4. Exceções à aplicação do princípio da restituição integral em matéria de concessões: o contrato e a lei
Conforme ressaltado anteriormente, a regra geral em matéria de concessões é a de que a encampação implicará a recomposição patrimonial completa do concessionário, mediante indenização dos danos efetivos e futuros.
No entanto, convém advertir que o princípio da restitutio in ntegrum não é de modo algum absoluto; principalmente no regime jurídico da Lei Geral de Concessões, onde, ao revés, esse postulado se mostra bastante flexível, podendo ser amplamente moldado pela autonomia da vontade das partes contratantes, de acordo com o disposto no art. 23, inciso XI [22].
Dentro desse largo espaço de atuação deixado pela lei de regência, mostra-se perfeitamente possível (e até desejável) que os contratantes engendrem variados mecanismos de "compartilhamento de riscos [23]", a fim a melhor atender às especificidades do serviço público objeto do contrato de concessão.
Nessa ordem de ideias, tem-se que, a priori, concedente e concessionário podem válida e eficazmente estabelecer cláusulas contratuais [24] que limitem mais ou menos o valor das indenizações pertinentes à encampação.
Além disso, existem leis setoriais específicas que, em tema de concessão, impõem limitações à reparação civil do concessionário em caso de encampação. É o caso, por exemplo, da Lei nº 9.427/96, que disciplina o regime das concessões de serviços públicos de energia elétrica, cujo art. 19 admite a indenização do concessionário pelos danos efetivos que emergem da extinção do contrato, excluindo expressamente a reparação a título de lucros cessantes [25].
Indo mais além, a Lei nº 9.478/97, que trata das atividades petrolíferas, afasta textualmente, no seu art. 28, § 1º [26], "qualquer direito" de indenização do concessionário em caso de extinção da concessão (aí abrangida a encampação), inclusive quanto aos bens reversíveis, "os quais passarão à propriedade da União e à Administração da ANP".
Assim sendo, podemos concluir este tópico estabelecendo a seguinte premissa: salvo as exceções expressas constantes da lei e do contrato, a regra geral em matéria de concessões é a de que a encampação implicará a recomposição patrimonial completa do concessionário, mediante indenização dos danos emergentes e lucros cessantes.
4.1. As cláusulas limitativas da obrigação de indenizar da Administração Pública em caso de encampação da concessão: posição, função e condições de validade e eficácia
Muito comuns nos contratos civis em geral, as cláusulas limitativas da obrigação de indenizar são, segundo definição de José de Aguiar Dias [27], "estipulações pelas quais se determina antecipadamente a soma que o devedor pagará a título de perdas e danos, no caso de ser declarado responsável".
Como é de fácil percepção, a cláusula limitativa se assemelha [28] à clássica cláusula penal compensatória, havendo alguns elementos essenciais comuns a ambas. O principal aspecto que aproxima esses dispositivos um do outro é a identidade de fim, servindo eles como um mecanismo de pré-estipulação de danos, em que os prejuízos efetivos e futuros causados à vítima do fato danoso não são levados em conta.
Porém, como bem observado por José de Aguiar Dias [29], "a cláusula limitativa muitas vezes resulta em burla para o credor. Dificilmente se dá o caso de ser o dano real ao equivalente à reparação prefixada: o mais freqüente é representar esta última um simulacro de perdas e danos".
Essa circunstância, no entanto, conforme assevera o referido autor, não retira a utilidade do dispositivo contratual de limitação, que reside justamente no "afastamento da incerteza sobre o quantum da reparação (...)", "evitando a sobrecarga das indenizações amplas [30]".
O credor, portanto, ao ajustar a cláusula, conscientemente não intenta o ressarcimento integral dos danos. Prefere predefinir desde logo um valor, ainda que menor, para amenizar os prejuízos oriundos do fato imputável. É uma forma conveniente e segura de se preestimar o dano, evitando a perda de tempo e dinheiro com um longo e custoso processo de comprovação da real extensão do prejuízo.
Em tema de encampação da concessão, essas as cláusulas limitativas assumem especial relevo, uma vez que proporcionam racionalidade econômica e segurança jurídica aos participantes do vínculo concessivo. Vejamos.
Em primeiro lugar, porque a interrupção prematura da exploração do serviço público, sendo ele um setor intensivo em capital, normalmente resulta em vultosas indenizações, cujo pagamento impacta severamente os cofres públicos e, por consequência e em última análise, o bolso já combalido dos contribuintes e usuários.
No entanto, a prefixação em contrato de uma fórmula ou quantia compensatória revela-se bem menos nociva à saúde financeira do erário, assegurando, com boa dose economicidade, a solvabilidade do Poder Público perante o concessionário.
Além disso, aquilatar a real extensão e quantificação da integralidade dos danos oriundos da extinção antecipada de uma concessão pode se consubstanciar em tarefa hercúlea, quiçá impossível de ser executada com total precisão. Tantas e variadas podem ser as incertezas quanto à natureza e abrangência dos prejuízos decorrentes da encampação, que naturalmente a apuração desses danos dará azo a um longo e complexo contencioso administrativo, situação que o espírito prático do empreendedor e a exigência de transparência e agilidade imposta à Administração consideram extremamente negativa.
Esse quadro, contudo, pode ser evitado ou ao menos bastante atenuado, mediante prévia estipulação contratual de um valor ou fórmula indenizatória objetiva.
Relativamente às condições de validade e eficácia, as cláusulas limitativas seguem o regime geral dos negócios jurídicos (Código Civil, art. 104 e seguintes) e o disciplinamento previsto em leis específicas.
No entanto, alguns pontos a respeito desse assunto merecem especial destaque. Vamos estudá-los abaixo.
4.1.1. Cláusula limitativa e dano moral
A questão que se coloca é se na extinção antecipada da concessão por interesse público, a compensação contratualmente predeterminada para certos tipos prejuízos teria o condão de suprimir eventual direito do concessionário à reparação por dano moral decorrente do exercício abusivo do direito de resgate por parte do poder concedente.
Entendemos que não. A encampação da concessão realizada com grave malferimento das garantias do devido processo legal e ao arrepio dos direitos de crédito do concessionário (mora), em sendo circunstâncias aptas a gerar violação à sua imagem perante o meio empresarial em que atua, não pode ser total ou parcialmente afetada pela indenização prefixada em cláusula contratual para determinados prejuízos.
Qualquer interpretação em sentido oposto seria inadmissível num Estado de Direito, o qual deve ser o principal defensor da ordem pública, respeitando os direitos e garantias fundamentais dos cidadãos. Logo, não pode o ente estatal, sobretudo ele, se exonerar das consequências danosas oriundas da gravíssima violação que representa a inobservância de princípios básicos inscritos na ordem constitucional e legal.
Daí porque a obrigação do poder concedente em responder pelos danos morais causados ao particular é de rigor na encampação, valendo destacar, nesse passo, a função punitivo-pedagógica inerente à indenização extrapatrimonial, que deve ser arbitrada em patamar alto, de modo a punir exemplarmente o ente estatal infrator e assim inibir-lhe a prática de novas condutas prejudiciais da mesma espécie.
Portanto, as limitações de prejuízos específicos inseridas em dispositivo contratual não representam empecilho à eventual reparação de dano moral ao concessionário, mesmo que haja sido expressamente prevista cláusula exonerativa nesse sentido, a qual seria absolutamente nula por infringência à ordem pública e pela ilicitude de seu objeto.
4.1.2. Necessidade de estipulação de reparação em valores razoáveis e proporcionais
Com efeito, para que o dispositivo limitativo da obrigação de indenizar possa ser eficazmente aplicado, a soma nela estipulada não pode resultar em verdadeira lesão ao concessionário.
Como escrevem Carlos Ari Sundfeld e Jacintho Arruda Câmara [31], a cláusula que preveja indenização nos casos de encampação deve corresponder a um valor "justo", "necessário e suficiente (...) para compensar o risco de o concessionário ter o contrato extinto antes do prazo por motivo de interesse público".
Portanto, para apreciar corretamente o quantum fixado na cláusula, é preciso rejeitar a irrisão, a fim de que não haja locupletamento do Poder Público em detrimento do particular.
Mas isso não autoriza, por óbvio, exigir-se estrita equivalência entre o valor prefixado à guisa de compensação e os danos reais sofridos pelo concessionário. Conforme dissemos linhas atrás, o que as partes intentam ao estabelecer a cláusula limitativa não é a reparação integral dos danos, mas sim uma compensação capaz de atenuar os riscos derivados da encampação da concessão, o que se faz por meio do arbitramento de uma indenização que guarde uma proporção minimamente razoável com o vulto dos prejuízos sofridos pelo empreendedor privado.
Assim, seria totalmente fora de propósito formular conceitos de razoabilidade e proporcionalidade nos quais a cláusula limitativa só teria eficácia caso o dano fosse inferior à limitação indenizatória convencionada, afastando-a automaticamente quando os prejuízos se mostrassem maiores [32]. Tal entendimento anularia a mais importante função da disposição, que é justamente a de evitar discussões acerca das incertezas e dificuldades ínsitas à cabal comprovação da extensão e quantificação dos prejuízos, evitando ainda a sobrecarga das indenizações amplas do Direito Comum.
Qual seria, no entanto, em termos objetivos, o padrão minimamente aceitável de razoabilidade e proporcionalidade das cláusulas limitativas em tema de encampação de concessões em geral?
Acreditamos que a resposta para essa pergunta passa necessariamente pela análise de três espécies de indenização.
A primeira delas refere-se à reparação pelos bens reversíveis não amortizados ou depreciados. Conforme se extrai da norma imperativa do art. 36 da lei básica de concessões, essa indenização representa uma garantia patrimonial mínima do concessionário, de maneira que não pode ser afastada pela autonomia da vontade das partes contratantes, mas somente por meio de lei [33].
A segunda é relativa à indenização pelos bens não reversíveis, assim considerados aqueles que, por sua própria natureza, não serão passíveis de se incorporar aos serviços delegados e nem poderão ser aplicados pelo concessionário em diferentes finalidades empresariais.
A terceira, por fim, englobaria a classe dos danos futuros, aí incluídos os custos de desmobilização e os lucros cessantes.
Essas duas últimas categorias de indenizações - correspondentes aos bens não reversíveis e aos danos futuros - podem ser limitadas total ou parcialmente mediante convenção das partes [34], mas desde que supressão ou limitação conste expressamente do contrato. Ou seja, não basta que o ajuste, repetindo inutilmente os termos do art. 37 da Lei nº 8.987/95, somente predisponha que para o caso de encampação da concessão será devida ao particular "indenização referente às parcelas de investimentos vinculados a bens reversíveis não amortizados ou depreciados". Em atenção aos postulados da transparência e lealdade contratuais - corolários lógicos do princípio maior da boa-fé objetiva [35] (Código Civil, arts. 113 e 422) -, é preciso que exista disposição expressa em que resulte inequívoca a intenção dos contratantes de excluir ou limitar as demais verbas indenizáveis na hipótese de extinção antecipada. A ausência de convenção textual nesse sentido, salvo prova em sentido contrário, tem de ser interpretada como simples omissão contratual, devendo o poder concedente indenizar amplamente o concessionário, o que inclui não só a reparação dos bens reversíveis já prevista na lei e no contrato, mas também indenizações relativas aos bens não reversíveis, custos de desmobilização e lucros cessantes, conforme apurado em procedimento administrativo.
Pois bem. Se é certo que a plena eficácia do dispositivo limitativo depende da ausência de lesão substancial ao concessionário, não menos verdadeiro é que a cláusula de responsabilidade não pode redundar em valores excessivos, enriquecendo indevidamente o particular em detrimento do Poder Público.
O limite máximo - diríamos até lógico – é o de que a soma indenizatória ajustada não pode ultrapassar o valor da "obrigação principal", qual seja, a quantia real e efetiva dos prejuízos oriundos do resgate concessório [36].
Dentro desse espaço de variação de valores, avulta a necessidade de se realizar o controle [37]in concreto da razoabilidade e proporcionalidade das cláusulas limitativas, a exigir a recondução de montantes manifestamente exagerados para patamares compatíveis com a natureza e a finalidade do negócio específico.
Daí porque a cláusula compensatória não é e nem poderia se pretender imutável e inarredável, sobretudo quando a exageração se mostrar presente. O valor da convenção, assim, pode e deve ser revisto para menos (pela própria Administração Pública ou pelo Poder Judiciário), limitando assim a eficácia da cláusula compensatória.
4.1.3. Cláusula limitativa e forma de pagamento da indenização
No sistema da legislação básica concessões, não há espaço para que as partes convencionem a respeito do modo de pagamento da indenização devida para o caso de resgate: a reparação deve ser obrigatoriamente recebida pelo concessionário previamente à retomada do serviço, de uma só vez e em dinheiro [38].
Existem relevantes razões de ordem pública para que assim seja. Com efeito, a lei geral de concessões, visando atrair os altos investimentos privados necessários à exploração dos serviços públicos, quis garantir ao concessionário o direito de receber previamente o valor integral da indenização devida para o caso de encampação da concessão (art. 37), provendo assim indispensável segurança jurídica ao empreendimento.
Além disso, segundo anotam Carlos Ari Sundfeld e Jacintho Arruda Câmara [39], a exigência de prévio pagamento integral representa um "instrumento de busca do equilíbrio fiscal", inviabilizando a abertura de passivo diferido contra o Poder Público.
E mais. Diríamos nós que a indenização prévia e integral constitui mesmo medida de sobrevivência do concessionário. Isso porque se o desalijo da atividade ocorresse antes do pagamento da indenização, as perdas de receita daí decorrentes certamente causariam ao delegatário enorme colapso financeiro, levando-o em instantes à bancarrota, prejuízo que também se estenderia a todos aqueles gravitam em torno da unidade produtiva, tais como empregados, fornecedores, fisco, etc.
Impositivo, portanto, que o resgate efetivo da concessão pelo concedente só seja realizado após o pagamento integral da reparação pecuniária devida à pessoa privada, já que são esses os interesses públicos perseguidos pela lei. Por isso, não é lícito ao poder concedente, invocando pretenso interesse público, alterar por qualquer meio a forma de pagamento prevista cogentemente pela lei de regência, sendo-lhe vedado diferir o adimplemento da reparação no tempo ou oferecer prestação em títulos ou bens móveis ou imóveis.
Ou seja: nos termos do art. 37, da Lei nº 8.987/95, é terminantemente vedada a estipulação de dispositivo compensatório que preveja qualquer tipo de parcelamento do valor da indenização ou contraprestação que não seja em dinheiro.
A cláusula contratual que assim disponha deverá ser declarada nula por fraudar lei imperativa (Código Civil, art. 166, VI).