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Interferência do Poder Judiciário na política de assistência social

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30/05/2010 às 00:00
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Observa-se uma sobrecarga de demandas na assistência social, com ampla interferência do Poder Judiciário na concessão do benefício de prestação continuada como uma medida paliativa à insuficiência dos serviços públicos essenciais.

Sumário:1. Introdução. 2. Assistência Social no Brasil. 3. Caracterização do direito à assistência social como um direito fundamental e definição do seu conteúdo. Conceitos de mínimo existencial e reserva do possível. 4. Limites à interferência do Poder Judiciário na concessão de benefícios de assistenciais. 5. Conclusão.


1. INTRODUÇÃO

Hodiernamente, em razão da crescente crise financeira e dos altos índices de desemprego, os direitos sociais têm figurado como objeto de inúmeras ações judiciais. Nesse contexto, a assistência social assume especial relevância, não só por estar direcionada à população de baixa renda, mas também por representar significante parcela dos gastos públicos.

A insuficiência dos serviços públicos essenciais (destaquem-se aqui: saúde, educação, saneamento e segurança) revela-se como principal fator responsável ao crescimento do público-alvo dos programas de assistência social.

Consequentemente, observa-se uma sobrecarga de demandas na assistência social, com ampla interferência do Poder Judiciário na concessão do benefício de prestação continuada previsto no art. 20 da Lei 8.742/1993 como uma medida paliativa à insuficiência dos serviços públicos essenciais.

Destarte, por meio do presente trabalho, foram levantados dados auxiliares para a avaliação da atuação do Poder Judiciário na assistência social, desvendando-se assim, se as medidas tomadas têm sido verdadeiramente positivas ou negativas para a sociedade, e se, de fato, essas decisões judiciais violam ou não a Constituição.


2. ASSISTÊNCIA SOCIAL NO BRASIL.

A assistência social no Brasil somente passou a ser regulamentada a partir da Constituição da República de 1988. Em fase anterior, não havia legislação específica disciplinando a matéria, logo, a assistência social limitava-se ao sistema previdenciário, que, embora contributivo, passou a contemplar em 1974 o benefício de amparo previdenciário (art. 1º da Lei 6.179/74).

O benefício de amparo previdenciário, portanto, revelou-se como primeira manifestação concreta da assistência social no Brasil, conhecido até hoje como Renda Mensal Vitalícia. Equivalente à metade do salário mínimo em vigor naquela época, era devido aos maiores de 70 anos ou inválidos que não auferissem renda superior ao valor do benefício assistencial, excluída a possibilidade de manutenção obrigatória por familiares e constatada a incapacidade de prover sua própria subsistência.

Curiosamente, o benefício assistencial em seus primórdios exigia a filiação do beneficiário ao sistema previdenciário sob condições menos rigorosas, mas ainda pressupunha a qualidade de segurado em algum momento de sua vida. Evidencia-se desta forma, que a assistência social somente passou a abranger a totalidade da população com o advento da Constituição de 1988, que passou a prever expressamente seu caráter não-contributivo.

Com isto, vemos na política de assistência social um grande salto evolutivo a partir da Constituição de 1988, sendo esta o marco de sua ruptura com o sistema previdenciário, passando o Estado a garantir o pagamento de benefícios de prestação continuada com recursos próprios [01]. Ao lado da prestação pecuniária não-contributiva, contemplou a Constituição como meta da assistência social a concretização de programas sociais com a finalidade de prover a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice, o amparo às crianças e adolescentes carentes, a promoção da integração ao mercado de trabalho, e, por fim, a habilitação e reabilitação das pessoas portadoras de deficiência e a promoção de sua integração à vida comunitária.

De acordo com o art. 203, inciso V da Constituição de 1988, o novo benefício de prestação continuada passou a ser no valor de um salário mínimo, destinado à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, cabendo ao legislador ordinário definir os requisitos para a sua concessão.

Com o advento da Constituição de 1988, no período de transição da política de assistência social, a Renda Mensal Vitalícia instituída pela Lei 6.179/74 permaneceu sendo paga até a regulamentação da citada norma constitucional prevista no art. 203, inciso V. Além disso, foram criados os auxílios-funeral e natalidade nos arts. 140 e 141 da Lei 8.213/91, benefícios de caráter assistencial que ficaram a cargo da Previdência Social até a entrada em vigor de lei específica que regulamentasse a assistência social.

Tal regulamentação somente adveio com a edição da Lei Orgânica da Assistencial Social (LOAS) – Lei 8.742/93, que previu expressamente a extinção da Renda Mensal Vitalícia e dos auxílios funeral e natalidade mediante a implantação do Benefício Assistencial de Prestação Continuada e dos novos auxílios por natalidade ou morte.

Destarte, a Lei 8.742/93 se incumbiu de delimitar os requisitos objetivos necessários para a concessão do benefício assistencial, tendo optado o legislador pelos critérios definidos no art. 20, quais sejam: a) o beneficiário deve ser idoso, ou seja, possuir idade superior a 65 anos, por força do art. 34 da Lei 10.741/2003 ou portador de deficiência incapacitante para a vida independente e para o trabalho, condição que será certificada mediante realização de perícia médica pelo INSS; b) o beneficiário deve comprovar uma renda familiar per capita inferior a ¼ (um quarto) do salário mínimo, excluída a renda já concedida a outro idoso pertencente àquele núcleo familiar, por força do art. 34, parágrafo único da Lei 10.741/2003.

No que tange aos requisitos objetivos dos auxílios por natalidade ou morte, dispôs o legislador no art. 22 da Lei 10.741/2003, a necessidade de comprovação de renda familiar inferior a ¼ (um quarto) do salário mínimo.

A partir do século XXI, observa-se na política da assistência social uma crescente preocupação com a implementação de programas assistenciais (referidos no art. 204 da Constituição de 1988), o que teria ocasionado em 13 de maio de 2004 a mudança da denominação do Ministério da Assistência Social para Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome.

Dentre os principais programas assistenciais podem ser citados: Programa de promoção à acessibilidade das pessoas portadoras de deficiência ou com mobilidade reduzida (Lei 10.098/2000), Programa Bolsa Família – que unificou os Programas Bolsa-Escola (Lei 10.219/2001), "Fome Zero" (Lei 10.689/2003) e Auxílio-Gás (Decreto 4.102/2002) (Lei 10.836/2004), e, por fim, o Programa de Complementação ao Atendimento Educacional Especializado às Pessoas Portadoras de Deficiência – PAED (Lei 10.845/2004).

No entanto, na prática, a política assistencialista eminentemente compensatória, ou seja, baseada somente em transferências de renda ao lado do pagamento do benefício assistencial de prestação continuada, tem se revelado prejudicial na medida em que vem consumindo desde a sua implementação parcelas cada vez maiores dos recursos do Orçamento da União, canalizando verbas que poderiam ser destinadas a investimentos na infraestrutura.

Paulo Haddad, ex-Ministro da Fazenda e do Planejamento, em entrevista datada de 06 de março de 2008 ao Jornal O Estado de São Paulo [02], chamou a atenção para três efeitos colaterais negativos desses programas que podem se refletir ao longo do tempo, caso nada seja feito para atenuá-los:

"Satisfeitos com o que recebem, os beneficiários desses programas tendem a permanecer como dependentes do governo, sem aspirar a nada melhor. As políticas sociais ''acabam por quebrar a coluna vertebral do empreendedorismo local nas áreas menos desenvolvidas do País, levando a maioria da população a uma posição de apatia social. A imensa dificuldade que os governos estão encontrando para promover o desenvolvimento de áreas economicamente deprimidas, mesmo após a melhoria de sua infra-estrutura (energia, transporte, telecomunicações) e a expansão da oferta de incentivos fiscais e financeiros, indica que esse fenômeno já está ocorrendo. O crescimento dos gastos com políticas sociais, por sua vez, reduz a já ínfima capacidade da União de investir na infra-estrutura econômica, o que retarda o crescimento da economia. Em 1987, os investimentos representavam 39% do gasto não financeiro da União, caindo para 3% em 2005. O governo Lula tem repetido que, na montagem do Orçamento, vem procurando aumentar a fatia dos investimentos, mas os resultados até agora são modestos. Por fim, as políticas sociais garantem rendas extras para as prefeituras, o que é bom para suas populações - em quase 2 mil municípios, de 50% a 60% das famílias residentes são beneficiadas por essas políticas -, mas têm uma conseqüência política e administrativa preocupante. Das receitas das prefeituras, 80% a 90% resultam de transferências da União e dos Estados, o que as desestimula a buscar fontes próprias de receitas e realimenta sua dependência financeira e política com governos central e estadual. As políticas sociais as tornam ainda mais dependentes. O desenvolvimento depende da canalização de forças sociais e da iniciativa inovadora. Mas as políticas sociais retardam o surgimento dessas forças. Por isso, no longo prazo (os beneficiados) tendem a ser enredados no círculo vicioso da pobreza e da destruição do capital social".

Logo, resta patente que, a partir do século XXI, a postura paternalista do Governo conferiu prioridade a programas compensatórios, em detrimento de métodos hábeis a promover a melhoria na infraestrutura dos serviços essenciais, que, embora leve muito mais tempo para demonstrar os resultados, não seria passível dos mesmos efeitos colaterais observados pelo ex-Ministro Paulo Haddad.

No âmbito da política assistencial social brasileira, o Poder Judiciário em vários setores também tem se demonstrado um aliado a esta postura paternalista. Basicamente, a interferência do Poder Judiciário na Assistência Social se dá por meio dos julgamentos de ações intentadas com o objetivo de obtenção da concessão do benefício de prestação continuada previsto no art. 20 da Lei 8.742/91.

Cabe ao INSS, por força de lei, a gestão e a observância dos requisitos objetivos para a concessão do benefício assistencial nos termos da Lei Orgânica de Assistência Social. Não raro, o Poder Judiciário tem decidido que os critérios objetivos previstos no art. 20 da Lei 8.742/91 violam a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, concedendo o benefício a destinatários que flagrantemente não se enquadram nos requisitos estabelecidos pelo legislador ordinário.

Na Ação Direta de Inconstitucionalidade 1.232-DF, o Procurador Geral da República postulou a declaração de inconstitucionalidade do § 3º do art. 20 da Lei 8.742/91, segundo o qual "Considera-se incapaz de prover a manutenção da pessoa portadora de deficiência ou idosa a família cuja renda mensal per capita seja inferior a 1/4 (um quarto) do salário mínimo".

Para tanto, aduziu o Exmo. Procurador Geral da República que tal dispositivo inviabilizaria o exercício do direito ao referido benefício, não sendo vedado o surgimento de outras hipóteses de miserabilidade não contempladas pelo legislador ordinário.

No entanto, o Supremo Tribunal Federal, por maioria, julgou em 27 de agosto de 1998 a ADIn improcedente, restando vencidos em parte os Ministros Ilmar Galvão, relator, e Néri da Silveira, que entenderam ser caso de interpretação conforme a Constituição, conferindo-se à norma impugnada a possibilidade de se certificar condição de miserabilidade da família do necessitado deficiente ou idoso por outros meios de prova.

Interessante salientar que após a improcedência da referida ADIn, o Superior Tribunal de Justiça continuou adotando interpretação no sentido de que "A Lei 8.742/93, art. 20, § 3º, regulamentando a norma da Constituição, art. 203, V, quis apenas definir que a renda familiar inferior a do salário mínimo é objetivamente considerada, insuficiente para a subsistência do idoso ou portador de deficiência; tal regra não afasta, no caso, em concreto, outros meios de prova da condição de miserabilidade da família do necessitado" [03].

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Para que se chegue a uma conclusão a respeito do presente impasse, importante se faz compreender a natureza do direito à assistência social em nosso ordenamento, e de que forma a Constituição lhe confere tratamento. Seria a assistência social um direito fundamental? Qual a melhor interpretação constitucional do dispositivo? É possível a intervenção do Poder Judiciário neste caso, em que não há uma lacuna legislativa, e sim, uma discordância subjetiva com o critério eleito pelo legislador? Este será o assunto tratado nos tópicos a seguir.


3. CARACTERIZAÇÃO DO DIREITO À ASSISTÊNCIA SOCIAL COMO UM DIREITO FUNDAMENTAL E DEFINIÇÃO DO SEU CONTEÚDO. CONCEITOS DE MÍNIMO EXISTENCIAL E RESERVA DO POSSÍVEL.

Antes de adentrar no mérito das normas regulamentadoras da assistência social, mister se faz situar o direito em questão no nosso ordenamento constitucional. A primeira pergunta a ser respondida é relativa à natureza da assistência social como um direito fundamental.

A respeito, Robert Alexy esclarece de forma concisa que o indivíduo que se situa em condição abaixo do mínimo existencial valoriza especialmente os direitos fundamentais mesmo que não os exerça naquele momento, dada a possibilidade de futuramente potencializar seus efeitos.

A melhoria da situação do indivíduo, segundo Alexy, num primeiro plano, revela-se mais importante que o exercício de suas liberdades jurídicas, daí a importância de um processo político de inclusão social prévio à realização dos direitos fundamentais.

Com isto, é possível extrair, a partir da doutrina de Robert Alexy, que o exercício dos direitos fundamentais – não se fala aqui na existência dos direitos fundamentais, mas sim da sua realização potencial – pressupõe que o indivíduo já possua uma condição acima do mínimo existencial, pois o estado de necessidade daqueles que não a possuem retira-lhes a possibilidade do exercício das liberdades jurídicas protegidas pelas garantias fundamentais.

No que tange ao conteúdo dos direitos fundamentais, expressa Alexy, embasado na interpretação do Tribunal Constitucional Federal Alemão, que:

"seriam uma expressão de um sistema de valores ‘em cujo centro se encontra o livre desenvolvimento da personalidade humana e de sua dignidade no seio da comunidade social’. À luz da teoria dos princípios, isso deve ser interpretado de forma a que o catálogo de direitos fundamentais expresse, dentre outros, princípios que exijam que o indivíduo possa desenvolver livremente sua dignidade na comunidade social, o que pressupõe uma certa medida de liberdade fática. A conclusão inevitável é a de que os direitos fundamentais, se seu escopo for o livre desenvolvimento da personalidade humana, também estão orientados para a liberdade fática, ou seja, também devem garantir os pressupostos do exercício das liberdades jurídicas, sendo, assim, ‘não apenas a regulação das possibilidades jurídicas mas também do poder de agir fático’" [04].

Para Alexy, a decisão sobre o conteúdo dos direitos fundamentais sociais é uma tarefa da política. A partir dessa ideia, no âmbito dos direitos fundamentais sociais os tribunais poderiam decidir somente após o legislador já haver decidido.

Destarte, no tocante à definição do conteúdo dos direitos fundamentais como tarefa exclusiva do Poder Judiciário salienta Alexy que:

"O argumento baseado na competência ganha um peso especial em virtude dos efeitos financeiros dos direitos fundamentais sociais. Por causa dos grandes custos financeiros associados à sua realização, a existência de direitos fundamentais sociais abrangentes e exigíveis judicialmente conduziria a uma determinação jurídico-constitucional de grande parte da política orçamentária. Visto que o Tribunal Constitucional Federal teria que controlar o respeito a essa determinação, a política orçamentária ficaria em grande medida nas mãos do tribunal constitucional, o que é incompatível com a Constituição" [05].

Seguindo esta linha de raciocínio, destaca ainda que:

"Colisões entre direitos fundamentais sociais de uns com direitos de liberdade de outros não surgem somente quando o Estado controla apenas indiretamente uma pequena parcela do objeto do direito em uma economia de mercado, como é o caso do direito ao trabalho. Todos os direitos fundamentais sociais são extremamente custosos. Para a realização dos direitos fundamentais sociais o Estado pode apenas distribuir aquilo que recebe dos outros, por exemplo na forma de impostos e taxas. Mas isso significa que os freqüentemente suscitados limites da capacidade de realização do Estado não decorrem apenas dos bens distributíveis existentes, mas sobretudo daquilo que o Estado, para fins distributivos, pode tomar dos proprietários desses bens sem violar seus direitos fundamentais" [06].

Com isto, a partir da doutrina de Alexy, é possível se extrair de forma exata a classificação do direito à assistência social como direito fundamental, pois os programas assistencialistas no Brasil se aproximam melhor da ideia de inserção social daqueles que ainda não têm condições concretas de fazer exercer os seus direitos fundamentais, passando-se a impressão de que a assistência social, tal como instituída, seria uma ação precedente ao exercício de um direito fundamental, logo, de igual natureza.

No mais, Alexy adota uma postura eminentemente procedimentalista ao tratar da questão referente à determinação do conteúdo dos direitos fundamentais, na medida em que confere exclusivamente ao Poder Legislativo a possibilidade de escolha e delimitação dos bens juridicamente tutelados, não sendo possível ao Judiciário intervir em sentido diverso das disposições legalmente estatuídas.

Contudo, ainda assim, não seria a teoria de Alexy apropriada para elucidar por si só a questão da assistência social no Brasil, levando-se em conta que o contexto na qual foi concebida distancia-se muito de nossa realidade.

Em contraponto ao pensamento de Alexy, o Professor Vicente de Paulo Barreto, apesar de também elencar os direitos sociais na categoria dos direitos fundamentais, ao tratar de seu conteúdo entende salutar a maximização de seus efeitos, não podendo o Estado se eximir de sua função de promover o bem comum por razões econômicas:

"Outra falácia, usualmente argüida em favor da exclusão dos direitos sociais da categoria de direitos fundamentais, consiste em sustentar-se que a efetividade dos direitos sociais depende da existência de uma economia forte, onde as cifras de manutenção das prestações sociais poderiam ser suportadas.

Esse argumento simplifica a complexidade do sistema econômico e social da modernidade, pois parte do pressuposto de que somente os países ricos teriam condições de sustentar políticas sociais consistentes e que atendessem aos ideais de justiça social. Isto porque a presença do poder público na implementação dos direitos sociais independe de mais ou menos recursos públicos, mas encontra-se diretamente ligada à função principal do Estado na sociedade moderna, qual seja, assegurar o bem comum.

A alocação de recursos para suprir demandas sociais depende, portanto, em última instância, da vontade política que se expressa no estado democrático de direito através do sistema representativo, quando ocorre a escolha pelo eleitor do projeto público de sua preferência. Tanto a questão da liberdade como a da igualdade, constituem a questão da liberdade como a da igualdade, constituem o pano de fundo diante do qual serão escolhidas as alternativas de políticas públicas apresentadas pelos partidos políticos. A sociedade é que deverá escolher quais as opções político-econômicas e, portanto, em quais setores serão aplicados preferencialmente os recursos públicos.

Por outro lado, esse argumento não se refere ao fato de que, mesmo nas economias fortes, continua-se a advogar a exclusão dos direitos sociais da categoria dos direitos fundamentais. Como sustenta Martinez de Bringas, a persistência da exclusão social nas economias mais fortes do planeta expressa uma crença enraizada em setores do pensamento social e político de que é uma fatalidade histórica a existência das desigualdades sociais, pois estas têm a ver com a própria natureza da sociedade humana. Esse argumento, portanto, tem como eixo principal a crença ideológica de que é impossível a consideração apriorística da realidade social como um espaço a ser caracterizado como ‘ausências de carências’" [07].

Para o Professor, o estabelecimento de uma relação de continuidade entre a escassez de recursos públicos e a afirmação de direitos representaria uma verdadeira ameaça à existência de todos os direitos. A partir de tal ilação, Vicente Barreto faz uma crítica aos constitucionalistas que entendem que o mínimo existencial deve ter seu conteúdo definido exclusivamente pela vontade política:

"Inspirada na doutrina e na jurisprudência constitucional alemã, a noção de ‘mínimo existencial’ pretende atribuir ao indivíduo um direito subjetivo contra o Poder Público, que seria obrigado a garantir uma existência mínima digna a todos os cidadãos. Em nenhum momento, pode-se, entretanto, determinar em que reside esse ‘mínimo existencial’, caindo-se, assim, no argumento do voluntarismo político, onde o mínimo para a vida humana fica a depender da vontade do governante.

Essa teoria, por sua imprecisão básica, tem servido de justificativa para interpretar a aplicação dos direitos sociais de forma restritiva, restringindo a sua amplitude e magnitude. Isso significa que o princípio da dignidade humana, basilar no sistema constitucional, adquira substância social e econômica. Para esses doutrinadores, a maximização dos direitos sociais implicaria no sacrifício do "mínimo existencial", pois, não havendo como assegurá-los, o Estado seria impotente para garantir aquele mínimo necessário para garantir uma sobrevivência condigna dos cidadãos, ainda que impreciso e a ser definido pela vontade política" [08].

Neste ensejo, Ricardo Lobo Torres, ao tratar do mínimo existencial como conteúdo essencial dos direitos fundamentais, faz uma interessante observação ao afirmar que:

"Os direitos sociais prestacionais, que excedam o mínimo existencial, não sendo fundamentais, estão abertos às restrições do legislador democrático".

A reserva da lei, máxime a orçamentária quando se tratar de prestações positivas, é um dos limites dos limites impostos ao legislador.

O mínimo existencial, como conteúdo essencial dos direitos fundamentais, é o resultado de restrições realizada sob a reserva da lei.

Os direitos fundamentais e o mínimo existencial não se encontram sob a discricionariedade da Administração ou do Legislativo, mas se compreendem nas garantias institucionais da liberdade, na estrutura dos serviços públicos essenciais e na organização dos estabelecimentos públicos (hospitais, clínicas, escolas primárias, etc.).

A superação da omissão do legislador ou da lacuna orçamentária se realiza por instrumentos orçamentários, e jamais à margem das regras constitucionais que regulam o orçamento. Se, por absurdo, não houver dotação orçamentária, a abertura dos créditos adicionais cabe aos poderes políticos (Administração e Legislativo), e não ao Judiciário, que apenas reconhece a intangibilidade do mínimo existencial e determina aos demais poderes a prática dos atos orçamentários cabíveis. Na insuficiência da verba, o Executivo, desde que autorizado pelo Legislativo (art. 167, V, da CF), deve suplementá-la pressionado pelo Judiciário; não havendo a dotação necessária à garantia do direito, o Legislativo deve abrir o crédito especial, providenciando a anulação das despesas correspondentes aos recursos necessários (art. 166, § 3º, II e 167, V, da CF)" [09].

A partir de tais considerações, resta evidenciada a existência de um núcleo intangível pelo legislador ordinário, que seria o mínimo existencial assegurado por um direito fundamental.

De acordo com o pensamento de Ricardo Lobo Torres, pode-se extrair com maior exatidão a realização do mínimo existencial como critério capaz de atribuir a um direito social prestacional a qualidade de direito fundamental.

Logo, nem toda prestação assistencial ou social irá se revestir do caráter fundamental hábil a repelir a discricionariedade política do legislador ordinário, dada a possibilidade de excessos a partir de certo patamar na condição de subsistência do indivíduo.

A partir da ideia de que nem todo direito social é um direito fundamental, Ricardo Lobo Torres demonstra o descompasso de alguns membros do Supremo Tribunal Federal com a realidade conceitual do mínimo existencial e da reserva do possível:

"O Supremo Tribunal Federal, em despacho do Min. Celso de Mello, proferido em caráter doutrinário, pois a ação declaratória de preceito fundamental já estava prejudicada, confundiu os direitos sociais com os fundamentais, deu à reserva do possível interpretação extensiva e abrangente, para torná-la suscetível de aplicação pelo Judiciário, e abusou da imprecisão terminológica, utilizando a expressão "disponibilidade financeira" para suprir assim a falta de verba orçamentária como a de dinheiro.

A desinterpretação, operada no Brasil pela doutrina e pela jurisprudência, do conceito de reserva do possível, serviu para alargar desmesuradamente a judicialização da política orçamentária até o campo dos direitos sociais, ao confundi-los com os fundamentais. Reserva do possível no Brasil passou a ser reserva fática, ou seja, possibilidade de adjudicação de direitos prestacionais se houver disponibilidade financeira, que pode compreender a existência de dotação orçamentária ou de dinheiro sonante na caixa do Tesouro! Como o dinheiro público é inesgotável, segue-se que sempre há possibilidade fática de garantia de direitos!

A judicialização da política pode levantar a suspeita de ofensa ao princípio da separação de poderes, máxime em temas orçamentários. Mas o fenômeno se globalizou e o Judiciário passa a assumir o controle dos grandes riscos sociais, da destruição do meio ambiente até a exclusão social dos pobres e miseráveis.

De feito, a tradição do direito orçamentário sempre foi a de deixar fora da apreciação judicial as escolhas do legislador e da administração, consideradas questões políticas. Além disso, a teoria do orçamento se fixara em torno da tese da natureza administrativa da lei de meios, o que não ensejava o controle jurisdicional.

Com a emergência dos direitos humanos nas últimas décadas, todavia, passou-se a cogitar da judicialização das políticas orçamentárias. Mas, a nosso ver, há que se manter a distinção, que se tem feito ao longo deste artigo, entre direitos fundamentais e direitos sociais: aqueles são garantidos até mesmo se não contemplados por políticas públicas; os direitos sociais, sujeitos à reserva do possível, isto é, à reserva de políticas públicas e de verbas orçamentárias, não justificam a judicialização. É claro que há uma zona de penumbra na qual a política pública pode conter programas de apoio simultâneo ao mínimo existencial e aos direitos sociais e, neste caso, se abre à jurisdição, como acontece nas vinculações orçamentárias constitucionalizadas nos últimos anos (EC 14/00, EC 29/00 EC 32/01, etc.) [10].

Visto que os recursos a serem distribuídos pelo Estado são limitados pela própria capacidade contributiva da população a que se destinam os serviços públicos essenciais, na situação peculiar do Brasil em que a maioria não contribui seja por estar abaixo do mínimo existencial, seja por se situar em posição de completa informalidade, não seria surpreendente constatar a deficiência financeira para a plena satisfação dos direitos fundamentais garantidos pela Constituição.

Por esta razão, no caso do Brasil, a realidade dos fatos nos dias atuais praticamente obriga o administrador a exercer, após a definição política da proteção que o Estado se comprometeu a dar, um segundo juízo de escolha no momento de alocar os recursos de que dispõe, dando-se preferência aos direitos fundamentais que atendam imediatamente as situações de maior necessidade.

Seria um grande risco ignorar os problemas de arrecadação de renda por que passa o país, e com isto dar continuidade à defesa da realização dos direitos fundamentais de forma plena e irrestrita, pois as condições futuras advindas daquela satisfação poderão acarretar a impossibilidade total de atendimento aos mesmos direitos fundamentais.

A exemplo disto, verifica-se no caso dos medicamentos, a concessão de liminares pelo Poder Judiciário em face do Poder Público obrigando-o a sustentar, a qualquer custo, tratamentos prolongados extremamente caros, o que, em vários casos, se cumpridos tal como determinado pelos magistrados, comprometeriam na prática, a integralidade do orçamento destinado ao serviço de saúde daquele local. Em outras palavras, estar-se-ia privilegiando um pequeno grupo de pacientes em detrimento de todo o resto da população usuária dos serviços de saúde.

Em vários tipos de situação observa-se a ocorrência de possibilidade de realização de um direito fundamental de forma plena no presente, seguida de uma impossibilidade progressiva ao longo do tempo.

Este seria o caso da previdência social, que, por acobertar riscos agravados por fatos novos como o aumento da expectativa de vida ou pela piora na prestação dos serviços essenciais, progressivamente no tempo, passa a ter uma menor arrecadação, seja pela informalidade crescente das atividades laborativas, seja pelo crescimento da população economicamente inativa, fato que foi de extrema importância para a decisão tomada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da contribuição previdenciários dos inativos [11].

À medida em que o país se distancia materialmente da possibilidade de realização efetiva dos direitos fundamentais de forma plena e satisfatória, é imprescindível a tomada de medidas e de escolhas que busquem remediar a situação de desequilíbrio, repartindo-se aos destinatários não só as prestações positivas de forma igualitária, como também, na mesma proporção, eventuais prejuízos e dificuldades delas advindos, pois só desta forma, seria possível a continuação da política pública sem a geração de novas desigualdades sociais.

Neste sentido, Luis Roberto Barroso traz à tona o problema da colisão das garantias fundamentais entre si, ao afirmar que a maximização de um direito fundamental poderia causar grave lesão a direitos de igual natureza de outros:

"Alguém poderia supor, a um primeiro lance de vista, que se está diante de uma colisão de valores ou de interesses que contrapõe, de um lado, o direito à vida e à saúde e, de outro, a separação de Poderes, os princípios orçamentários e a reserva do possível. A realidade, contudo, é mais dramática. O que está em jogo, na complexa ponderação aqui analisada, é o direito à vida e à saúde de uns versus os direitos à vida e à saúde de outros. Não há solução juridicamente fácil nem moralmente simples nessa questão" [12].

Neste mesmo sentido, assevera Ricardo Lobo Torres que:

"No Brasil o Supremo Tribunal Federal exige que a política pública seja dirigida aos pobres, como aconteceu com os aidéticos; só incidentalmente alguns ministros utilizam a linguagem maximalista e excessiva para ultrapassar aqueles limites, como aconteceu na ADPF 45. As instâncias inferiores é que têm abusado da prática das concessões indiscriminadas de prestações positivas aos ricos e à classe média, sem indagar sobre a jusfundamentalidade do direito; em alguns casos de medicamentos, chegaram a determinar o fornecimento de produtos importados, de altíssimo preço, que obviamente são estranhos às políticas públicas brasileiras. O Superior Tribunal de Justiça chegou a reconhecer o direito de indenização nos casos de omissão dos órgãos previdenciários na garantia de tratamento médico no exterior. O Poder Judiciário corre o risco de derivar para a política paternalista" [13].

Luis Roberto Barroso também destaca que a intromissão do Poder Judiciário nas políticas públicas representa uma nova modalidade de discriminação, já que infelizmente em nosso país, o acesso à justiça ainda não é uma realidade colocada ao alcance de toda a população.

Na mesma direção, Ricardo Lobo Torres aduz que:

"O grande problema da judicialização dos direitos sociais consiste no seu caráter antidemocrático, eis que tais direitos se afirmam na via das eleições e das escolhas trágicas dos partidos políticos em torno de políticas públicas. As Cortes Constitucionais não podem agir contra as maiorias nas questões políticas, mas apenas nas decisões que afetam a jusfundamentalidade dos direitos. Além disso, as decisões casuísticas agravam as desigualdades entre as pessoas.

No Brasil assiste-se à predação da renda pública pela classe média e pelos ricos, especialmente nos casos de remédios estrangeiros, com o risco de se criar um impasse institucional entre o Judiciário e os poderes políticos, se prevalecer a retórica dos direitos individuais para os sociais.

Em síntese, a judicialização das políticas orçamentárias pode conduzir à salvação ou à perdição dos direitos humanos.

Se restrita à afirmação dos direitos dotados de jusfundamentalidade e se cifrada na focalização dos interesses dos miseráveis, a judicialização das políticas orçamentárias pode conduzir à modificação do perverso panorama de exclusão social presente até hoje no Brasil.

Se, cooptada pelas elites, se distanciar do controle das omissões administrativas e legislativas no desenho das políticas públicas, passando a distribuir casuisticamente bens públicos em favor de quem tem cultura e agilidade para requerer aos órgãos judiciários, então contribuirá para a perdição dos direitos humanos no Brasil" [14].

Desse modo, a interferência do Poder Judiciário na política de assistência social tem acarretado um grave desequilíbrio, pois de fato tem se constatado o acesso à justiça preponderante da classe média, e não do verdadeiro público-alvo dos programas assistenciais.

Além disso, a percepção da realidade pelo Poder Judiciário é muito restrita, faltando-lhe técnica apurada para tomar as decisões mais adequadas referentes à política assistencial. Essa tarefa é atribuída exclusivamente ao administrador, o que nos remete ao ponto seguinte. Nas palavras de Luis Roberto Barroso: "O juiz é um ator social que observa apenas os casos concretos, a micro-justiça, ao invés da macro-justiça, cujo gerenciamento é mais afeto à Administração Pública".

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Sobre a autora
Cristiane Rodrigues Iwakura

Procuradora Federal, Mestranda em Direito Processual - UERJ, pós-graduanda em Direito Público pela CEAD/AGU/UnB

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

IWAKURA, Cristiane Rodrigues. Interferência do Poder Judiciário na política de assistência social. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2524, 30 mai. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14952. Acesso em: 5 nov. 2024.

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