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A atipicidade do descaminho quando há perdimento de mercadoria

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28/05/2010 às 00:00
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8) Conclusões.

Do que acima se expôs, podemos traçar as seguintes etapas para o raciocínio conclusivo:

8.1) O fato de o descaminho estar tipificado no Código Penal, em capítulo dos crimes contra a administração pública não obsta que tenha o mesmo tratamento jurídico conferido aos demais crimes contra a ordem tributária previstos na Lei n. 8.137/90. Todos os crimes fiscais inserem-se no contexto de proteção aos amplos interesses da Administração Pública, estejam eles tipificados no Código Penal ou em legislação esparsa.

8.2) O descaminho nada mais é do que uma modalidade de sonegação fiscal especificamente relacionada a operações aduaneiras. O núcleo do tipo do art.334 ("iludir, no todo ou em parte, o pagamento de direito ou imposto") é exatamente o mesmo da sonegação fiscal previsto no artigo 1º da Lei n. 8.137/90 ("suprimir ou reduzir tributo").

8.3) Havendo decisões do STF aplicando o princípio da insignificância em hipóteses de descaminho, fica evidente a natureza patrimonial do bem juridicamente protegido, já que a jurisprudência tem afastado a aplicação deste princípio nos casos em que se busca proteger valores não patrimoniais, tais como a fé pública.

8.4) O descaminho é um crime material, porque exige, para a sua consumação, a ilusão no pagamento integral ou parcial do direito ou imposto. A simples leitura do tipo (art.334, caput, 2ª parte) deixa transparecer que não se trata de crime meramente formal. A lei fala em iludir o pagamento, e não apenas em adotar medidas materiais com essa finalidade.

8.5) A consumação de descaminho exige que tenha havido entrada ou saída de mercadoria do País e que a autoridade competente apure e exija o crédito tributário que deixou de ser declarado nessa operação, configurando a ilusão do pagamento.

8.6) O STF considerou o prévio e definitivo lançamento tributário como elemento objetivo do tipo penal nos crimes fiscais materiais (Súmula Vinculante n. 24). Esse preceito não decorre da existência de um grau de comunicação entre as instâncias administrativa e criminal, nem tampouco do estabelecimento de uma regra de dependência decisória daquela em relação a esta. Considerou-se simplesmente que a constituição formal do crédito tributário, por meio do lançamento definitivo, é pressuposto para a própria ocorrência do crime.

8.7) Apesar de a Súmula Vinculante n. 24 apenas fazer menção à modalidade de sonegação fiscal prevista no art.1º, I, da Lei n. 8.137/90, a mesma razão justifica idêntico tratamento jurídico em relação aos demais crimes fiscais materiais, como é o caso do descaminho.

8.8) A importação de mercadorias, ao desamparo de guia de importação ou documento de efeito equivalente, é qualificada como "dano ao erário" punido com a pena de perdimento, consoante previsto no art.23, I e §1º do Decreto n. 1.455/76, com a redação dada pela Lei n. 10.637/2002, bem como no art. 689 do Decreto n. 6.759/2009 (Regulamento Aduaneiro).

8.9) Se a mercadoria importada ou exportada ilegalmente vem a ser confiscada pela Administração, não cabe cobrança de tributo a ela referente. E se porventura tiver havido declaração de importação, a posterior decretação de perdimento do bem dá ao antigo proprietário o direito de pedir de volta o tributo que eventualmente tenha adiantado ao fazer a declaração.

8.10) O confisco de bens é incompatível com a tributação. Se houver decretação de perdimento, tem-se uma espécie de extinção antecipada da potencial obrigação tributária que sequer vem a ser constituída, pois a pena administrativa impede a incidência do tributo ou a ocorrência do fato gerador do imposto aduaneiro, obstando o próprio desembaraço.

8.11) O Regulamento Aduaneiro, ao tratar do imposto de importação (art.71, III), diz expressamente que não incide o imposto sobre mercadoria estrangeira que tenha sido objeto de pena de perdimento. O mesmo ocorre em relação ao imposto sobre produtos industrializados (arts. 238 c/c 570, §1º, II c/c 571 do Regulamento Aduaneiro), assim como a contribuição para o PIS/PASEP-importação e a COFINS-importação (art.250 c/c 71, III).

8.12) Não sendo hipótese de incidência tributária, sequer se poderia falar em ilusão do pagamento de imposto ou direito. Logo, o núcleo do tipo penal do art.334 não ocorre.

8.13) Ao contrário do tipo penal do descaminho (CP, art. 334, 2ª parte), que busca proteger a ordem tributária consubstanciada na arrecadação de tributos, o tipo penal do art.334, caput, 1ª parte, visa impedir a entrada no país de produtos considerados nocivos sob vários aspectos, daí porque o contrabando segue sendo punível independentemente de constituição de crédito tributário.

Em suma, para a configuração do crime de descaminho, tal como tipificado no ordenamento jurídico brasileiro (art.334, caput, 2ª parte), faz-se necessário que tenha havido o lançamento definitivo do crédito tributário, de modo a se identificar o tributo objeto de ilusão. Não constituído o tributo ou tendo havido a decretação de perdimento de bens, não há justa causa para a persecução criminal.


Notas

  1. Conforme leciona Francisco de Assis Toledo, "os crimes complexos são em geral crimes pluriofensivos por lesarem ou exporem a perigo de lesão mais de um bem jurídico tutelado". In Princípios básicos de Direito Penal, 5.ed., Saraiva, p.145.
  2. O latrocínio, por exemplo, apesar de ser um crime hediondo que atinge também a vida, encontra-se tipificado no Código Penal no capítulo dos crimes contra o patrimônio (art.157, §3º, 2ª parte), com destaque para o elemento subjetivo do tipo, razão pela qual não vem sendo considerado como da competência do tribunal do júri (Súmula 603 do STF).
  3. Além de se referir aos crimes fiscais previstos na Lei n. 4729/65, o art.18, §2º do DL 157/67 também determinava a extinção da punibilidade quando a imputação penal estivesse relacionada a falta de pagamento de tributo.
  4. "A extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo devido estende-se ao crime de contrabando ou descaminho por força do art.18, §2º, do Decreto-lei 157/1967".
  5. A doutrina considera que a expressão "pagamento de direito", no art.334, está "no seu sentido histórico, como apelido dos antigos gravames que pesavam sobre importação (‘direitos de importação’, ‘direitos aduaneiros’ e ‘direitos alfandegários’)". Maximiliano Roberto Ernesto Führer e Maximilianus Cláudio Américo Führer. Código Penal comentado. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p.633.
  6. Confira-se, v.g. os julgados no HC n. 99.594 e no HC n. 94.058.
  7. Não fosse o descaminho essencialmente um crime contra a ordem tributária, não se poderia sequer aplicar esse vetor, já que a jurisprudência tem afastado a incidência do princípio da insignificância nos casos em que, mesmo sendo irrisório o dano patrimonial experimentado, o tipo penal busque proteger valores não patrimoniais, tais como a fé pública. Nesse sentido, v.g, o posicionamento do STF no HC n. 93251/DF.
  8. Crimes federais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p.360.
  9. Registre-se que houve divergências entre os ministros do STF sobre a natureza jurídica do lançamento definitivo em relação ao crime contra ordem tributária, notadamente se seria condição objetiva de punibilidade ou elemento normativo do tipo. Do que restou consignado na ementa do HC n. 81.611-SP (relator Min. Sepúlveda Pertence), uma ou outra solução em nada alteraria o resultado ali proclamado, pois "embora não condicionada a denúncia à representação da autoridade fiscal (ADInMC 1571), falta justa causa para a ação penal pela prática do crime tipificado no art. 1º da L. 8137/90 - que é material ou de resultado -, enquanto não haja decisão definitiva do processo administrativo de lançamento, quer se considere o lançamento definitivo uma condição objetiva de punibilidade ou um elemento normativo de tipo". Não obstante, ao que parece a Súmula Vinculante n. 24, ao falar que "não se tipifica", seguiu o entendimento de que seria elemento objetivo do tipo.
  10. Cite-se, por exemplo, o excelente texto de Douglas Fischer (Procurador Regional da República na 4ª Região), intitulado "A impunidade: sonegação fiscal e exaurimento da esfera administrativa - ainda sobre os problemas derivados do precedente do STF no HC nº 81.611- SP e seu confronto com o que decidido no HC nº 90.795- PE". Disponível em: www.anpr.org.br/portal/.../Artigo_Sonegacao_DouglasFischer.doc. Acesso em maio/2010.
  11. O próprio Douglas Fischer, ao afirmar ser equivocado o entendimento do STF em termos de consistência lógico-sistêmica, reconhece que o debate naquele artigo é eminentemente dialético. Idem.
  12. Nesse caso, consideramos razoável a posição de Douglas Fischer quanto sustenta que a benesse da extinção da punibilidade pelo pagamento de tributos, prevista no artigo 9º, § 2º, da Lei 10.684, seria materialmente inconstitucional, por violação da Proibição de Proteção Deficiente (Untermaβverbot). Ib idem.
  13. O que é bastante discutível sob o prisma de uma adequada política criminal, porém, como dito anteriormente, não é o objeto deste ensaio.
  14. O art.803 do Regulamento Aduaneiro prevê três destinações para os bens confiscados, a depender do caso: 1) alienação; 2) incorporação; 3) destruição ou inutilização.
  15. Na referida linha de entendimento seguida pelo STF.
  16. "Na formalização do processo administrativo fiscal para aplicação da pena de perdimento, na representação fiscal para fins penais e para efeitos de controle patrimonial e elaboração de estatísticas, a Secretaria da Receita Federal do Brasil poderá: (...) II – aplicar a alíquota de cinqüenta por cento sobre o valor arbitrado das mercadorias apreendidas para determinar o montante correspondente à soma do imposto de importação e do imposto sobre produtos industrializados que seriam devidos na importação".
  17. TRF da 1ª Região, AI 01000231438, Rel. Des. Fed. Cândido Ribeiro, 11/11/1997.
  18. O art.689 do Regulamento aduaneiro prevê a pena de perdimento em várias hipóteses, dentre elas quando a mercadoria estrangeira for "encontrada ao abandono, desacompanhada de prova de pagamento dos tributos aduaneiros" ou ainda quando "exposta à venda, depositada ou em circulação comercial no País, se não for feita prova de sua importação regular".
  19. Conforme o art.238 do Regulamento Aduaneiro: "O fato gerador do imposto, na importação, é o desembaraço aduaneiro de produto de procedência estrangeira". Ao lado disso, o art.571 estabelece que "desembaraço aduaneiro na importação é o ato pela qual é registrada a conclusão da conferência aduaneira". Saliente-se ainda que, nos termos do art.570, §1º, II, a não-apresentação de documentos exigidos pela autoridade aduaneira faz com que se interrompa a conferência aduaneira, impedindo o prosseguimento do despacho aduaneiro.
  20. O art.250 do Regulamento Aduaneiro prevê expressamente a não incidência dessas contribuições no tocante aos bens objeto de perdimento tratados no referido art.71, III.
  21. Até porque um argumento nesse sentido encontraria um forte obstáculo no direito positivo brasileiro, porquanto as hipóteses de extinção do crédito tributário são aquelas taxativamente previstas em lei, ex vi do art.97, VI, do CTN.
  22. Manual de Direito Penal, vol. 03, Atlas, p.368.
  23. Curso de Direito Penal brasileiro, vol. 4, RT, 2001, p.558.
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Sobre o autor
Durval Carneiro Neto

Mestre em Direito Público pela UFBA. Professor de Direito Administrativo na UFBA. Juiz Federal na Bahia.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARNEIRO NETO, Durval. A atipicidade do descaminho quando há perdimento de mercadoria. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2522, 28 mai. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14933. Acesso em: 19 abr. 2024.

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