segurança proposta para uma Sociedade do Risco, cessando, paulatinamente, seu caráter subsidiário [44]. Perde muito da sua importância o princípio da intervenção mínima [45], e as normas penais não se apresentam mais como a ultima ratio, isto é, a solução jurídica mais gravosa e que, portanto, deve ser empregada com parcimônia. Agora, os tipos e sanções penais foram erigidos à categoria de primeiro instrumento de política criminal.
Tal contexto enseja uma hiperinflação do Direito Penal. Assoberbado com suas novas funções e pressionado para não se olvidar das antigas, esse ramo jurídico torna-se uma figura paquidérmica, perdendo sua agilidade na neutralização dos conflitos. Luis Flávio Gomes [46] esclarece que "quanto mais se sobrecarrega o Direito penal, mais se obtém um efeito contrário ao pretendido porque é precisamente quando menos funciona".
Existe, ainda, outro aspecto do Direito Penal do Risco que merece especial atenção. Em uma sociedade que convive com a insegurança ocasionada pelos riscos, busca-se, como forma de proteção, a realização do princípio da eficiência. Esse corolário aos poucos, deixou os grotões da economia para espraiar-se por todos os ramos do conhecimento, inclusive o jurídico [47], e consiste no estímulo a uma atuação eficaz, isto é, que atinja os resultados positivos almejados. No caso do Direito Penal, surge como uma relação positiva de custo-benefício, isto é, será atingido quando as vantagens de certa medida se sobrepuserem aos prejuízos por ela ocasionados.
Em princípio, tal raciocínio não se revela nocivo, podendo-se até dizer que ele contribui para a legitimação do Direito Penal. Contudo, no modelo de Direito Penal atual, há uma exacerbação de tal característica, priorizando-se a eficiência acima de qualquer valor, o que termina por criar zonas de conflito dentro do próprio ramo jurídico, que não consegue compatibilizá-la com a realização de princípios como a liberdade, a dignidade ou racionalidade [48].
O Direito Penal contemporâneo, além da já aludida ampliação de seu âmbito de atuação, redefinindo o rol de bens jurídicos existentes, também traz a lume um novo punitivismo. Não basta a concessão de proteção penal para esferas que dela antes não gozavam. Tem lugar também um recrudescimento no tratamento dos delitos clássicos, constantemente demonstrado pelo incremento em suas sanções.
No Brasil, o exemplo mais expressivo de tal situação é a lei nº 8.072/90, que trata dos crimes hediondos. A partir do mencionado diploma legal, as penas cominadas aos delitos como latrocínio e estupro (respectivamente, artigos 157, §3º, e 213, ambos do Código Penal) sofreram substancial agravamento dos seus padrões mínimos e máximos, levados a cabo, majoritariamente, em razão do movimento de lei e ordem que se fortalecia na época [49].
Saliente-se, ademais, que em um Direito Penal do Risco há a relativização do princípio da taxatividade das leis penais. Os tipos, então, deixam de ser integralmente precisos e determinados, possuindo muitos de seus componentes — inclusive elementares — definidos por expressões vagas ou que carecem de completude, característica a ser conferida por outras normas. São as chamadas leis penais em branco.
Esse tipo de norma prevê a sanção para a conduta, mas não a descreve, ou o faz de maneira incompleta, razão, pela qual carece de complementação por outra norma, que pode ser de natureza legal, regulamentar ou administrativa [50]. Aníbal Bruno [51] define esse tipo de lei penal da seguinte maneira:
Nessas leis existe sempre um comando ou uma proibição, mas enunciados, em geral, de maneira genérica, a que só a disposição integradora dará a configuração específica. A norma integradora estabelece, então, as condições ou circunstâncias que completam o enunciado do tipo da lei em branco.
A depender da natureza da norma que completa o sentido da lei penal em branco, esta será classificada em homogênea ou heterogênea. Caso a fonte legislativa da norma a ser complementada e da complementar sejam iguais, fala-se em norma penal em branco homogênea ou de complementação homóloga. Se, por outro lado, a norma complementar for oriunda de fonte legislativa distinta da que originou a lei penal (Congresso Nacional), tem-se a chamada norma penal em branco heterogênea ou de complementação heteróloga [52].
A existência das leis penais em branco homogêneas, apesar de não ser a situação ideal — afinal, nunca será adequado não dar, desde logo, pleno conhecimento de uma norma gravosa como a penal — não malferem diretamente os princípios penais. As leis penais em branco heterogêneas, sim, é que são amplamente utilizadas em uma Sociedade do Risco e que violam frontalmente o princípio da taxatividade, uma vez que relegam a definição da conduta típica a autoridades executivas.
Tal prática é bastante difundida no modelo de Direito Penal ora abordado, pois facilita a rápida adequação dos tipos penais aos mutáveis anseios de proteção da Sociedade do Risco. Para proceder a uma alteração em uma norma penal que respeite estritamente o principio da taxatividade, será necessário o procedimento formal de promulgação de outra lei. Sem embargo, para a alteração das normas penais incompletas, ditas leis penais em branco de complementação heteróloga, basta que se observe o método simples de atualização das normas executivas, que pode ocorrer, por exemplo, com a simples expedição de uma portaria.
A mencionada celeridade na alteração de elementos do tipo, no entanto, traz sérios problemas para os destinatários da norma penal, afinal sobre eles irá pairar a incerteza quanto a quais são as condutas incriminadas. Ademais, eles se submeterão ao livre arbítrio do Executivo, uma vez que poderão ser apenados com sanção imposta unilateralmente, sem margem para a salutar discussão legislativa.
Outrossim, releva notar que, no mencionado processo de expansão do Direito Penal são utilizadas, prioritariamente, leis especiais, espargidas pelo ordenamento jurídico-penal [53]. A opção por esse tipo de legislação tem evidentes motivos.
De um lado está a maior flexibilidade e até permissividade que se tem com a legislação especial, via de regra extravagante, isto é, situada fora do Código que trata da matéria. Malgrado passem pelo mesmo processo formal de aprovação de leis, promover alterações no estatuto codificado representa uma atividade bastante mais solene. Uma modificação no Código Penal é mais discutida — afinal está em maior evidência — e maturada, pois permite, no mais das vezes, ampla divulgação e debate em torno de si. A introdução de mais um diploma legal no sistema normativo, no mais das vezes, é tratada de maneira mais simples, frequentemente apenas sendo conhecida quando de sua promulgação ou até mesmo em algum momento de sua aplicação que se torne de interesse público (ou, infelizmente, apenas do público).
De outro, observa-se que, normalmente, a edição de lei específica para tratar de certa matéria indica que ela, em razão de sua própria natureza, não pode ter o mesmo regramento geral já estabelecido, sendo criada, para esses novos tipos, uma normativa geral própria. Não é só o fator topológico que diferencia as leis especiais — como ocorre com a legislação apenas extravagante —, possuindo elas outro fator distintivo: normas próprias sobre as teorias do delito e da pena. Dão origem, com sua promulgação, aos chamados microssistemas jurídico-penais [54].
O problema é que, sob o pretexto de proporcionar uma tutela específica mais adequada à natureza do bem jurídico que pretende resguardar, esse tipo de lei termina por ampliar demasiadamente o rol de crimes, que muitas vezes permanecem desconhecidos da prática geral, bem como permitem um agravamento desmedido no tratamento penal.
Ferrajoli [55], forte defensor do garantismo penal, propugna pelo impedimento de tal prática, a qual ele acredita violar, diretamente, o princípio de reserva do código e, por via reflexa, o princípio da legalidade.
Sebástian Borges de Albuquerque Mello [56] também faz fortes críticas à exacerbada disseminação dos microssistemas jurídico-penais, em razão da grande finalidade simbólica que exercem. In verbis:
Cada um deles [microssistemas] forma um pequeno universo legislativo, constituído por normas extracódigo, promulgadas para tutelar específicas e particulares relações, trazendo consigo um critério próprio de valoração, critérios e métodos, institutos peculiares, criando uma verdadeira lógica de setor. [...] E, como se trata de uma tentativa de esgotar a matéria num universo sistêmico próprio, o microssistema amiúde traz no seu bojo a incriminação de condutas supostamente configurando as mais graves formas de violação dos bens jurídicos por ele tutelados, mas que, na verdade, têm uma função meramente simbólica, como se a instituição de crimes e penas lhes conferisse uma importância diferenciada. Assim, amiúde a incriminação via microssitema representa, em vez de uma real ofensa a um bem jurídico fundamental, uma satisfação ou resposta do Estado ao(s) grupo(s) de interesses que tiram proveito da elaboração do microssistema, para demonstrar supostamente o ‘grau de preocupação’ do estado com aquele seguimento da sociedade.
Outro ponto que impende destacar no Direito Penal do Risco é que ele permite tratamentos desproporcionais entre condutas típicas bastante similares, somente porque, em determinado momento, o clamor social era mais forte pela punição de uma delas. É o que ocorre, por exemplo, em relação às lesões corporais dolosas insculpidas no Código Penal, no artigo 129, e às lesões corporais culposas previstas no Código Nacional de Trânsito (artigo 303, da lei nº 9.503/97). Em razão das alarmantes estatísticas de mortos e feridos no trânsito que aterrorizavam toda a população, o legislador decidiu-se por apenar mais gravemente a lesão causada por acidente de trânsito, ainda que o elemento subjetivo presente fosse a culpa, não se preocupando em manter a coerência do sistema entre as classificações de lesões culposas, menos graves, e lesões dolosas, condutas com maior desvalor.
Ao lado disso, ainda é necessário atentar para o crescente movimento de administrativização que vem sofrendo o Direito Penal. Nesse processo, distinguem-se duas etapas. A primeira consiste na concessão de proteção penal a diversos direitos que mereciam, em verdade, uma tutela administrativa, tanto por ser esta última suficiente, quanto por ser mais adequada. A segunda refere-se à flexibilização ou despojamento dos institutos clássicos, especialmente das garantias, a fim de se tornar um instrumento mais eficiente aos novos anseios da sociedade [57], assemelhando-se, pois, às regras administrativas.
O Direito Penal passa, então, a ser mais um elemento do direito de gestão, preocupando-se com a administração de riscos e importando-se cada vez menos com a lesividade. Interessa-lhe a tutela das chamadas grandes cifras, é dizer, de situações que, ainda que não possuam ofensividade, ocorrem em grande volume e terminam por acarretar a possibilidade de incremento dos riscos [58]. Em razão de tal tendência, desnatura-se o Direito Penal, que perde sua característica de direito a ser oposto contra o arbítrio estatal, para significar o instrumento mais utilizado — apesar de não ser o mais eficiente — na realização dos fins do Estado.
Cabe compreender ainda que, no modelo social em estudo, há um exacerbado uso da linguagem simbólica, tendência que se evidencia fortemente no Direito Penal do Risco. As normas simplesmente retóricas são promulgadas com o intuito de tratar apenas da sensação provocada pela prática de crimes, em nada se importando com o aspecto real da criminalidade. São muitos os problemas ocasionados por tal opção política, razão pela qual ela não se mostra a melhor.