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Justiça, jurisdição e argumentação.

Breve ensaio sobre a extensão do dever de fundamentação das decisões judiciais

19/06/2010 às 00:00
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1 - O PROBLEMA

O processo jurisdicional se instaura com um objetivo específico: compor controvérsias que surgem entre indivíduos ou grupos, aplicando o direito posto aos fatos deduzidos em juízo pelas partes, reafirmando a força normativa do ordenamento jurídico em nome da justiça e da paz social.

O Juiz, agente eqüidistante que conduz o processo perante os sujeitos da controvérsia e presta-lhes a jurisdição, dever inarredável do Estado, desempenha o seu múnus nos termos dos princípios e regras constitucionais e infraconstitucionais do processo. Ou seja, a tutela que o Poder Judiciário presta ao cidadão se dá segundo diretrizes que fazem da jurisdição uma função que - como de resto também ocorre quanto às demais funções públicas – é exercida estritamente nos quadrantes das normas jurídicas, as quais, dentre outros bens, resguardam aos cidadãos elementos e contornos mínimos que a prestação jurisdicional deve, respectivamente, conter e ostentar. As decisões judiciais, por exemplo, devem ser sempre fundamentadas e, em regra, públicas. O Poder Judiciário não pode negar ao cidadão a prestação da tutela jurisdicional. O acesso à Justiça pelos membros da sociedade desprovidos de recursos deve ser viabilizado pela assistência judiciária. Estes são apenas alguns exemplos. O rol de direitos que o cidadão ostenta perante o Estado-Juiz, principalmente o que consta da Constituição, é, como se pode de plano notar, extenso, e tem por fundamento último o exercício democrático do Poder Judicial, que emana do povo, e em seu nome é exercido.

A tutela judicial prestada – especificamente, no que aqui interessa, a sentença ou o acórdão – deve, neste contexto, satisfazer a certos requisitos jurídicos de validade. A lide é trazida ao Juiz pelas partes mediante argumentos de fato, propondo a ela uma solução de Direito. O magistrado, ao decidir a lide, deve certamente solucioná-la; que a finalidade da jurisdição é esta ninguém discute. Mas, ao resolver o conflito trazido a Juízo, é o membro do Poder Judiciário obrigado a compor a pendenga apenas se valendo de algumas das propostas de solução jurídica da matéria oferecida pelas partes? Certamente que não. O Juiz pode solucionar o conflito de interesses segundo regras do direito posto diversas daquelas mencionadas na petição inicial e na peça de defesa (da mihi factum dabo tibi ius). Mas, será que neste iter de aplicação do Direito o Juiz está adstrito a analisar todos os argumentos jurídicos das partes, ainda que ao final conclua que deve impingir à espécie normas diversas daquelas suscitadas por autor e réu? A resposta dada a esta última questão pelo Superior Tribunal de Justiça é negativa:

"PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. VIOLAÇÃO AO ART. 464, II, DO CPC. INOCORRÊNCIA. APELAÇÃO. DECISÃO POR MAIORIA. RECURSO ESPECIAL.

I - Os embargos de declaração possuem finalidade determinada pelo artigo 535, do CPC, e, exepcionalmente, podem conferir efeito modificativo ao julgado. Admite-se também embargos para o fim de prequestionamento (Súmula 98-STJ). Exigir que o Tribunal a quo se pronuncie sobre todos os argumentos levantados pela parte implicaria rediscussão da matéria julgada, o que não se coaduna com o fim dos embargos. Assim, não há que se falar em omissão quanto ao decisum vergastado, uma vez que, ainda que de forma sucinta, fundamentou e decidiu as questões. O Poder Judiciário, para expressar sua convicção, não precisa se pronunciar sobre todos os argumentos suscitados pelas partes.

(...)

Recurso especial não conhecido." (Resp 385.173, Rel. Min. Felix Fischer, DJ 29⁄04⁄2002 - grifei)

"Quanto à apreciação de violação de princípio constitucional, cumpre asseverar que é cediço, neste Tribunal, que o juiz não fica obrigado a manifestar-se sobre todas as alegações das partes, nem a ater-se aos fundamentos indicados por elas ou a responder, um a um, a todos os seus argumentos, quando já encontrou motivo suficiente para fundamentar a decisão, o que de fato ocorreu.(EDcl no AgRg no agravo de instrumento nº 980.079 – SP, Rel. Min. Humberto Martins, DJ 27.05.2008 - grifei)

Decisões semelhantes às acima transcritas são, hoje, proferidas por todos os Tribunais do país. O que se propõe aqui a analisar é se a posição acolhida em tais julgados se encontra sintonizada com a noção de Justiça, fim último do Direito, e, destacadamente, do processo judicial.

Em outros termos, seria a ausência do dever de o Poder Judiciário analisar cada um dos argumentos jurídicos trazidos pelas partes, ao resolver uma lide, compatível com as teorias contemporâneas da Justiça, baseadas, sobretudo, na argumentação? A decisão judicial que se nega a responder a todas as teses de Direito deduzidas em juízo pelos cidadãos pode legitimamente aspirar a ser justa? É esta a questão que se propõe aqui a responder.


2 – EXCURSO SOBRE A JUSTIÇA, A ARGUMENTAÇÃO E A JURISDIÇÃO: A CONSTRUÇÃO DA SITUAÇÃO DE APLICAÇÃO DO DIREITO E A DECISÃO ADEQUADA SOB A ÓTICA DA TEORIA PROCEDIMENTAL DA JUSTIÇA.

Há indivíduos, há linguagem, há comunicação entre seres que concebem - conquanto haja muito em comum - particulares mundos distintos, jamais idênticos em sua plenitude. Pode-se apenas concluir, neste contexto, que o número de concepções de justiça existente espelha diretamente a complexidade social. Mas há comunidade, há sociabilidade – porquanto, como se disse, há comunicação: em suma, não há, certamente, sobrevivência inteiramente solitária, extra-social. E, ainda que houvesse, a tal indivíduo não interessaria a temática da justiça e do bem.

Neste contexto marcado pelo pluralismo de visões de mundo e, principalmente, de superação inequívoca do esquema que via sujeito e objeto como dados marcadamente separados no processo de conhecimento, não mais se pode falar em conceitos ontológico-substanciais de justiça, ou do que seja o bem:

"O que seja a justiça não é algo que se possa dizer – e menos ainda do que o conceito de direito – numa exacta e conclusiva definição" (KUFMANN, 2004: 225)

Inconsistentes, portanto, hoje, seriam quaisquer investigações jurídico-filosóficas em torno do justo em si, do bem em si, do fundamento material último do direito, a ser conhecido mediante o esforço isolado do indivíduo perante a substância que os caracterizaria, e que poderia ser absorvida em seu conteúdo totalizante pelo sujeito cognoscente.

O justo jamais será atingido segundo um esquema cognitivo tal, que separa radicalmente sujeito e objeto. Mas não se quer aqui enaltecer o subjetivismo extremado, segundo o qual o sujeito do conhecimento processa as informações que apreende de forma desvinculada de qualquer dado externo. O conhecimento se processa por intermédio da linguagem, condicionado por horizontes de pré-compreensão que marcam o sujeito inserido em tradições, sendo o objeto de apreensão reconstruído discursivamente pelo intérprete do mundo com vistas, inevitavelmente, à sua inserção numa comunidade real; mas se refere, debruça-se, sobre a objetividade, e sobre ela deita discursos que veiculam pretensões de validade (científicas, normativas, etc.).

Na verdade, o que se defende é que a demonstração da validade jurídica – da Justiça, no que aqui interessa – dá-se discursivamente, de forma processual, mas sempre referida a conteúdos, ainda que estes se afigurem contingentes. Posto que a Justiça não possa ser atingida num esforço isolado de abstração filosófica a priori, não é correto afirmar, em posição radicalmente oposta, que haja o bem na pura forma, como um resultado validado única e tão-somente pelo procedimento discursivo em si (avaliado apenas formalmente, sem consideração das condições concretas de argumentação). Como já afirmado, há indivíduos, há linguagem, há comunicação, há sociedade, e é nestas relações, sempre materiais, pragmáticas, que o Direito se insere, e onde deve medrar a Justiça:

"As relações pessoais do homem são o que identifica o discurso jurídico enquanto tal, pois no fundo o direito legitima-se sempre pelo facto de garantir a cada um o que lhe compete como pessoa: o suum iustum (sobretudo através da garantia dos direitos humanos e fundamentais. Por isso disse Hegel que é este o mandamento do direito: "Sê uma pessoa e respeita os outros como pessoas.

(...)

O desenvolvimento concreto desta teoria da justiça processual fundada na pessoa não pode ser tarefa apenas da filosofia do direito: ele incumbe a todos aqueles a quem está confiado o direito. Para isso exige-se o discurso, não porém apenas na forma de um fictício modelo de pensamento (''situação originária'', ''situação ideal de diálogo''), mas sobretudo na forma de comunidades de argumentação efectivamente existentes (no trajecto da história), em que seja trocadas experiências e convicções reais sobre ''coisas reais''. Esse discurso tem de ter um fundamento empírico." (KAUFMANN, 2004: 433-434)

A centralidade do homem, como sujeito e objeto dos discursos normativos, é inequívoca, e invoca a realização de um bem empírico, fundado na realidade, e construído a partir de determinados pontos assumidos através de conclusões filosóficas recentes: a existência de discurso, ou seja, de um processo racional e intersubjetivo de argumentação e fundamentação acerca da correção/incorreção/verdade/falsidade de determinadas conclusões, erigido a partir de determinadas condições pragmáticas; uma sociedade aberta de argumentação, onde a todos (pluralismo) é lícito, nas situações que lhes interessam, argumentar da forma que melhor lhes aprouverem; e a existência de conteúdos históricos acerca do bem e do justo, determinados sempre também a partir de uma perspectiva hermenêutica dos participantes do discurso.

Interessa aqui não sintetizar as incomensuráveis concepções existentes na sociedade acerca do que seria o conteúdo material da justiça (isso não só seria impossível, como absolutamente incompatível com a complexidade do mundo contemporâneo), mas sim apontar regras procedimentais, materialmente fundadas, que permitam que o melhor dos "bens" que se opõem em uma situação concreta venha à tona, conforme nos exorta o pensamento de Arthur KAUFMANN:

"Pensou-se durante muito tempo, e muitos pensam ainda, que se podia tratar e responder a estas duas questões, a relativa ao que é o conteúdo da justiça e a relativa ao modo como se conhece a justiça, de forma totalmente separada. A justiça apresentava-se como uma realidade substancial exterior, como um "objecto" que se contraporia ao nosso pensamento e que deveria ser recebido na sua pura objectividade pelo "sujeito". No conhecimento não interviria, segundo se julgava, nada do sujeito cognoscente. De acordo com tal idéia, ainda hoje se ensinam e escrevem "filosofias do direito", por uma lado, e "metodologias", por outro, praticamente sem qualquer interligação.

Mas o esquema cognitivo sujeito/objecto pertence ao passado, mesmo nas ciências explicativas da natureza, e mais ainda nas ciências hermenêuticas da compreensão. Por isso, nos últimos tempos têm-se desenvolvido cada vez mais as teorias processuais da justiça, que concebem a justiça, e portanto também o "direito justo", como produto do processo de determinação do direito – pergunta-se "apenas" se exclusivamente como produto de um tal processo ou se [pelo contrário] este processo terá um fundamento material ("ontológico", o que não significa necessariamente: "ontológico-substancial")." (2004: 225)

"Como já se assinalou, um discurso real fundado na experiência da vida prática nunca pode proporcionar fundamentos últimos. Apenas pode oferecer recomendações. É ao próprio indivíduo – ou a vários indivíduos, ao legislador – que incumbe decidir; e ele não pode esperar por uma ''fundamentação última’. A ética do discurso mostra-se incapaz de fazer justiça à experiência da historicidade e contextualidade de todos os juízos normativos, uma experiência que conduz forçosamente à conclusão de que a filosofia não pode fornecer nenhuma fundamentação universalmente vinculativa para uma teoria da justiça. A idéia de Direito deve ser procurada aqui em baixo no nosso mundo; com uma ''transcendental-pragmática fundamentação última’ jamais a ela acederemos." (2004: 418-419)

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A existência das concepções procedimentais da Justiça, segundo o próprio KAUFMANN (2004), remonta a KANT, que foi quem deu o primeiro passo no sentido da obtenção do justo não em si, mas a partir do ‘como’, da forma (imperativo categórico):

"E Gunther Ellscheid deu o passo decisivo ao conceber a ética de Kant como ética e teoria de justiça processual: ‘No início não está um princípio moral dotado de conteúdo, mas o processo’ (desenvolvidamente sobre Ellscheid, p. 399 ss.). Trata-se da ousadia de obter conteúdos a partir da forma.

A passagem pela ética dos bens desde Aristóteles até Kant conduziu, subitamente, à necessidade duma ética processual, sem que, no entanto, a ética dos bens ou valores (dos conteúdos ético-materiais) se tenha tornado obsoleta" (2004: 257)

Mas, como visto, o procedimento discursivo é materialmente fundado. Parte de pontos profundamente imantados de conteúdos, de condições pragmáticas de argumentação, de concepções historicamente situadas acerca do bem – o que, por exemplo, hoje, no Brasil, muito se aproxima da noção de direitos e garantias fundamentais – e de pré-percepções que são inerentes aos sujeitos de quaisquer discursos.

Em suma, não se pode de antemão definir a Justiça como algo provido de contornos materiais nítidos. Ela surge do procedimento sim, mas do procedimento condicionado por conteúdos que impedem que da forma correta se saque conclusões do justo e do bem divorciadas do contexto material, seja este caracterizado pela sociedade globalmente considerada, pela lide deduzida em juízo, ou pelo colóquio informal entre dois indivíduos que, dotados de pré-juízos, travam entre si argumentos racionalmente fundados acerca de algo. A justiça é contingente, mas não é absolutamente incerta.

Mas o procedimento deve permitir que o conteúdo aflore, a partir da viabilização pragmática do próprio discurso, sempre intersubjetivo e marcado pelo pluralismo de visões de mundo dos interlocutores. Se numa controvérsia é, na prática, defeso a um dos sujeitos argumentar, não há discurso, e, portanto, não se encontra presente a forma a partir da qual a justiça deverá ser materialmente construída.

Resta, neste contexto, saber se as decisões que permitem ao Poder Judiciário deixar de analisar todas as teses jurídicas trazidas aos autos pelas partes não inviabiliza que se trave, dentro do processo judicial de resolução de controvérsias mediante a aplicação do Direito, um discurso de antemão predisposto à realização da justiça em casos concretos.

A decisão judicial deve ser a um só tempo justa e consistente, ou seja, fundamentada no que se tem por sendo o direito posto. Neste contexto, a justiça do caso concreto sobrevém como a adequação ao caso deduzido em juízo, conforme expõe Menelick de CARVALHO NETTO:

"Desse modo, no paradigma do Estado Democrático de Direito, é de se requerer do Judiciário que tome decisões que, ao retrabalharem construtivamente os princípios e regras constitutivos do Direito vigente, satisfaçam, a um só tempo, a exigência de dar curso e reforçar a crença tanto na legalidade, entendida como segurança jurídica, como certeza do Direito, quanto ao sentimento de justiça realizada, que deflui da adequabilidade da decisão às particularidades do caso concreto." (in CATTONI, 2004: 38)

O discurso de aplicação, que é o que aqui nos interessa, produz a justiça a partir das especificidades do caso, o que se pode chamar, dependendo do instrumental teórico de que se faz uso, de adequabilidade (como faz Menelick de CARVALHO NETTO), ou de equidade, como faz KAUFMANN (com, ao que tudo indica, inspiração aristotélica):

"É evidente que a generalização pode ter diferente amplitude, a norma não tem de valer sempre para todas as pessoas, mas sim para todos os menores, para todos os comerciantes, para todos os assassinos. E neste ponto se distinguem justiça e equidade. É uma diferença de pontos de vista, paradigmaticamente do ponto de vista do legislador, por um lado, e do ponto de vista do juiz, por outro lado: aquele parte da norma geral para o caso concreto (Dedução), este, do caso concreto para a norma geral (indução)." (KAUFMANN, 2004: 236)

De toda sorte, sobreleva em importância, para a satisfação da pretensão de realização da justiça com relação ao caso concreto, que a construção discursiva – linguisticamente fundada – da situação de aplicação do Direito, o que engloba toda sorte de argumentos de fáticos e jurídicos, venha à tona em sua plenitude a partir da interação entre as partes e o magistrado. A decisão justa – ou melhor, que se pretende materialmente justa – deve sobrevir como um produto argumentativo de todos estes atores, a partir dos quais se reconstroem perspectivas dos fatos e do Direito envolvido na controvérsia segundo um senso de adequabilidade, ou de equidade, cujo escopo ideal é o esgotamento das possibilidades variáveis que a fundamentação da solução invoca. A materialidade da solução justa advém, assim, da reconstrução discursiva de todos os dados – fatos e normas – que envolvem a controvérsia. As regras do processo judicial devem possibilitar que esse discurso ocorra de forma potencializada, refutando o monólogo judiciário, e permitindo que a concretude do caso (e não só dos fatos) venha à tona da melhor forma possível. A adequabilidade deve ser levada a sério como forma discursiva que permite – ou que ambiciona - o advento da justiça do caso concreto:

"É precisamente a diferença entre os discursos legislativos de justificação, regidos pelas exigências de universalidade e abstração, e os discursos judiciais e executivos de aplicação, regidos pelas exigências de respeito às especificidades e à concretude de cada caso, ao densificarem as normas gerais e abstratas na produção na produção das normas individuais e concretas, que fornece o substrato do que Klaus Gunther denomina senso de adequabilidade, que, no Estado Democrático de Direito, é de se exigir do concretizador do ordenamento ao tomar suas decisões." (CARVALHO NETTO, in CATTONI, 2004: 39)

"Os discursos de justificação jurídico-normativa se referem à validade das normas, e se desenvolvem com o aporte de razões e formas de argumentação de um amplo espectro (morais, éticas e pragmáticas), através das condições de institucionalização de um processo legislativo estruturado constitucionalmente (...).

(...)

Já discursos de aplicação se referem à adequabilidade de normas válidas a um caso concreto, nos termos do Princípio da Adequabilidade, sempre pressupondo um ‘pano de fundo de visões paradigmáticas seletivas’, a serem argumentativamente problematizadas: ... ‘o critério formal da adequabilidade só pode ser a coerência da norma com todas as outras e com as variantes semânticas aplicáveis na situação’ (GUNTHER, Klaus. The sense of appropriatness. Trad. Jonh Farell. New York: State University of New York, p. 243 et seq). (CATTONI, 2004: 62-63)

"A solução correta advém, pois, do desenvolvimento de um senso de adequabilidade normativa, de uma interpretação racional e argumentativamente fundada em cada situação, tendo em vista uma reconstrução paradigmática apropriada do Direito vigente." (CATTONI, 2004: 65)

No âmbito da teoria discursiva do Direito, materialmente fundada, o modelo constitucional do processo viabiliza "a reconstrução adequada da situação de aplicação" (CATTONI, 2004: 74) das normas jurídicas, sendo, assim, a única forma capaz de satisfazer a pretensão de justiça de que se reveste o ato de aplicação do Direito representado pelo provimento jurisdicional. E, no que aqui interessa, o ponto do modelo constitucional do processo que se entende que deve ser adotado é representado pela amplitude dada pelo Supremo Tribunal Federal ao princípio constitucional do contraditório, in verbis:

"Daí afirmar-se, correntemente, que a pretensão à tutela jurídica, que corresponde exatamente à garantia consagrada no art. 5º, LV, da Constituição, contém os seguintes direitos:

1.direito de informação (Recht auf Information), que obriga o órgão julgador a informar a parte contrária dos atos praticados no processo e sobre os elementos dele constantes;

2.direito de manifestação (Recht auf Ausserung), que assegura ao defendente a possibilidade de manifestar-se oralmente ou por escrito sobre os elementos fáticos e jurídicos constantes do processo;

3.direito de ver seus argumentos considerados (Recht auf Berucksichtigung), que exige do julgador capacidade, apreensão e isenção de ânimo (aufnahmefahigkeit und aufnahmebereitschaft) para contemplar as razões apresentadas

.

Sobre o direito de ver seus argumentos contemplados pelo órgão julgador (...), que corresponde, obviamente, ao dever do Juiz ou da Administração de a eles conferir atenção (...), pode-se afirmar que envolve não só o dever de tomar conhecimento, como também o de considerar, séria e detidamente, as razões apresentadas (...).

É da obrigação de considerar as razões apresentadas que deriva o dever de fundamentar as decisões." (STF – Tribunal Pleno – MS n. 24.268-0/MG. DJ 17.09.2004. Rel. Ministro Gilmar Mendes - grifei)

As posições expostas na introdução deste trabalho, segundo as quais o Poder Judiciário não estaria adstrito a analisar todas as teses jurídicas trazidas ao processo pelas partes, inviabiliza o desenvolvimento de um senso agudo de adequabilidade. A interpretação do Direito é uma atividade ungida de relevante nível de incerteza; a definição do sentido das normas jurídicas é discursiva. O caso, a situação de aplicação, é composto de fatos e normas umbilicalmente ligados. Se simplesmente deixadas de lado as teses acerca do correto sentido a ser conferido às normas jurídicas, pela não-análise de todos argumentos de Direito levantados pelas partes, pelo Poder Judiciário, o discurso que envolve os sujeitos do processo fica mutilado, o que inviabiliza o pleno senso de adequação da decisão judicial, e, por conseguinte, a sua própria pretensão a ser um procedimento que visa a justiça concreta. A importância dada à consistência – ou seja, de que a decisão remonte ao Direito posto – existe indubitavelmente. Mas ao senso de adequabilidade, de equidade, sucumbe, pois este é essencialmente argumentativo, intersubjetivo; em suma, discursivo. Se a fixação dos fatos é discursiva, mas a interpretação do Direito é objeto de um monólogo do Juiz, o senso de adequabilidade está a priori inviabilizado, ao menos parcialmente, pela incorreção do procedimento, o que prejudica o estabelecimento de um discurso sério e aberto sobre todas as peculiaridades do caso. Uma decisão dada em tal contexto (em que o juiz não se encontra adstrito a se pronunciar sobre todos os argumentos jurídicos deduzidos pelas partes) poderá até ser justa; mas isso dependerá, sobretudo, de dados fortuitos, ou seja, de uma interlocução plena que apenas acidentalmente ocorra entre os sujeitos do processo; jamais será o produto de um procedimento constitucionalmente correto que vise, de maneira predisposta, garantir uma situação ‘ideal’ de discurso.

Só a decisão que se aprofunda nos argumentos trazidos ao processo pelas partes, mergulhando nas teses fáticas e jurídicas que estas levantam com relação ao caso concreto posto em juízo, pode aspirar a ser justa, pois somente ela é capaz de desenvolver o sendo de adequabilidade de que acima se falou, e que representa justamente o modus pelo qual o bem pode ser discursivamente construído com relação a uma situação de aplicação do Direito, linguisticamente erigida em sua historicidade a partir das pré-compreensões que envolvem os sujeitos do processo. A recusa do Poder Judiciário em analisar todas as teses jurídicas trazidas a lume pelas partes, repita-se, inviabiliza a adequabilidade, a equidade, interrompendo o discurso que deita sobre um dos mais importantes dados do caso: o Direito controverso. O monólogo Judicial sobre o Direito aplicável à espécie arrisca-se imensamente a produzir decisões injustas, porquanto inadequadas, além de negar, em seus fundamentos, a característica essencialmente lingüística, relacional e controversa do sentido do Direito, do conteúdo das normas jurídicas em si. Trata-se, portanto, de uma forma que hoje se pode afirmar como inapta a ambicionar a expedição de decisões justas.


3 – CONCLUSÃO

O modelo processual que hoje se pode considerar como apto a aspirar a justiça do caso concreto exige que todos os argumentos, de fato e de direito, teses, etc., sejam analisados pelo órgão do Poder Judiciário quando da fundamentação do provimento jurisdicional, ainda que o Juiz, ao final, opte por aplicar à espécie normas jurídicas diversas daquelas invocadas pelos demais sujeitos do processo.


4 – REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. 2. ed. Trad. Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2007. 319p

KAUFMANN, Arthur. Filosofia do Direito. Trad. Antônio Ulisses Cortês. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004. 534p.

OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni de (coordenador). Jurisdição e hermenêutica constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos. 2004. 587p.

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Sobre o autor
Luís Fernando Belém Peres

Advogado em Belo Horizonte/MG

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PERES, Luís Fernando Belém. Justiça, jurisdição e argumentação.: Breve ensaio sobre a extensão do dever de fundamentação das decisões judiciais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2544, 19 jun. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/15068. Acesso em: 18 dez. 2024.

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