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Uma breve análise sobre a incongruência legislativa nas novas causas extintivas da punibilidade no crime de sonegação de contribuição previdenciária

01/11/2000 às 00:00
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1. INTRODUÇÃO

O Código Penal Brasileiro (1), recentemente, foi alterado mais uma vez. Essa constância de modificações fez com que Miguel Reale Júnior denominasse o atual estágio do direito penal de Direito Penal "fernandino" (2).

Desta feita o legislador introduziu o crime de sonegação de contribuição previdenciária (art 337 A) (3), prevendo, ainda, duas causas extintivas da punibilidade uma obrigatória e outra facultativa in verbis :

" Art. 337-A. (omissis)

§1º É extinta a punibilidade se o agente, espontaneamente, declara e confessa as contribuições, importâncias ou valores e presta as informações devidas à Previdência Social, na forma definida em lei ou regulamento, antes do início da ação fiscal.

§2º É facultado ao juiz deixar de aplicar a pena ou aplicar somente a de multa se o agente for primário e de bons antecedentes, desde que :

I - vetado

II - o valor das contribuições devidas, inclusive acessórios, seja igual ou inferior àquele estabelecido pela Previdência social, administrativamente, como sendo o mínimo para o ajuizamento de suas execuções fiscais"

O presente trabalho visa tecer alguns comentários sobre essas causas extintivas da punibilidade.


2. DA ATUAL TRANSIÇÃO DO DIREITO PENAL.

Imprescindível gizar que a concepção de direito penal atual não pode ser idêntica à concepção de outrora.

Sabe-se que o direito penal não foi, não é e nem será a solução para os graves problemas sociais (4), cada vez mais multiplicados pela sociedade de massa caracterizada pelo incrível paradoxo da evolução e involução simultânea da humanidade.

Efetivamente, começam os doutrinadores a apontar a necessidade de uma profunda reformulação do Direito Penal, fazendo-se mister adequar o Direito Penal à Força normativa e dirigente da Constituição.

A partir desse novo paradigma (garantista) a função primordial do Direito Penal é a tutela eficaz de bens jurídicos de relevância para a Constituição.

Neste diapasão, cabe lembrar a precisa lição de Lenio Streck (5) ao afirmar: " Dito de outro modo, não há dúvida, pois que as baterias do Direito Penal, no plano do Estado Democrático de Direito, devem ser direcionadas preferentemente para o combate dos crimes que impedem a realização dos objetivos constitucionais do Estado. Ou seja, no Estado Democrático de Direito- instituído no artigo 1º da CF/88- devem ser combatidos os crimes que fomentam a injustiça social, o que significa afirmar que o direito penal deve ser reforçado naquilo que diz respeito aos crimes que promovam e/ou sustentam as desigualdades sociais."

A moderna criminologia aponta, desde a teoria do etiquetamento (labelling approach), o quanto a sociedade é manipulada para crer na existência de indivíduos voltados biologicamente para a prática do crime e que a simples, dura e efetiva (law and order) punição, quiçá com a pena capital, resolveriam os problemas.

A criminalidade do colarinho branco (Sutherland) é esquecida numa cifra oculta incalculável, mas que conta com o respaldo social, pois como lembrado por Francisco Betti (6) " Uma constante nos crimes em estudo é a constatação da ausência de valoração social negativa, que procede de vários fatores: apego excessivo aos bens materiais, como o lucro; egoísmo exagerado dos detentores do capital, que devotam total desprezo às classes menos favorecidas e a certeza da impunidade".

Nesse contexto, criminalizou-se determinadas condutas lesivas a um dos bens jurídicos mais importantes na modernidade: a seguridade social, bem de importância ímpar, destacado por Lílian Castro (7) " como evoluções das liberdades públicas democraticamente conquistadas, confundem-se com os próprios fins do Estado, de realizar justiça social e erradicar a miséria, provendo a igualdade material".

Tendo em vista essa peculiar situação do bem jurídico seguridade social, torna-se possível efetuar uma análise das causas extintivas da punibilidade previstas na lei 9983/00.


3. CAUSAS EXTINTIVAS DA PUNIBILIDADE

Na evolução do Direito Penal, a punibilidade deixou de integrar o conceito de crime para se configurar na principal conseqüência do delito.

Cabe lembrar o posicionamento da doutrina quase uníssono quando afirma que a causa extintiva da punibilidade não faz desaparecer o delito, mas apenas as suas conseqüências.

A fonte legal geral das causas de extinção da punibilidade é o artigo 107 do Código Penal, todavia, tal dispositivo não encerra todas as espécies de causa extintiva, sendo portanto numerus apertus.

3.1 DA CAUSA EXTINTIVA OBRIGATÓRIA PREVISTA NO §1 DO ARTIGO 337 DO CP.

Aprioristicamente, deve-se frisar que a liberdade do legislador de prever as causas extintivas da punibilidade não pode ir ao extremo de enfraquecer a proteção ao bem jurídico, materializada na norma penal.

Some-se a esse fato a necessidade de uma justificativa plausível para elidir a imposição da norma penal secundária. Tal justificativa deve coadunar-se aos princípios constitucionais.

Depreende-se da leitura do novo parágrafo em comento que a punibilidade será extinta quando o agente espontaneamente declara e confessa as contribuições, importâncias ou valores e presta as informações devidas à Previdência Social, na forma definida em lei ou regulamento, antes do início da ação fiscal.

Antes do advento de tal parágrafo, o artigo 34 da lei 9249/95 (8) previa a extinção da punibilidade se o agente promovesse o pagamento antes do recebimento da denúncia.

Duas importantes diferenças podem ser apontadas entre os dispositivos:

1º-a novel lei não exige o pagamento (norma mais benéfica ao réu),

2º-a ação do agente deve ser realizada antes de qualquer ação fiscal, enquanto a norma aplicável anteriormente previa, como momento final para a prática do ato extintivo da punibilidade, o recebimento da denúncia.

Como existe independência entre as ações penais e fiscais, em tese não se pode precisar qual das duas será deflagrada primeiro. Entretanto, intuitivamente, a maior probabilidade é de que a ação fiscal ocorra anteriormente à ação penal.

Se for considerada a plena validade da lei 9983/00, no que tange ao conflito de leis no tempo, quadra ponderar ser o direito penal bastante claro ao afirmar que a lei nova mais benéfica deverá ser aplicada retroativamente até mesmo após o trânsito em julgado da sentença condenatória devendo, nessa hipótese, o juiz da execução penal (art 66 da LEP e súmula 611 do STF) aplicar a abolitio criminis ou a novatio legis in mellius. Portanto como a lei 9983/00 é mais benéfica, deve ser aplicada aos fatos ocorridos anteriormente a sua vigência.

No presente momento, após a breve exposição da aplicação da lei nova, cabe realizar uma reflexão mais aprofundada sobre o conteúdo da nova causa extintiva da punibilidade em face do sistema jurídico brasileiro vigente.

Interessante destacar que, na mesma lei 9983/2000, quando o legislador tratou da extinção da punibilidade do crime de apropriação indébita previdenciária trouxe para a configuração da causa extintiva a necessidade de pagamento do tributo (art 168-A §2 do CP).

Não se compreende o porquê do tratamento diferenciado quando do trato da causa extintiva da sonegação previdenciária, já que ambos os delitos produzem os mesmos nefastos prejuízos para os cofres da Seguridade Social.

Tal conduta é paradoxal, porque a ação de sonegação (com o seus inúmeros meios fraudulentos) é muito mais grave do que a apropriação indébita.

Corroborando tal assertiva, mas escrevendo, ainda, sobre o artigo 34 da lei 9249/95 Paulo Baltazar Júnior (9) dilucida: " Essa conclusão mais se fortalece quando se observa que o artigo 34 da lei 9249/95 se aplica mesmo aos casos nos quais o agente se vale de meio fraudulento para suprimir ou reduzir tributo. Ora, não se pode aceitar que seja favorecido pela extinção da punibilidade o autor desse tipo de conduta, francamente mais ofensiva à consciência jurídica; enquanto não é alcançado o agente responsável pela mera omissão no recolhimento de contribuições descontadas do empregado"

Por outro lado, é esdrúxulo constatar que, em relação a bens jurídicos de menor valor (por exemplo um patrimônio individual num furto), a conduta da confissão se configure como uma mera atenuante genérica e quando se está em face do patrimônio de Todos (seguridade social) a simples confissão possa extinguir a punibilidade (10).

Tais situações estarão em harmonia com os melhores princípios do Direito e de nossa Constituição? Causa espécie tal incongruência legislativa, devendo necessariamente ser corrigida pelos aplicadores do Direito.

Realmente, é extremamente difícil tentar salvar a grave incongruência praticada pelo legislador. Frise-se ser inviável a interpretação constitucional conforme, pois, não é possível via interpretativa acrescentar (no caso a exigência de pagamento) elementos ao texto da lei.

Como a sistematização e a coerência das regras (que não possuem a dimensão de peso ínsita aos princípios) são elementos indispensáveis para que o Direito se configure num sistema, impossível será a coexistência dessa causa extintiva da punibilidade penal no sistema com a adequada proteção constitucional à Seguridade Social, devendo, portanto, ser extirpada de nossa ordem jurídica.

Deveras o princípio da proporcionalidade em seu subprincípio da proporcionalidade em sentido estrito (11) pode ser aplicado a fim de caracterizar de uma vez por todas a inconstitucionalidade de tal causa extintiva da punibilidade.

Na análise das vantagens da norma e de suas desvantagens, constata-se facilmente a preponderância dos aspectos negativos sobre o aspecto positivo (para o criminoso), consubstanciando a inconstitucionalidade.

O legislador pátrio precisa acabar com o que ficou conhecido por legislação-álibi. Se a seguridade social é um bem jurídico que deve ser tutelado pelas normas penais, deve o legislador fazê-lo com presteza e coerência, sem tipificar e simultaneamente acabar com qualquer eficácia de punição ao prever que a simples confissão exclui a punibilidade.

3.2 DA CAUSA EXTINTIVA FACULTATIVA PREVISTA NO §2 DO ARTIGO 337 DO CP

Interessante observar de plano que a causa extintiva da punibilidade facultativa tem mais lógica jurídica do que a causa obrigatória antes mencionada.

Ora, se a lesão ao bem jurídico foi de ínfimo valor a ponto de não se justificar a ação de execução fiscal, com muito mais razão tal conduta será insignificante para consubstanciar uma lesão que mereça a intervenção do Direito penal.

Efetivamente, o legislador materializou em tal previsão o consagrado princípio da insignificância, definido por Cezar Bitencourt (12) do seguinte modo "segundo esse princípio, é necessário uma efetiva proporcionalidade entre a gravidade da conduta que se pretende punir e a drasticidade da intervenção estatal"

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Interessante destacar que o princípio da insignificância leva à atipicidade do fato. Portanto, mesmo que não estivesse expressa tal causa extintiva da punibilidade, em tese seria possível ser excluído o crime pela utilização do princípio.

Por fim, cabe transcrever preciso acórdão do STJ quando o Tribunal pontificou : " O princípio da insignificância se refere a hipótese de ofensa mínima ao bem jurídico que não deve ser confundido com a proporção de dano em relação ao patrimônio do sujeito passivo." (STJ- RHC 6319/PR 5 turma, Rel Min Felix Fischer, DJU 23.6.97, p 291666)


4. CONCLUSÕES

A Constituição de 1988 é (deveria ser), em nossa ordem jurídica, a fonte maior do ordenamento jurídico, devendo as normas penais se adequar aos princípios e às regras constitucionais.

O legislador infra-constitucional não detém liberdade absoluta e incontrastável para criar crimes ou causas extintivas da punibilidade, posto que é indispensável a adequação das normas penais a noção de bem jurídico tutelado constitucionalmente.

Nessa ótica, é inviável criminalizar condutas que não ofendam nenhum bem jurídico (Direito Penal mínimo), assim como é insustentável ampliar as causas extintivas da punibilidade quando existe a violação a bens jurídicos de importância ímpar.

A causa extintiva da punibilidade prevista no §1º do artigo 337 do CP é inconstitucional por violar ao princípio da proporcionalidade no seu sub-princípio da proporcionalidade em sentido estrito.

A causa extintiva prevista no §2º do artigo 337 do CP se configura na materialização do princípio da insignificância, devendo ser aplicada normalmente pelos operadores jurídicos.


NOTAS

1. Lei 9983 de 14 de julho de 2000, que entrará em vigor 90 dias após a sua publicação.

2. " O Direito Penal " fernandino" faz da década de 90 um dos momentos mais dramáticos para o Direito brasileiro, pois era imprevisível que se produzissem em matéria repressiva tantas soluções normativas ao sabor dos fatos, sob o encanto de premissas falsas e longe de qualquer técnica legislativa." REALE JÙNIOR. Miguel. Mens Legis insana, corpo estranho.Penas restritivas de Direitos. Críticas e comentários às penas alternativas, lei 9714/98. RT, São Paulo, p 23.

3. Sistematizando com ampliações as antigas alíneas a, b e c do artigo 95 da lei 8212/91.

4. Precipuamente por atingir conseqüências (os delitos) da crise social e não as causas ( falta de educação, saúde efetividade dos direitos fundamentais).

5. STRECK.Lenio Luiz. Crise (s) Paradigmática (s) no Direito e na Dogmática jurídica: Dos conflitos interindividuais aos Conflitos transindividuais. Revista Brasileira de ciências criminais. São Paulo: RT, n28, out-dez 1999, p 111

6. BETTI, Francisco de Assis. Aspectos dos Crimes contra o Sistema Financeiro no Brasil. Belo Horizonte: Del Rey, 2000, p 20

7. DE SOUZA, Lílian Castro. As normas da seguridade social na Constituição de 1988 como evolução dos Direitos fundamentais da pessoa humana. www.anpprev.org.br/art226.htm em 30/08/2000

8. Tal lei não atende aos requisitos previstos na lei complementar 95. Todavia, recorde-se ser impossível decretar a sua inconstitucionalidade: a uma – porque a inconstitucionalidade formal é auferida no momento da elaboração da lei e quando da elaboração da lei 9249/95 inexistia a lei complementar n 95 ; a duas- porque o Supremo Tribunal aponta que tais vícios configuram-se em ilegalidade, sendo a inconstitucionalidade apenas reflexa.

9. BALTAZAR JUNIOR.José Paulo. Direito Previdenciário. Aspectos Penais, coordenador Vladimir Passos de Freitas. 2 ed, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999, p 348

10. Destaca-se que em relação a causa extintiva da punibilidade prevista no artigo 34 da lei 9249/95, uma doutrina vanguardista, infelizmente com pequenos reflexos jurisprudenciais, alargou a causa extintiva para abranger situações excepcionais de outros crimes, exempli gratia o de furto, sob o singelo argumento, dentre outros, da necessidade de obediência ao princípio constitucional da proporcionalidade das penas.

11. Daniel Sarmento leciona sobre esse sub-princípio: " Na verdade, o subprincípio da proporcionalidade em sentido estrito convida o intérprete à realização de autêntica ponderação. De um lado da balança, devem ser postos os interesses protegidos com a medida, e, do outro, os bens jurídicos que serão restringidos ou sacrificados por ela. Se a balança pender ´para o lado dos interesses tutelados, a norma será válida, mas, se ocorrer o contrário, patente será a sua inconstitucionalidade". SARMENTO, Daniel.A ponderação de interesses na Constituição Federal.Rio de Janeiro: Lúmen Iures, 2000, p 89.

12. BITENCOURT, Cezar Roberto; CONDE, Francisco Munoz. Teoria Geral do Delito. São Paulo: Sartaiva, 2000, p 163

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Sobre o autor
Américo Bedê Freire Júnior

procurador da Fazenda Nacional no Maranhão, professor da Escola Superior do Ministério Público do Maranhão

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FREIRE JÚNIOR, Américo Bedê. Uma breve análise sobre a incongruência legislativa nas novas causas extintivas da punibilidade no crime de sonegação de contribuição previdenciária. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 47, 1 nov. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1499. Acesso em: 25 abr. 2024.

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