A polêmica Hart-Dworkin girava em torno de um tema cuja importância permanece admirável: existe discricionariedade judicial?
Não existe resposta a semelhante questionamento que escape da diferenciação de princípios e regras jurídicas.
De fato, o ordenamento jurídico não pode ser visto meramente como complexo de regras dotadas de coercibilidade ou coercitividade, sendo alimentado também por princípios jurídicos que lhe garantem completude e coerência axiológica e teleológica.
Há marcante diferença entre as regras e os princípios, ambos compreendidos no gênero das normas jurídicas.
Esclareça-se que normas jurídicas não se confundem com dispositivos legais. Normas jurídicas são, na realidade, o sentido que resulta da interpretação e integração dos textos emanados do Poder Legislativo.
A aplicação de uma regra, normalmente feita por juízo de subsunção, afasta a aplicação de regras com resultados diversos, concretizando a independência enquanto característica do sistema jurídico.
A aplicação dos princípios, a seu turno, depende de uma avaliação do peso de cada um, sem que a prevalência de um princípio implique invalidade dos outros.
Princípios gerais de direito representam valores e finalidades caros ao povo que funda cada Estado, sendo variáveis segundo sua própria evolução histórica, prescindindo de redução a categoria das normas escritas.
Tais valores e finalidades conformam a própria atividade constituinte originária e, com muito mais razão, a atividade legislativa cotidiana.
O positivismo, apoiado na idéia do sistema composto exclusivamente por regras (primárias e secundárias), não via alternativa para o suprimento das lacunas senão o recurso à decisão tomada discricionariamente ou, para usar uma expressão comum em nosso ordenamento, "ao prudente arbítrio do juiz".
Com o desenvolvimento da teoria dos princípios e sua descoberta no universo jurídico, lançaram-se novas luzes sobre a questão das lacunas no ordenamento jurídico.
Considerando que os princípios, entre outras funções, garantem a completude do sistema, passa-se a compreender que o aplicador pode se deparar com a falta de solução prevista em textos legais para determinadas situações fáticas, irredutíveis a qualquer pressuposto hipoteticamente previsto em lei.
Não se pode admitir, por outro lado, a incompletude do ordenamento jurídico, sob pena de colocar em dúvida sua qualidade de sistema. A própria Lei de Introdução ao Código Civil, atenta ao problema, não cuidou das lacunas como omissões da "ordem jurídica", senão da lei.
Art. 4.º. Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito. [01]
Nota-se que o próprio Direito Positivo pátrio acabou por optar pela adoção da teoria dos princípios, levando a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal a negar a discricionariedade judicial.
COMPETÊNCIA - HABEAS CORPUS - ATO DE TRIBUNAL DE ALÇADA CRIMINAL. Na dicção da ilustrada maioria, entendimento em relação ao qual guardo reservas, compete ao Supremo Tribunal Federal julgar todo e qualquer habeas corpus dirigido contra ato de tribunal ainda que não possua a qualificação de superior. Convicção pessoal colocada em segundo plano, em face de atuação em órgão fracionário. CRIME TENTADO - PENA - DIMINUIÇÃO - FIXAÇÃO DA PERCENTAGEM - PRIMARIEDADE - IRRELEVÂNCIA. A fixação da percentagem relativa à diminuição da pena em face do envolvimento de prática delituosa tentada faz-se a partir do percurso implementado (iter criminis), sendo irrelevante a primariedade, ou não, do réu. PENA - CUMPRIMENTO - REGIME. Uma vez observadas as condições previstas na alínea "c" do § 2º do artigo 33 do Código Penal e sendo positivas as circunstâncias judiciais, cumpre a adoção do regime aberto. Inteligência do vocábulo "poderá", considerado o ofício judicante, no qual inexiste ato discricionário. HABEAS CORPUS - ORDEM - EXTENSÃO A CORÉUS. Sendo idênticas as situações fáticas e jurídicas dos co-réus, impõe-se, a eles, a extensão da ordem. [02]
Todo o problema surge na fase de sopesamento ou ponderação dos valores em jogo. A todo custo deve-se evitar que a autoridade encarregada de decidir sucumba à tentação de atribuir à sociedade valores que, em verdade, são seus próprios.
A possibilidade de ponderação de valores não serve a permitir que o aplicador da lei prefira – e, sob essa ótica compreende-se a incisiva crítica de Jürgen Habermas à ponderação de valores e à concepção por Robert Alexy dos princípios como "mandados de otimização" – seus valores àqueles reconhecidos no ordenamento.
Outra não é a causa da preocupação esposada pela doutrina da moderna interpretação constitucional.
A moderna interpretação constitucional envolve escolhas pelo intérprete, bem como a integração subjetiva de princípios, normas abertas e conceitos indeterminados. Boa parte da produção científica da atualidade tem sido dedicada, precisamente, à contenção da discricionariedade judicial, pela demarcação de parâmetros para a ponderação de valores e interesses e pelo dever de demonstração fundamentada da racionalidade e do acerto de suas opções. [03]
Prosseguem os autores.
A metáfora da ponderação, associada ao próprio símbolo da justiça, não é imune a críticas, sujeita-se ao mau uso e não é remédio para todas as situações. Embora tenha merecido ênfase recente, por força da teoria dos princípios, trata-se de uma idéia que vem de longe. Há quem a situe como um componente do princípio mais abrangente da proporcionalidade e outros que já a vislumbram como um princípio próprio, autônomo, o princípio da ponderação. É bem de ver, no entanto, que a ponderação, embora preveja a atribuição de pesos diversos aos fatores relevantes de uma determinada situação, não fornece referências materiais ou axiológicas para a valoração a ser feita. No seu limite máximo, presta-se ao papel de oferecer um rótulo para voluntarismos e soluções ad hoc, tanto as bem-inspiradas como as nem tanto. [04]
Para evitar as decisões pessoais, com a consequente substituição do "governo das leis" pelo "governo dos homens", a aplicação dos princípios deve atender aos postulados da Teoria da Argumentação.
A argumentação jurídica precisa, em primeiro lugar, ser normativa.
Ainda que os princípios possam estar implícitos, é preciso que se demonstre racionalmente sua aceitação como representação dos valores e finalidades que pretendem atender.
Em segundo lugar, é preciso que esses princípios sejam universalizáveis.
Para tanto, deve-se demonstrar da possibilidade de empregá-los a situações distintas que exijam a defesa daqueles mesmos componentes teleológicos e axiológicos.
Finalmente, revela-se indispensável a comprovação de que a aplicação dos princípios invocados concretize os postulados de coerência e completude do ordenamento jurídico, devendo a argumentação conduzir à percepção de estar a decisão amparada pelos demais princípios do ordenamento, em virtude da complementaridade que os caracteriza.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
BRASIL. Decreto-lei n.º 4.657, de 4 de setembro de 1942. Lei de Introdução ao Código Civil.
BRASIL. STF - Segunda Turma. HC 77.150/SP, in DJ 06.11.1998 p. 04. Relator: Ministro Marco Aurélio de Mello. Data do julgamento: 01.09.1998.
BUSTAMANTE, Thomas da Rosa. Sobre a justificação e a aplicação de normas jurídicas: Análise das críticas de Klaus Günther e Jürgen Habermas à teoria dos princípios de Robert Alexy. in Revista de Informação Legislativa - Ano 43 nº 171 (julho a setembro de 2006).
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HART, Herbert. O Conceito de Direito. Lisboa: Calouste Gulbekian, 2002.
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Notas
- BRASIL. Decreto-lei n.º 4.657, de 4 de setembro de 1942. Lei de Introdução ao Código Civil.
- BRASIL. STF - Segunda Turma. HC 77.150/SP, in DJ 06.11.1998 p. 04. Relator: Ministro Marco Aurélio de Mello. Julgado em 01.09.1998.
- BARCELOS, Ana Paula de; BARROSO, Luís Roberto. O Começo da História. A Nova Interpretação Constitucional e o Papel dos Princípios no Direito Brasileiro. Disponível em http://www.camara.rj.gov.br/setores/proc/revistaproc/revproc2003/arti_histdirbras.pdf.
- BARCELOS, Ana Paula de; BARROSO, Luís Roberto. Op. cit., p. 21.