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A inconstitucionalidade do cadastro de reserva nos concursos públicos

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1 – INTRODUÇÃO

Recentemente tem se verificado a banalização do chamado cadastro de reserva nos concursos públicos. Por meio desse mecanismo, o órgão ou entidade que realiza o concurso divulga o respectivo edital, sem definir o número de vagas oferecidas, consignando apenas que os candidatos aprovados poderão ser nomeados durante o prazo de validade do concurso.

Tal prática afigura-se extremamente nociva para o instituto do concurso público e ofende o princípio do livre acesso aos cargos e empregos públicos, consagrado no art. 37, I, da Constituição Federal. É bastante elementar que a informação quanto ao número de vagas ofertadas no concurso é imprescindível para que o indivíduo possa tomar sua decisão de se inscrever ou não na disputa. Afinal, para um candidato medianamente preparado, pode ser uma missão impossível participar de um concurso público que ofereça apenas uma ou duas vagas, mas não de um que disponibilize cinquenta, cem ou duzentos novos postos de trabalho. A ausência da informação do número de vagas no edital impede o candidato de tomar sua decisão de participar ou não do certame de forma fundamentada. Assim, esse dado é essencial no edital do concurso público. Quanto ao assunto, Francisco Lobello de Oliveira Rocha destaca que:

Para que os candidatos possam definir se têm interesse em concorrer às vagas oferecidas, o edital deve conter o(s) cargo(s) ou emprego(s) oferecido(s), o número total de vagas já existentes bem como o número de vagas reservadas aos deficientes físicos, a remuneração inicial, o local ou os locais em que o serviço deverá ser prestado, as atribuições do cargo ou emprego, e outros dados que possam ser relevantes para a decisão do candidato. [01] (negritos nossos)

Não há dúvidas de que a Administração possui plenas condições de verificar internamente o número de cargos ou empregos vagos em sua estrutura organizacional, de modo a publicar o edital do concurso com a definição desse quantitativo. Afinal, o que justifica a abertura de um concurso público é a existência de cargos ou empregos vagos, não havendo sentido em publicar um edital sem anunciar o número de vagas disponíveis. Nesse sentido, Diogenes Gasparini afirma que:

o concurso somente pode ser aberto se existir cargo vago, pois só a necessidade do preenchimento do cargo justifica esse certame. Se não existir cargo vago e se se deseja ampliar o quadro em razão da necessidade de serviço, deve-se criar os cargos e só depois instaurar o concurso. [02]


2 – NORMAS PROIBITIVAS DO CADASTRO DE RESERVA

Na esfera federal, já existe, desde 1999, norma que obriga os editais de concurso a divulgarem o número de vagas oferecidas. A regra consta do art. 39, I, do Decreto 3.298/1999:

Art. 39.Os editais de concursos públicos deverão conter:

I–o número de vagas existentes, bem como o total correspondente à reserva destinada à pessoa portadora de deficiência;

Além disso, segundo inteligência do § 2.º do art. 5.º da Lei 8.112/1990, os concursos públicos para o preenchimento de cargos federais devem oferecer um número determinado de vagas, a fim de que se possa calcular o quantitativo de cargos destinados às pessoas portadoras de deficiência:

§2.ºÀs pessoas portadoras de deficiência é assegurado o direito de se inscrever em concurso público para provimento de cargo cujas atribuições sejam compatíveis com a deficiência de que são portadoras; para tais pessoas serão reservadas até 20% (vinte por cento) das vagas oferecidas no concurso. (negritos nossos)

Ora, se o concurso deve oferecer um número certo de vagas, a fim de se calcular o percentual reservado aos candidatos deficientes, não se pode aceitar a publicação de um edital de concurso sem essa informação. De que maneira poderia a pessoa deficiente tomar a decisão de participar ou não do concurso dessa maneira? Não há como precisar quantas vagas representam 20% de um cadastro de reserva.

Apesar disso, concursos públicos federais têm sido lançados com desrespeito às regras acima, veiculando tão somente o indesejado cadastro de reserva. [03]


3 – CADASTRO DE RESERVA VS. DIREITO SUBJETIVO À NOMEAÇÃO

Por não se admitir a realização de concurso público sem a definição do número de candidatos a serem nomeados, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem decidido que o candidato aprovado em concurso público dentro do número de vagas previsto no edital não tem mera expectativa de direito, mas verdadeiro direito subjetivo à nomeação para o cargo a que concorreu e foi classificado. [04]

Frise-se que isso não impede que a Administração, diante da superveniência de fatos que demonstrem a impossibilidade de concretização de tal direito, deixe de nomear o candidato. Mas é preciso que isso ocorra em casos excepcionais, devidamente justificados. A propósito, já decidiu o Supremo Tribunal Federal (STF) que a recusa da Administração Pública em prover cargos vagos, quando existentes candidatos aprovados em concurso público, deve ser motivada e esta motivação é suscetível de apreciação pelo Poder Judiciário. [05]

Essa nova jurisprudência consagra, em relação aos concursos públicos, os princípios constitucionais da impessoalidade e da moralidade administrativa. Com esse entendimento evita-se, por exemplo, que os candidatos consumam seu tempo e dinheiro, privando-se, muitas vezes, do convívio da família e dos amigos, a fim de se prepararem – algumas vezes durante anos – para um concurso público, para, ao final, não serem nomeados, embora aprovados dentro do número inicial de vagas. Essa situação, certamente, não atende aos preceitos de justiça e boa-fé ínsitos à moralidade.

A exclusiva adoção de cadastro de reserva nos concursos públicos contraria frontalmente o entendimento de que os candidatos aprovados dentro do número de vagas ofertadas no edital têm direito subjetivo à nomeação e esvazia completamente o novo entendimento moralizador de nossos Tribunais. Neste caso, para evitar o surgimento do direito do candidato a ser nomeado, basta que a Administração não divulgue o quantitativo de vagas, anunciando tão somente que o concurso se destina à formação de cadastro de reserva.


4 – CADASTRO DE RESERVA VS. PRINCÍPIOS ADMINISTRATIVOS

A existência de direito subjetivo dos aprovados dentro das vagas iniciais à nomeação evita a ocorrência de desvios de finalidade na realização dos concursos públicos, como a hipótese de uma autoridade administrativa resolver não nomear os candidatos vitoriosos no certame, deixando escoar deliberadamente o prazo de validade do concurso, para, em seguida, abrir nova disputa, na qual seus protegidos – antes reprovados – poderão novamente tentar se habilitar no concurso público.

A adoção do cadastro de reserva possibilita a ocorrência de condutas como a descrita acima, com clara ofensa à moralidade administrativa. A esse respeito, vale citar as palavras de Luciano Ferraz:

de nada adiantaria definir regras legais para os concursos, se a Administração Pública pudesse simplesmente deixar de nomear aprovados, repetindo sucessivamente o certame até que os selecionados atendessem às querenças do agente administrativo competente para a nomeação. [06]

Relembre-se que o princípio da moralidade reveste-se de caráter objetivo, o que significa que condutas que contrariam as práticas da boa administração pública podem ser consideradas imorais, ainda que o agente público aja de boa-fé. Como exemplo, cite-se o nepotismo no serviço público, vedado pela Súmula Vinculante n.º 13. Não se perquire, neste caso, se a autoridade que nomeia o parente para o cargo em comissão age de má-fé ou não, se o indivíduo nomeado possui ou não qualificação para a função. A indicação de parentes para cargos em comissão, por si só, ofende, de forma objetiva, a moralidade administrativa, sendo irrelevante a real intenção do agente ao praticar o ato.

Desse modo, o concurso que se destina exclusivamente à formação de cadastro de reserva ofende objetivamente o princípio da moralidade, pela simples possibilidade de ocorrência de fraude no procedimento, independentemente de sua efetiva concretização.

A abertura de concursos públicos sem a definição do número de vagas representa também grave ofensa à impessoalidade. A decisão de quantos candidatos nomear não pode ser deixada à inteira discricionariedade da autoridade administrativa. Uma vez conhecidos os nomes dos aprovados, inexiste impessoalidade na decisão quanto ao número de aprovados que serão investidos no cargo ou emprego.

O concurso público cujo edital preveja apenas a formação de cadastro de reserva contraria também o princípio da publicidade, impedindo que os administrados possam decidir com segurança se desejam ou não prestar o concurso, conforme já comentado.

A situação viola ainda o princípio da segurança jurídica, pois permite que, num primeiro momento, a Administração abra concurso público para preenchimento de cargos ou empregos vagos e, num segundo instante, deixe de nomear os aprovados no referido certame.

A existência do cadastro de reserva afeta inclusive o princípio da dignidade da pessoa humana, fundamento da nossa República. O sacrifício de estudar meses e anos para um concurso público, obter uma boa colocação e ficar anos na expectativa de uma nomeação que poderá nunca ocorrer é situação que gera extrema incerteza e ansiedade no indivíduo e não pode ser chancelada pelo Direito.


5 – POSITIVAÇÃO DO CADASTRO DE RESERVA

Não obstante o acima exposto, o Presidente da República, andando na contramão da doutrina e da jurisprudência, resolveu positivar a possibilidade de adoção do cadastro de reserva nos concursos públicos do Poder Executivo Federal. A regra foi veiculada no art. 12 do Decreto n.º 6.944/2009:

Art. 12. Excepcionalmente o Ministro de Estado do Planejamento, Orçamento e Gestão poderá autorizar a realização de concurso público para formação de cadastro reserva para provimento futuro, de acordo com a necessidade, de cargos efetivos destinados a atividades de natureza administrativa, ou de apoio técnico ou operacional dos planos de cargos e carreiras do Poder Executivo federal.

Note-se que a autorização refere-se apenas aos cargos de natureza administrativa ou de apoio técnico ou operacional dos planos de cargos e carreiras do Poder Executivo federal. Todavia, após a edição desse Decreto, a publicação de editais de concursos sem definição do número de vagas, prevendo apenas a formação de cadastro de reserva, tem se intensificado, sobretudo no Poder Judiciário. [07] O dispositivo, além de possibilitar a ocorrência de fraudes, conforme citado acima, gera imensa insegurança jurídica nos candidatos aprovados, que só saberão se serão nomeados ou não quando forem efetivamente convocados – se o forem – ou quando expirar o prazo de validade do concurso – situação em que ficarão a ver navios.

Conforme já destacou o Ministro do STF Marco Aurélio Mello "a Administração Pública não pode brincar com o cidadão, convocando-o para um certame e depois, simplesmente, deixando esgotar o prazo de validade do concurso sem proceder às nomeações". [08] Esse raciocínio deve valer para os concursos que não anunciam o número de vagas a serem preenchidas, limitando-se a divulgar que o certame se destina à formação de cadastro de reserva.

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Alguns tentam justificar a positivação do cadastro de reserva, sob a alegação de que ele representa fator de eficiência no serviço público, ao permitir que a Administração elabore previamente uma lista de indivíduos habilitados a assumir cargos ou empregos públicos, de modo que, no momento em que surjam as respectivas vagas, seja possível convocar imediatamente os aprovados para assumir o posto, evitando-se, desse modo, interrupções na realização das atividades do órgão ou entidade.

O argumento acima não deve prevalecer, pois o cadastro de reserva fere princípios fundamentais da Administração Pública, que não podem ser afastados ante um suposto aumento de eficiência que pode ser facilmente alcançado, por exemplo, por meio do planejamento de um adequado calendário de realização periódica de concursos públicos, em função do histórico de vacâncias do órgão ou entidade. Desse modo, afigura-se ilegítima a tentativa de consolidação do instituto por meio da sua previsão expressa no Decreto n.º 6.944/2009.


6 – VEDAÇÃO LEGAL AO CADASTRO DE RESERVA

Para prevenir eventuais ilegalidades na realização de concursos públicos que objetivam apenas a formação de cadastro de reserva, o ideal é que tal procedimento seja vedado por lei. Nesse sentido, tramita no Senado Federal o Projeto de Lei n.º 369/2008 [09], de autoria do Senador Expedito Júnior, que veda a realização de concurso público exclusivo para a formação de cadastro de reserva. Segundo o Projeto, nenhum edital de concurso público poderá deixar de prever a especificação do número de cargos a serem providos e a formação de cadastro de reserva somente será permitida para candidatos aprovados em número excedente ao inicialmente previsto.

Na justificação do Projeto, o autor destaca que a adoção de cadastro de reserva permite a realização de concurso mesmo quando não haja qualquer cargo vago, o que pode constituir, muitas vezes, um verdadeiro atentado aos princípios da moralidade, da impessoalidade e da eficiência, ludibriando os candidatos, ao criar-lhes falsas expectativas de nomeação. Destaca ainda que não faz o menor sentido a realização de concurso apenas para a formação de cadastro de reserva, pois, "ou a Administração carece de novos quadros, e por isso promove o concurso, ou, não estando necessitada de mais servidores, falta-lhe interesse legítimo para deflagrar o processo seletivo".

Vale ressaltar que tampouco pode a Administração, visando fugir ao entendimento de que o candidato aprovado dentro do número de vagas possui direito subjetivo à nomeação, abrir concurso público com oferta irrisória de vagas, quando existir significativo número de cargos não providos no órgão ou entidade. Para impedir a ocorrência de casos como esses, é fundamental a inserção em norma legal de dispositivo que obrigue a Administração a oferecer, no edital do concurso, número de vagas compatível com a quantidade efetivamente existente em sua estrutura organizacional. Uma possível redação seria:

Art. X. A oferta de vagas em concurso público deve corresponder a, no mínimo, XX% do número de cargos ou empregos vagos no órgão ou entidade no momento da publicação do edital.

Ainda que a intenção dos gestores seja legítima (busca de continuidade do serviço e eficiência administrativa), o fato é que a adoção indiscriminada do cadastro de reserva em concursos públicos configura, por si só, prática objetiva que pode gerar os desvirtuamentos acima citados e ocasionar grave insegurança jurídica. Desse modo, o ideal é que tal instituto seja banido de qualquer procedimento de seleção pública, por meio da edição de lei formal sobre o assunto, pois o cadastro representa flagrante desrespeito aos princípios constitucionais da impessoalidade e da moralidade administrativa.


7 – CONCLUSÃO

Resta clara, portanto, a inconstitucionalidade de norma que venha a positivar a possibilidade de realização de concursos públicos exclusivamente para a formação de cadastro de reserva, a exemplo do art. 12 do Decreto federal n.º 6.944/2009, por nítida ofensa aos princípios da impessoalidade, da moralidade administrativa, da publicidade e do livre acesso aos cargos e empregos públicos. Vale citar que esse Decreto pode ser atacado inclusive por Ação Direta de Inconstitucionalidade, uma vez que se trata de um decreto autônomo, editado com fundamento no art. 84, VI, "a", da Constituição Federal. Conforme entendimento do STF, "possuindo o decreto característica de ato autônomo abstrato, adequado é o ataque da medida na via da ação direta de inconstitucionalidade". [10]


Notas

  1. ROCHA, Franciso Lobello de Oliveira. Regime Jurídico dos Concursos Públicos. São Paulo: Dialética, 2006, p. 56.

  2. GASPARINI, Diogenes. Direito Administrativo. 12.ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 178.

  3. Alguns exemplos: Caixa Econômica Federal 2006 (Cespe/UnB); Infraero 2009 (Fundação Carlos Chagas – FCC); Ministério Público da União 2006 (FCC); Tribunal Regional Eleitoral do Piauí 2009 (FCC).

  4. RMS 23.331/RO, AgRg no RMS 30.308/MS, RMS 30.459/PA.

  5. RE 227.480/RJ.

  6. FERRAZ, Luciano. Concurso Público e Direito à Nomeação. In: MOTTA, Fabrício (Coord.). Concurso Público e Constituição. 1.ª ed., 2.ª tiragem. Belo Horizonte: Fórum, 2007, p. 250.

  7. Exemplos: Banco do Brasil 2010 (FCC); Tribunal Regional Eleitoral do Amazonas 2010 (FCC); Tribunal Regional Eleitoral de Alagoas 2009 (FCC); Tribunal Regional Federal da 4.ª Região 2009 (FCC); Tribunal Regional do Trabalho da 3.ª Região 2009 (FCC); etc.

  8. Voto proferido na Adin n.º 2.931/RJ.

  9. Disponível em <senado.leg.br>.

  10. Adin 1.969-MC/DF.

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Sobre o autor
Luciano Henrique da Silva Oliveira

Consultor de Orçamentos do Senado Federal. Professor de Direito Administrativo em cursos preparatórios.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, Luciano Henrique Silva. A inconstitucionalidade do cadastro de reserva nos concursos públicos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2522, 28 mai. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14925. Acesso em: 2 nov. 2024.

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