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Controle da finalidade do ato administrativo.

Uma abordagem centrada nos direitos individuais

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24/06/2010 às 00:00
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3.

O interesse público, aquele tomado à conta do Estado para concretizar interesses legítimos da sociedade, que se traduz em interesses das pessoas, enquanto entes individualizados que compõem a coletividade, pois toda a lógica da nação liberal se funda sobre o indivíduo, é o fim que deve nortear não só o ato administrativo (sentido estrito), mas toda a ação estatal. O seu controle não pode ser a de mera legalidade estrita, mas, sim, numa concepção baseada em princípios, que considera que os indivíduos possuem outros direitos que não somente os explícitos em lei (concepção centrada nos direitos), competindo ao Judiciário, sempre que necessário for, dar a última palavra.

O ponto fundamental que muitas vezes se coloca na análise da finalidade do ato administrativo (interesse público) é que se trata de questão meramente política, podendo o Judiciário controlá-la somente quando, no mínimo, esteja traduzida em função através da Constituição. Na verdade, o que se postula é simplesmente um controle de legalidade, pois o juiz só poderá analisar se foi ou não concretizada a finalidade quando ela esteja especificada em lei.

Assim a expressão "interesse público" tem servido como de "abre-te Sésamo" para várias decisões antidemocráticas, e se o Judiciário se abstém de julgar, sob a alegação de ato não controlável, político, medida de urgência ou necessidade, fecha-se a possibilidade do acesso à Justiça [56], e o administrador (o Presidente, o Governador ou quem esteja exercendo a função pública) fica com o campo aberto para a prática arbitrária e injusta.

Entretanto, o problema fundamental não é a especificação legal. Pois até a determinação do que se sejam interesses públicos tem o seu campo de definição limitado, uma vez que não podem obstar ou anular direitos fundamentais [57] nem podem contradizer os princípios que sustentam o ordenamento e justificam o Estado de Direito. A solução se resolve numa esfera muito mais restrita. O interesse público só pode ser aquilo que não viola os direitos individuais, que respeita os interesses particulares legítimos de cada um. Assim, grosso modo, o interesse público, a finalidade a ser controlada, é a verificação de que não há usurpação de direitos, restrição de liberdades e respeito aos valores que a sociedade progressivamente incorporou à sua estrutura.

Por isso que, neste presente trabalho, a concepção do Estado que se adota é a centrada nos direitos [58]. Desta forma existe, ao menos, uma questão política que os juizes devem tomar quando confrontados com casos concretos, principalmente aqueles para os quais não existe uma norma específica reguladora, caso que não é raro no Direito Administrativo. Por conseguinte, deverão os magistrados, não importa à custa de que definição governamental de interesse público, determinar se a parte ativa (sujeito que pleiteia a ação) tem ou não um direito que deverá ser respeitado ou concretizado pelo Estado.

É o que Dworkin denomina de direito prima facie [59], ou seja, todos têm o direito à tutela jurisdicional, não importando se contra um determinado fim estatal ou contra um outro indivíduo. O Judiciário não pode simplesmente deixar de julgar sob o fundamento de que a questão é política ou de que não existe norma legal [60]. E a sua decisão deverá corresponder, não à vontade dos que têm a administração da coisa pública, mas aos fins sociais e às exigências do bem comum [61]. Fins estes que traduzem naturalmente um tratamento igualitário.

Uma vez que as desigualdades sociais constituem realidade inegável, sob pena de se descurar da justiça. Torna-se imprescindível a tentativa de sua amenizá-las, possibilitando a todos, e a cada um em particular, a plenitude da dignidade humana. "Isto implica oferecer condições para que cada homem evolua de acordo com seus méritos. A oportunidade, de uma só que seja, é a primeira expressão da igualdade" [62]. O que define de maneira ampla o que seja interesse público, interesse do povo.

Reconhecer ao homem a igualdade, esta é a condição essencial da nossa sociedade e sobre a qual está estruturada todo o seu muro ideológico. Para isso, é preciso que no tratamento individualizado existam razões plausíveis para justificar a decisão tomada. E o início para a concretização dessa igualdade é necessariamente o efetivo acesso dos cidadãos ao tribunal. Esta é a premissa básica, o alicerce do controle.

O Judiciário deverá, no confronto entre o indivíduo, que alega possuir determinado direito sendo (ou a ser) violado, e a Administração que procura executar determinada ação, determinar se ele, o sujeito demandante, possui ou não direitos a serem respeitados. Não só analisando direitos legalmente expressos, que no caso ficaria menos árdua a decisão, mas levando em conta que o cidadão possui direitos de fundo superior, direitos morais, inferidos da sociedade e que justificam o ideal sob o qual ela se apoia. A decisão não deverá ser aquela que espelha a vontade do legislador, caso deliberasse, ou pior ainda, o que o governo quer, só porque a quer. No fundo, a resposta à questão do controle de finalidade se resolve da mesma forma que qualquer controle jurisdicional: avaliando a lei, mas considerando os princípios que sustentam a coletividade.

Um juiz que segue a concepção do Estado de Direito centrada nos direitos tentará, num caso controverso, estruturar algum princípio que, para ele, capta, no nível adequado de abstração, os direitos morais das partes que são pertinentes às questões levantadas pelo caso. Mas ele não pode aplicar tal princípio a menos que este, como princípio, seja compatível com a legislação, no seguinte sentido: o princípio não deve estar em conflito com os outros princípios que devem ser pressupostos para justificar a regra que está aplicando ou com qualquer parte considerável das outras regras [63].

O que se postula não é a posição contra legem. A tentativa não é a de se opor ao ordenamento, pois é inaceitável que o magistrado decida com base em algum princípio que contrarie o repertório legal de sua jurisdição. Conforme Alexy [64], na aplicação dos princípios é fundamental que os juizes ponderem entre os direitos fundamentais e os interesses comunitários, é a tarefa principal da atuação discricionária e o objeto principal do controle do poder discricionário. "Mas, ainda assim, deve decidir muitos casos com base em fundamentos políticos [inferindo direitos da sociedade], pois, nesses casos, os princípios morais contrários diretamente em questão são, cada um deles, compatíveis com a legislação" [65].

Ao exemplo de Moreira Neto já apontado (interesse simples) [66], pode-se contrapor dizendo que o munícipe poderá, sim, pleitear a sua ação, se considerar que algum direito seu (legal ou moral) será violado pela decisão de não se construir a rodovia federal cruzando o seu Município. Da mesma forma, se o juiz observar que há princípios perfeitamente condizentes com o ordenamento que garantem a ele esse direito, deverá concedê-lo ganho de causa. Afinal, a ação estatal deve ser não apenas legal, mas também moral (princípio da moralidade), razoável e proporcional. E quem fará tal controle? Quem dirá o que se ajusta ou não aos princípios orientadores? A moralidade não se avalia somente pela conduta positiva, também a omissão poderá caracterizar caso evidente de imoralidade.

A postura parece perigosa - poderia alguém afirmar – pois aos juizes não é dado tomarem decisões políticas, uma vez que não têm legitimidade, não são eleitos nem reeleitos, o que fere o princípio democrático. Só o Parlamento, escolhido pelo povo, pode decidir politicamente. Este é a contraposição que Dworkin [67] intitula de argumento da democracia.

Mas se o Legislativo não decidiu – o que é certo quando se trata do que pode ser ou não ser interesse público, incluindo-se todos os conceitos indeterminados – a solução não é tentar adivinhar o que teriam resolvido ou negar-se a julgar. A resposta deverá ser aquela que decorre das políticas e princípios que mais se ajustam ao ordenamento.

Sobre a legitimidade legislativa, Dworkin [68] responde, não existem razões para que as decisões sobre direitos individuais tomadas pelo Parlamento sejam mais certas do que as tomadas pelo Judiciário. É inconcebível que perante um determinado caso concreto, a decisão legislativa (tomada abstrata e genericamente) seja melhor que o julgamento judicial específico. A Democracia não se exaure pela eleição, não se deve transformá-la em divindade da legitimidade.

Doutro lado, os representantes do povo estão mais sujeitos às pressões de grupos sociais do que os juizes. Muito embora não queira dizer que tal fato afetaria as suas decisões, certamente coloca o magistrado institucionalmente melhor posicionado para decidir questões sobre direitos [69]. Da mesma forma, não é convincente a posição de que o Legislativo é eleito para tomar decisões políticas, e que se o Judiciário passasse a interferir nesse campo decisório estaria quebrado o princípio da igualdade do poder político (ou a separação dos poderes como habitualmente se postula).

Caso se passar toda a decisão política para o Judiciário, resta evidente que a igualdade dos poderes estará destruída. Mas o que se considera é somente uma classe pequena de decisões políticas e é difícil saber o quantum de perda política resulta para o povo com essa transferência. "Mas parece plausível – seja como for que se meçam perdas de poder político – que alguns cidadãos ganham mais do que perdem" [70].

Se não resta dúvida que numa democracia o poder político está nas mãos do povo, também é inquestionável de que uma maioria tem a possibilidade de impor a sua vontade sobre a minoria.

Membros de minorias organizadas, teoricamente, têm mais a ganhar com a transferência, pois o viés majoritário do legislativo funciona mais severamente contra eles, e é por isso que há mais probabilidade de que seus direitos sejam ignorados nesse fórum. Se os tribunais tomam a proteção de direitos individuais como sua responsabilidade especial, então as minorias ganharão em poder político, na medida em que o acesso aos tribunais é efetivamente possível e na medida em que as decisões dos tribunais sobre seus direitos são efetivamente fundamentadas [71].

Talvez, enfim, se diga que os juizes são muito conservadores e as suas decisões tendem a manter o status quo. Esta postura é consequência da teoria de prestação jurisdicional em vigor. Assim, se a concepção de Estado de Direito centrada nos direitos se torna mais popular, a educação jurídica mudaria, "a profissão mudaria, como mudou radicalmente nos Estados Unidos neste século [leia-se século XX], e os juristas que essa profissão valoriza e manda à magistratura seriam diferentes" [72].

A ideia defendida neste trabalho segue a tendência americana (estadunidense), os direitos pertencem aos indivíduos, mais do que aos grupos. Portanto, não há finalidade que possa se opor aos cidadãos ou interesse público que dê a noção de algo pertencente ao Estado e governo, algo distante do indivíduo, como se aqueles fossem entes que se justificam por si só, contrapondo-se aos homens.

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Se o ato tem a sua finalidade expressamente estampada na norma legal, cabe ao juiz verificar a sua concretização. Se, por outro, a lei possibilita uma decisão entre as várias apresentadas, também cabe ao magistrado analisar se a decisão tomada está no âmbito das hipóteses permitidas e, mais ainda, também avaliar se a decisão tomada, em detrimento das outras, não foi com o único fim de o administrador favorecer a si mesmo ou a particular que seja do seu desejo, pois o ato torna-se imoral. Por fim, quando a ação a ser obedecida refira-se a conceitos que comportam indeterminações, também ao Judiciário é dado o papel de dizer se cumpriu ou não com os pressupostos necessários para a sua atuação.

Ao juiz cabe fazer a justiça. O problema não é jamais de mérito. Dizer se o ato foi "feliz" ou "infeliz", continua pertencendo à Administração, aos tribunais isto não interessa. Porém, afirmar se o ato declarado corresponde à sua finalidade, enquanto o Estado for de Direito, será sempre missão do Judiciário.

O magistrado não é uma simples peça mecânica. Nas palavras de O. A. Bandeira de Mello [73], é a própria justiça em movimento, pois ele ajusta as particularidades da espécie, a filosofia de vida e os princípios que predominam na sociedade à coerência do ordenamento. Não mais se concebe o juiz como um frio e distante aplicador do direito estampado nos textos legais, sem nenhum compromisso com os valores e os fins que neles se insere, como diz Caio Tácito no prefácio à obra de Moreira Neto [74].

Toda a ação estatal está voltada para um fim único. Deste modo, os órgãos Legislativo, Executivo e Judiciário, apesar de possuírem canais e modos diferentes de manifestação, buscam o mesmo fim público [75], que só pode ser a garantia dos direitos dos indivíduos, enquanto membros igualitários de uma mesma sociedade. As leis são para as pessoas, a administração se faz em favor das pessoas, e a justiça há de se fazer para as pessoas.


Considerações Finais

O Estado Democrático de Direito caracterizado pela Constituição da República Federativa do Brasil é um Estado liberal. O que pode ser constatado pela análise dos princípios e direitos que fundamentam a Constituição brasileira. Mas liberalismo tomado no sentido de posição política que busca, principalmente, reduzir as desigualdades, procurando, ao máximo, tratar a todos os cidadãos com igualdade.

Desta maneira, o interesse público não pode de forma alguma ser tratada numa concepção utilitarista, considerada tão-somente como o conjunto dos interesses particulares. Não é a maioria em si e por si só que determina o que deve ser realizado. O interesse público, enquanto fim último a ser alcançado pelos atos da Administração Pública, só pode ser aquele que trata a todos os cidadãos como iguais, concedendo igual oportunidade para se desenvolverem e alcançarem metas que contribuam para o objetivo da sua dignidade pessoal.

As atividades da Administração Pública não podem desrespeitar a proporcionalidade, a razoabilidade ou a igualdade. Não é lícito que condutas administrativas sejam imorais. Os atos haverão de estar devidamente motivados, pois ao povo, constituído por cada cidadão na sua individualidade, proprietário e senhor da coisa pública, os administradores devem absoluta explicação.

O princípio da publicidade não é uma falácia que se inseriu no texto constitucional para ficar mais bonito ou, como se diz, "para inglês ver". Ao cidadão deverá ser dado conhecer o que a Administração faz e por que o faz, pois só assim poderá controlá-la e só assim se justifica a ação popular possibilitada pelo ordenamento jurídico brasileiro.

O controle não há de resultar da mera análise de adequação entre a ação tomada e a legalidade estrita (texto legal). Há que se repetir incansavelmente: o cidadão possui direitos outros que não somente aqueles tipificados em norma legal. pois da imposição dos princípios decore necessariamente a existência de outros direitos.

O ponto fundamental do controle da finalidade dos atos administrativos deve ser a sua definição e limitação. A finalidade só pode ser aquilo que coaduna com os direitos e garantias individuais. Ela só pode ser aceita quando não é imoral, quando se traduz obrigatoriamente numa conduta orgânica que toma como premissa fundamental o tratamento igualitário.

A igualdade entre todos é a condição essencial para a efetiva obediência aos valores que hodiernamente sustentam a nossa sociedade. E essa igualdade começa forçosamente pela garantia dos direitos de cada um. Este é o fórum de princípio básico. A nenhum cidadão deverá ser negada a possibilidade de submeter a sua causa ao Judiciário e ver as suas razões analisadas por esse órgão. Concedendo-o, quando assim o Direito permitir, ganho de causa, pois, não interessa contra quem ou sob a alegação de que motivo: discricionariedade, "função política", acepções vagas, análise de mérito e quejando. Sempre que o cidadão tiver um direito a ser reconhecido, violado ou restringido, ainda que tal violação se queira fazer sob a justificativa de uma suposta lavagem moral da sociedade corrompida, deve o tribunal se pronunciar e impor o seu devido respeito. Em síntese, todos os atos estatais têm a sua limitação imposta pelos direitos individuais, fronteira intransponível quando se fala de Estado de Direito e dignidade humana.

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Sobre o autor
Quintino Lopes Castro Tavares

Advogado e Professor Universitário. Mestre em Direito/UFSC. Graduado em Direito/UFSC

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TAVARES, Quintino Lopes Castro. Controle da finalidade do ato administrativo.: Uma abordagem centrada nos direitos individuais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2549, 24 jun. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/15087. Acesso em: 23 nov. 2024.

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