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De milícias e de choques de ordem

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9.CONCLUSÃO

Enfatizou-se que a gênese do Estado moderno prende-se à progressiva conquista do monopólio do uso da coerção física pelo aparelho estatal. Ainda que se tenha levado em conta os abalos que o fenômeno da globalização tenha provocado sobre os Estados nacionais, verifica-se que os Estados permanecem e, assim, continuam a se valer da imposição do monopólio da violência, reprimindo-se a violência privada.

O surgimento das milícias no Rio de Janeiro representa forte elemento conspirador contra o pilar do monopólio do exercício da violência pelo Estado — trata-se de fenômeno em desenvolvimento, cuja dimensão tende a extrapolar os limites deste Estado. As políticas partidárias tem atuado de forma deletéria na implementação de uma política de segurança pública: ou adotam posturas sectárias à direita ou à esquerda, ou, simplesmente não existem. Por certo, geram vácuo de poder a ser ocupado por essas milícias.

Em que pesem alguns erros de avaliação, o modelo sugerido pelo Prof Luiz Eduardo Soares, preconiza e deita as bases concretas para implementação de uma bem articulada política de segurança pública, que, em médio prazo, viria a prover o Estado de uma compatibilização da necessária repressão, componente indissociável da segurança pública, com o inafastável respeito aos direitos humanos, materializados na promoção da dignidade da pessoa humana, fundamento desta República. Mas, não foi possível esperar pelo médio prazo e a política ruiu.

Na atualidade, a política de segurança pública, apesar de parecer bem intencionada, padece de uma recorrente ambiguidade: ao mesmo tempo que fala em pacificação, é uma das polícias que mais mata no mundo. Há uma subestimação da formação dos contingentes de praças e de oficiais nos mais diferentes níveis. Parece que a situação na Polícia Civil não é diferente. Vive-se de anúncios de compra de viaturas em cerimoniais midiáticos, ou se faz alarde do arrendamento, adotando-se uma míope visão de investir em equipamentos esquecendo-se do há de mais valioso na corporação, o policial.

Como acessório importante das políticas de segurança, por enquanto, se pode afirmar que as estratégias dos choques de ordem tem obtido razoável sucesso, pelo menos no plano simbólico, na medida em que se opõe à famigerada e difundida cultura que aos poucos já se internalizava em habitus do carioca — a cultura do "ilegal, e daí?" Resta saber se agirá na orla da Zona Sul e na Barra da Tijuca com a mesma (e necessária) voracidade com que atua no terreirão, no Recreio dos Bandeirantes.


REFERÊNCIAS

ADORNO, Sérgio. O Monopólio estatal da violência na sociedade brasileira contemporânea In O que ler na ciência social brasileira 1970-2002. Volume IV. Organizado por Sérgio Miceli. São Paulo: NEV/USP, 2002.

ELIAS, Norbert. O processo civilizador. v.2 Tradução de Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993.

FIORI, José Luís (org.). 60 Lições dos 90: uma década de neoliberalismo. Rio de Janeiro: Record, 2001.

FREUD, Sigmund. Mal estar na civilização. Tradução de José Octávio de Aguiar Abreu.Rio de Janeiro: Imago, 1974

KELSEN, Hans Teoria Geral do Direito e do Estado, Tradução de Luís Carlos Borges. 2ª ed. – São Paulo: Martins Fontes, 1992.

MORRIS, Christopher W. Um ensaio sobre o estado moderno. Tradução de Sylmara Belletti. São Paulo: Landy Editora, 2005.

RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Tradução de Vamireh Chacon. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1981.

SKINNER, B.F. O mito da liberdade. Rio de Janeiro: Edições Bloch, 1971.

SOARES, Luiz Eduardo. Meu casaco de general: 500 dias no front da segurança pública do Rio de Janeiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

____________ Novas Políticas de Segurança Pública: alguns exemplos recentes. Jus Navigandi, Teresina, ano 7, n. 65, maio 2003. Disponível em: http://jus.com.br/artigos/4096. Acesso em 15 ago 2009.

WACQUANT, Loic. As prisões da miséria. Trad. André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

WEBER, Max. Ciência e política: duas vocações. Tradução de Jean Melville. 2 ed. São Paulo: Martin Claret, 2008.

WEFFORT, Francisco C (org.). Os clássicos da política. V. 1. 14ª Ed. São Paulo: Á tica, 2006.


Notas

  1. Veja-se a sintomática declaração de um tal John de Toul, proferida no século XIII: "Eu, John de Toul, faço conhecido que sou vassalo da Lady Beatrice, condessa de Troyes, e de seu mais querido filho, meu caríssimo senhor conde Thibault de Champagne, contra todas as pessoas, vivas ou mortas, exceto pela homenagem de vassalo que fiz ao lorde Enguerran de Coucy, a lorde John de Arcis e ao Conde de Grandpré. Se acontecer de o Conde de Grandpré estar em guerra com a condessa e o conde de Champagne por seus próprios agravos pessoais, eu irei pessoalmente assitir ao conde de Grandprée enviarei à Condessa e ao conde de Champagne, se me convocarem, os cavalheiros que devo, pelo feudo que avassalei deles. Mas, se o conde de Grandpré fizer guerra contra a condessa e o Conde de Champagne a favor de seus amigos e não por seus agravos pessoais, servirei em pessoa à condessa e ao conde de Champagne e enviarei um cavalheiro ao conde de Grandpré para lhe prestar o serviço devido pelo feudo nque tenho dele. Mas eu não invadirei pessoalmente o território do conde de Grandpré." Apud MORRIS, Christopher W. Um ensaio sobre o estado moderno. Trad Sylmara Belletti. São Paulo: Landy Editora, 2005. p.61
  2. São exemplos das poucas exceções algumas imunidades conferidas aos corpos diplomáticos.
  3. " a unidade territorial do Estado é uma unidade jurídica, não geográfica ou natural, porque o território do Estado, na verdade, nada mais é que a esfera territorial de validade da ordem jurídica chamada Estado." In KELSEN, Hans Teoria Geral do Direito e do Estado, Trad. Luís Carlos Borges. 2ª ed. – São Paulo: Martins Fontes, 1992. p. 207-208
  4. Bobbio, Norberto. Direito e Estado no Pensamento de Emanuel Kant. 3ª edição. Trad. De Alfredo Fait. São Paulo: Mandarim, 2000. p. 19.
  5. WEBER, Max. Ciência e política duas vocações. Trad. Jean Melville. 2 ed. São Paulo: Martin Claret, 2008.p.60-61
  6. A violência é, por sua própria natureza, instrumental; como todos os meios, está sempre em procura de orientação e de justificativas pelo fim que busca. E aquilo que necessita justificar-se através de algo mais não pode ser a essência de coisa alguma [...]. Ademais, ao passo que os resultados das ações humanas escapam ao controle dos seus atores, a violência abriga em seu meio um elemento adicional de arbitrariedade [...]. A questão é que em certas circunstâncias a violência – atuando sem argumentos ou discussões ou sem atentar para as consequências – é a única maneira de equilibrar a balança da justiça de maneira certa. (ARENDT, Hannah. Da violência. Digitalizado em 2004. Disponível em: <http://www.sabotagem.cjb.net>. Acesso em: 20 set. 2006. Texto original: On Violence (1969), tradução de Maria Cláudia Drummond. p. 35, 32
  7. Santos B. S. & Arriscado NJ 2003. Para ampliar o cânone do reconhecimento da diferença e da igualdade, pp. 25-68. In B. S. Santos (org.). Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitismo multicultural. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro
  8. WIEVIORKA, M. O novo paradigma da violência. Tempo Social, São Paulo, v. 9, n. 1, p. 5-45, maio 1997
  9. Pra aprofundar o tema: WACQUANT, Loic. As prisões da miséria. Trad. André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. p p.81-96.
  10. WACQUANT, Loic. As prisões da miséria. Trad. André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001 p. 80.
  11. Merece ser destacado o seguinte excerto da obra de Freud: "A liberdade do indivíduo não constitui um dom da civilização. Ela foi maior antes da existência de qualquer civilização, muito embora, é verdade, naquele então não possuísse, na maior parte, valor, já que dificilmente o individuo se achava em posição de defendê-la. O desenvolvimento da civilização impõe restrições a ela e a justiça exige que ninguém fuja a essas restrições. IN FREUD, Sigmund. Mal estar na civilização. Trad. José Octávio de Aguiar Abreu.Rio de JANEIRO: Imago, 1974
  12. ADORNO, Sérgio. O Monopólio estatal da violência na sociedade brasileira contemporânea In O que ler na ciência social brasileira 1970-2002. Volume IV. Org. Sérgio Miceli. SÃO PAULO: Núcleo de Estudos da Violênci/USP. 2002 p.20
  13. SOARES, Luiz Eduardo. Novas Políticas de Segurança Pública: alguns exemplos recentes. Jus Navigandi, Teresina, ano 7, n. 65, maio 2003. Disponível em: http://jus.com.br/artigos/4096. Acesso em 15 ago. 2009.
  14. Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado democrático de direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II - a cidadania; III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o pluralismo político. Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.
  15. "Conforme pesquisa divulgada pela FSP, em 15/04/2007, o salário médio no Brasil pago para o policial militar em início de carreira é de R$ 1.307,00, sendo que os menores salários são pagos nos Estados de Alagoas (R$850,00), Rio de Janeiro (R$874,00) e Pernambuco (R$900,00) e Rio Grande do Sul (R$965,00) e os maiores são pagos nos Estados do Paraná (R$ 1700,00), Goiás (R$1.745,00), Amapá (R$1.770,00) e Distrito Federal (2.900,00). A matéria alerta para o fato de que o Estado de São Paulo paga um salário abaixo da média nacional (R$1.240,00)". Fonte: Observatório de Segurança Pública. Disponível em: http://www.observatoriodeseguranca.org/dados/custos/policial. Acesso em 15/08/2009.
  16. Skinner estudou com profundidade estes condicionamentos. "Quando um dado comportamento é seguido por uma dada conseqüência, apresenta maior probabilidade de repetir-se. Denominamos reforço à conseqüência que produz tal efeito". In SKINNER, B.F. O mito da liberdade. Rio de Janeiro: Edições Bloch, 1971. p.26.
  17. SOARES, Luiz Eduardo. Meu casaco de general: 500 dias no front da segurança pública do Rio de Janeiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 354.
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Sobre o autor
Mauro Cleber Rodrigues Martins

Oficial do exército, advogado militante, pós graduado(especialização) em administração hospitalar pela UNEB - DF e em direito sanitário pela FIOCRUZ, Mestre em operações militares pelo ESAO/Exército e Mestrando em política social pela UFF.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARTINS, Mauro Cleber Rodrigues. De milícias e de choques de ordem. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2565, 10 jul. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14962. Acesso em: 26 abr. 2024.

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