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Reparação de danos em face do Estado.

Prazo prescricional e integridade do Direito

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5. Proposta para solução do caso sob a perspectiva da ideia de integridade do Direito

A questão que resulta da análise até aqui intentada é saber qual seria a justificação mais adequada (correta) para a solução do caso (aplicabilidade da regra de prescrição trienal para o Estado nos casos de pretensões de reparação de danos). Para tentar responder esta questão é necessário adotar um marco teórico que seja suficiente para conferir o instrumental teórico condizente com a questão. E no caso parece ser adequada a aplicação da tese Ronald Dworkin sobre a integridade do direito. Vale destacar, ainda, que a posição aqui tomada é feita com base na assunção de um compromisso com a tese agora exposta, o que por fim refuta a possibilidade de qualquer simbiose com outras teorias positivistas ou não-positivistas sobre o tema, fugindo do que Canotilho denomina como metodologia fuzzy ou fuzzysmo jurídico [21] ou o que Lenio Streck vem trabalhando como mixagem teórica [22], onde o cientista jurídico busca dar respostas a problemas utilizando-se de variantes teóricas diversas, por vezes inclusive contraditórias, sem se preocupar com a compatibilidade e adequação destas teorias e conceitos e a situação objeto de análise.

Ao tratar sobre a categoria da integridade do direito Ronald Dworkin faz a distinção entre a integridade legislativa e na aplicação do direito, dizendo que

Temos dois princípios de integridade política: um princípio legislativo, que pedem aos legisladores que tentem tornar o conjunto de leis moralmente coerente, e um princípio jurisdicional, que demanda que a lei, tanto quanto possível, seja vista como coerente neste sentido. [23]

Com isto é posta uma obrigação ao julgador. Ao tomar uma decisão deverá ele ter como referência a integridade do direito, ou seja, a impossibilidade de que seja estabelecida uma decisão que viole a coerência e a racionalidade do conjunto do direito com base em princípios que servem de parâmetro justamente para esta coerência. Deste modo a deliberação judicial respeitando a integridade

(...) requer que, até onde seja possível, nossos juízes tratem nosso atual sistema de normas públicas como se este expressasse e respeitasse um conjunto coerente de princípios e, com esse fim, que interpretem essas normas de modo a descobrir normas implícitas entre e sob as normas explícitas. Para nós, a integridade é uma virtude ao lado da justiça, da equidade e do devido processo legal (...). [24]

Ao esclarecer que a ideia de integridade se relaciona com a coerência do próprio direito Dworkin questiona e responde

Será a integridade apenas coerência (decidir casos semelhantes da mesma maneira) sob um nome mais grandioso? (...) A integridade exige que as normas públicas da comunidade sejam criadas e vistas, na medida do possível, de modo a expressar um sistema único e coerente de justiça e equidade na correta proporção. Uma instituição que aceite este ideal às vezes irá, por esta razão, afastar-se da estreita linha das decisões anteriores, em busca da fidelidade aos princípios concebidos como mais fundamentais a esse sistema como um todo. [25]

Desta forma impõe-se de modo necessário que seja levada em consideração a integridade, assim como que a decisão seja orientada por esta integridade em vista do princípio que regula e fornece o sentido desta coerência do sistema, pois "A integridade é uma norma mais radical do que parece no início, pois incentiva um juiz a ser mais abrangente e imaginativo em sua busca de coerência com o princípio fundamental." [26]

Deve ser destacado que a noção de princípio que gravita na teoria de Dworkin está vinculada a uma diferenciação com a noção de política, uma vez que o princípio não é destinado a ofertar um padrão a ser alcançado, mas sim uma orientação de conduta a partir da moralidade. Neste sentido esclarece

Denomino "princípio" um padrão que deve ser observado, não porque vá promover ou assegurar uma situação econômica, política ou social considerada desejável, mas porque é uma exigência de justiça e equidade ou alguma outra dimensão da moralidade. [27]

A proposta de Dworkin faz com que a tomada de decisões corretas tenha que passar pela importância do papel da justificação com fundamento na proteção do bem-estar coletivo, e que este enfoque interpretativo do direito é um dos elementos mais importantes em seu desafio contra o positivismo [28].

Albert Casalmiglia sustenta que para Dworkin uma sociedade democrática tem que levar em consideração, além da equidade, justiça e legalidade, a virtude da integridade, a qual "supone no solo la existência de unos princípios, sino también su organización coherente. Dworkin sugiere tratar a la comunidad como si fuera una persona moral" [29]

Deste modo a comunidade, assim como uma pessoa moral, possui princípios que devem pautar suas ações/decisões, princípios estes que guardam uma relação de coerência com toda a tradição do direito e que servem como fundamento da justificação das decisões tomadas. Explicando a ideia de integridade Albert Casalmiglia sintetiza o pensamento dworkiano dizendo que

Un estado es una comunidad de principio y el conjunto de principios del pasado determina el presente, pero no absolutamente sino solo relativamente. El derecho como integridad es un enfoque que exige justificar mediante razones el abandono de principios anteriores. La integridad no tolera la irracionalidad. Las normas que componen un ordenamiento jurídico están sostenidas em un conjunto de principio justificadores. El elemento fundamental del derecho no es la norma sino el principio justificador. La fidelidad a la ley es una fidelidad al conjunto de principios que identifican la comunidad. Ahí reside su gran diferencia con el positivismo. Obsérvese que las cuestiones jurídicas son cuestiones de justificación de decisiones. Ese es su punto de vista. [30]

No caso aqui examinado a fundamentação do tratamento diferenciado quanto aos prazos prescricionais em favor do Estado – com o estabelecimento de prazos mais exíguos – vem escudada no princípio de proteção do bem comum (representado pelo erário). Na verdade a existência ficcional da pessoa do Estado tem como um de seus objetivos fundantes a administração e distribuição do conjunto de bens que pertencem a todos. Disto resulta a conclusão de que a proteção do Estado é a própria proteção da sociedade como um todo, fazendo prevalecer os seus interesses em face de situações individuais ou coletivas que não representem a comunidade.

Além disto, o estabelecimento desta diferenciação nos prazos de prescrição extintiva – coadunados com o princípio de proteção do bem comum – guarda raízes na própria tradição do direito que sempre contou com normas estabelecendo prazos menores para a prescrição em face do Estado.

Por isto é que se fazem ressalvas a utilização simplista de interpretações que sugerem ser possível decidir pela aplicação da regra que estabelece a prescrição em três anos para as reparações de danos apenas por meio de uma manipulação interpretativa dada pela discricionariedade do intérprete e que não leva em consideração a necessidade da justificação da tomada desta decisão com base em princípios existentes no direito, desconsiderando a integridade deste mesmo direito.

Logo, ao contrário de adotar a justificativa (de correção duvidosa) de que a regra do art. 205, § 3º, V, do CC/2002 aplica-se em razão da abertura do art. 10 do Decreto n º 20.910/32, a qual permitiria a existência de prazos menores em favor do Estado – já que no caso há regra específica posterior que lhe retiraria condição de aplicabilidade aos casos de reparações de danos (art. 1º-C da Lei n º 9.494/97) – é que o fundamento da utilização do prazo trienal se dará tendo como razão a existência do princípio de proteção aos bens públicos (da comunidade) e de integridade/coerência do direito.


6. Considerações finais

Do que foi explanado fica assente duas conclusões preliminares, ambas relacionadas à insuficiência da análise proporcionada pelo positivismo e seu modo de compreender determinados casos.

A primeira é que os métodos de solução das antinomias são de todo insuficientes – como reconhece a própria dogmática positivista –, já que representam meros esquemas lógico-formais que não dão conta de responder às variadas questões da faticidade.

A segunda relaciona-se com a insuficiência da noção kelseniana de que a solução destes casos que fogem dos padrões da norma geral inclusiva (o que não está proibido está permitido), ou da mera atividade de subsunção, fica relegada a discricionariedade do intérprete. Esta saída em que aposta o dogmatismo positivista propicia que o direito fique refém de soluções subjetivas e arbitrárias, onde prepondera muito mais o argumento de autoridade do que a o argumento de racionalidade material.

Além disto, a discricionariedade possibilita também que sejam alargados os limites democráticos oferecidos pela justificação com base no direito, já que o arbítrio da solução implica em deixar o intérprete liberado de uma justificação fundada na racionalidade do próprio Direito, o que sempre conduz a decisões sem a necessária legitimação democrática.

A partir destas considerações de que não pode a decisão sobre a interpretação/aplicação do direito ficar sujeitada a esquemas lógico-formais prévios (métodos de solução das antinomias), que o próprio positivismo reconhece como insuficientes, ou a pragmatismos neorealistas, força concluir que seja respeitada a integridade do direito a fim de que hajam aplicações no mínimo coerentes/racionais deste mesmo direito, onde a decisão não seja mero fruto de uma escolha, mas que esteja comprometida com algo que lhe seja antecedente, o que na decisão jurídica significa respeitar a integridade da compreensão daquilo que a comunidade política construiu como direito [31].

Lenio Streck bem sustenta que

(...) a decisão jurídica não se apresenta como um processo de escolha do julgador nas diversas possibilidades de solução da demanda. Ela se dá como um processo em que o julgador deve estruturar sua interpretação – como a melhor, a mais adequada – de acordo com o sentido do direito projetado pela comunidade jurídica. [32]

E este respeito à integridade do direito, que possibilita uma resposta mais adequada para determinado caso, vem escudado na impossibilidade de se ofertar soluções fragmentadas (sustentadas nas teses realistas e pragmáticas) Também decorre de princípios que a própria comunidade estabeleceu como pré-condições para o próprio direito (unidade do direito, harmonização ou concordância prática entre as normas, etc.), além da necessidade de que se respeite ainda o direito fundamental de se obter uma fundamentação/justificação adequada para as decisões (art. 93, X, CF/88) [33].

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No caso a fundamentação adequada e que preserva a integridade do direito direciona para a solução de ser aplicada a regra que prevê o prazo prescricional trienal para as pretensões de reparação de danos em face do Estado.

Remeter a decisão para o campo discricionário da solução das antinomias de segundo grau ou mesmo para interpretações extensivas/ampliativas do Decreto nº 20.910/32 significaria aceitar – além dos subjetivismos – a fragmentação das decisões pragmatistas, o que viola a própria ideia de integridade e racionalidade do direito.

Observa-se, ainda, que a preservação da integridade do direito na aplicação da prescrição trienal decorre da pré-compreensão estabelecida pela tradição da comunidade política-jurídica de que os prazos fixados nas relações em que a coletividade (representada pelo erário) está no polo passivo da relação material serão sempre menores do que aqueles estabelecidos para as relações exclusivamente interpessoais de matiz privada. [34]

Assim, a coerência do direito exige a conclusão de que não sejam aplicados prazos menores para a prescrição quando estiver em jogo um conflito de pretensões de cunho privado (individual ou coletivo) e maiores quando o Estado estiver como obrigado a reparar os danos, já que tal solução ofende a racionalidade do direito, a qual preserva para os casos de pretensões deduzidas em face dos bens da coletividade um prazo prescricional inferior como decorrência de um princípio. Só assim será mantida a integridade do direito.


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Sobre o autor
Carlo Fabrizio Campanile Braga

Procurador do Estado. Mestre em Direito. Especialista em Direito Público. Professor Univestário

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BRAGA, Carlo Fabrizio Campanile. Reparação de danos em face do Estado.: Prazo prescricional e integridade do Direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2540, 15 jun. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/15045. Acesso em: 28 mar. 2024.

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