Sumário: Introdução; 1. Desvio de Finalidade; 2. Princípios que norteiam a ponderação entre o direito individual e o interesse público; 2.1. Moralidade e Razoabilidade; 2.2. Motivação e Publicidade; 2.3. Legalidade e Legitimidade; 3. Controle da Finalidade do Ato Administrativo; Considerações Finais.
Introdução
O interesse público, enquanto finalidade do ato administrativo, é princípio de maior relevância na Administração Pública. É ele que norteia todos os atos do Estado. Mas por outro lado, embora a importância do controle do ato administrativo seja matéria de longa data (1840), só atualmente tem tomado outros rumos, afastando-se da antiga tradição que limitava a atuação dos magistrados à estrita legalidade. No mais, a época atual (2005), de múltiplas transformações e surpresas, tem instigado uma busca por novos caminhos, refletindo-se sobre o que seja atividade estatal, decisões políticas e conveniências administrativas.
O leque de interesses que se tem denominado de públicos multiplicou-se numa progressão geométrica de razão gigantesca. No entanto, o que sejam vontades estatal e social não têm sido bem compreendidas. Os cidadãos não se identificam com o Estado e a recíproca é verdadeira. Constata-se, hoje, na pertinência do que tem ocorrido no quotidiano social, decisões estatais, tanto do executivo com do legislativo, com o único objetivo de atropelar direitos, inverter os princípios que orientam o nosso ordenamento e, por conseguinte, prejudicar o cidadão. Não obstante, certas vezes, coloca-se arraigadamente como defesa a justificativa de uma decisão tomada em prol do interesse público.
Entende-se que o Estado, enquanto de Direito, é não só aquele fundado sob o prisma da legalidade estrita, mas também aquele que se limita pelos princípios e direitos não positivados. Os fins do Estado são vários, mas podem ser resumidos à segurança, Justiça e bem-estar, sempre considerando que há de se beneficiar é ao homem. E esses fins são realizados através da função instituída, isto é, concentração de meios com vista à consecução de determinados fins. Antes de qualquer coisa, é dever-poder, instituído com o objetivo do Estado melhor realizar os fins que justificam a sua existência.
O interesse público, síntese do dever-poder, é o que justifica qualquer ação da Administração Pública e lhe confere as prerrogativas de presunção a seu favor. Mas não é algo neutro, imune a valores. Tem uma alta carga ideológica. Tanto atua positivamente para a estabilização da sociedade e neutralização do recurso à violência social, como também opera sobre os governantes, tornando-lhes "o senhor do saber", negando-se a escutar qualquer posição diferente.
Mas s atos administrativos, limitados e determinados pelo Direito, têm a única função de realizar, em concreto, o interesse público. Não podem significar mandos e desmandos da autoridade pública, nem a varinha de condão que pode transformar arbitrariedade em legalidade. Estão amplamente vinculados e limitados pelos princípios, explícitos ou implícitos, que regem todo o ordenamento, e pelas leis que especificamente impõem as ações a serem tomadas.
Desta feita, o controle jurisdicional é o meio (entendida como função) capaz de apreciar as decisões administrativas para, se assim for o caso, quando se desviarem de suas finalidades, sujeitarem-se à anulação. Porém esse controle há de se fazer não só pela verificação da estrita legalidade (concepção antiga e já superada), como também pela apreciação dos princípios que sustentam o ordenamento, pois a vinculação principiológica hoje é indelével, já que a própria Constituição a materializou em norma expressa.
Assim é que o presente artigo tem a pretensão de discutir o desvio de poder, os princípios que norteiam o ato administrativo, defendendo-se a ponderação necessária entre o que muitas vezes se apresenta como suposto interesse público e os direitos individuais. Por fim, discute-se o controle jurisdicional de tais atos, mediante a análise de sua finalidade, não numa simples obediência à legalidade restrita, mas com vista à tutela dos direitos dos indivíduos que compõem a coletividade.
1. Desvio de finalidade
O desvio de finalidade [01] é instituto cuja construção se deve ao Conselho de Estado da França, em meados de 1840, o détournement de pouvoir [02]. Depois espalhou-se pelo mundo, integrando diferentes sistemas, como, por exemplo, o italiano, o português e o brasileiro [03]. Busca-se a proteção do indivíduo face aos atos da Administração Pública e, secundariamente, servir ao próprio mecanismo da Administração frente às negligências e abusos de seus funcionários. Como acentua Miguel Seabra Fagundes [04], o controle jurisdicional é de maior relevância nos Estados de sistema presidencial porque há menos equilíbrio entre os poderes que no sistema parlamentar.
No controle dos atos administrativos, cabe ao Judiciário verificar se a opção efetivada pela Administração manteve-se nos limites do razoável, não ultrapassando o campo a que está sujeita pelo ordenamento jurídico [05]. Se o administrador usa de sua competência para alcançar finalidade diversa da que lhe foi outorgada, ter-se-á desvio de poder.
O desvio de poder é vício que enferma o ato administrativo, praticado pelo agente no exercício de uma competência legalmente conferida, a qual é desencaminhada da prossecução da finalidade que lhe é específica e para cuja concreção havia sido, precisamente, outorgada pela lei [06].
No direito brasileiro, o controle pelo Judiciário é norma constitucional (art. 51, XXXV, da CF/88). Existindo, ao contrário de outros países, unidade de jurisdição, isto é, só ao Poder Judiciário cabe decidir, em caráter definitivo, os conflitos entre a Administração e os administrados. Como afirma C. A. Bandeira de Mello, só o Poder Judiciário detém "a universalidade da jurisdição, quer no que respeita à legalidade ou à consonância das condutas públicas com atos normativos infralegais, quer no que atina à constitucionalidade delas" [07].
Assim, o ato administrativo não é imune ao controle jurisdicional. O juízo de decisão sobre a verificação dos fatos controvertidos não pode ser subtraído à competência da Justiça. Qualquer cidadão com interesse legítimo (em regra, interesse pessoal, direto e atual) pode requerer o reexame da matéria pela própria Administração ou acionar o Judiciário [08]. A autoridade competente não pode simplesmente invocar a indeterminação do conceito ou a liberdade de opção para se eximir do controle judicial. "É que isto não é mérito administrativo" [09].
Exame de mérito, na esfera administrativa, só ocorre quando se indaga sobre o valor do ato em si mesmo, mas jamais da correspondência funcional entre o fim da lei e o fim do ato. Para exemplificar, quando a Administração, por razões supervenientes, passa a entender que a outra via facultada pela norma é mais adequada, renunciando, assim, à decisão anterior, embora igualmente válida, ocorre revogação do ato por motivo de mérito [10]. Mas que só pode se verificar quando há discricionariedade e os motivos estejam ainda presentes.
O desvio de poder é um vício objetivo, que decorre do descompasso entre a finalidade legal e o resultado concretamente obtido pelo ato [11]. Pode até ser que o agente se julgue atuando dentro da legalidade, porém, se o ato não atingir o fim determinado, há desvio de finalidade.
É preciso não deificar a "liberdade administrativa". Quando o ato se desviar da sua finalidade cabe à própria Administração exercer o seu controle, revogando-o e editando um novo ato, se assim se fizer necessário. Porém, a possibilidade de revogação por iniciativa própria não exclui a possível apreciação judicial.
Investigar se o agente administrativo atuou de maneira idônea para buscar a finalidade prevista é o mínimo que se pode esperar como competência do Poder Judiciário, para que exerça sua própria função. Deve ficar como certo que o ato administrativo ultrapassa os seus limites quando busca o favorecimento pessoal do agente ou de outrem; quando é exercido com violação à regra de competência para a qual foi designado; quando revela uma opção desarrazoada, pois a lei não existe para providenciar absurdidades; quando expressa medidas incoerentes, tanto em relação aos motivos como em relação às decisões tomadas anteriormente em casos idênticos, já que a lei não elege ilogismos, nem perseguições, favoritismos, discriminações gratuitas à face da lei, nem soluções aleatórias; e ainda, quando for desproporcional aos fatos, uma vez que a lei não endossa medidas que ultrapassam ao necessário para a concretização do fim [12].
Pode-se afirmar, um ato foge da sua finalidade quando não é oportuno, ou seja, quando o motivo não exista, seja insuficiente, inadequado, incompatível ou desproporcional [13]. Ainda, o ato administrativo, para que seja válido, deverá ser conveniente. Quer dizer, o seu objeto deverá ser possível, conforme e eficiente.
No tocante à oportunidade, o motivo inexistente viola o princípio da realidade, pois o Direito não é uma criação fictícia. Nenhum ato administrativo deve se sustentar sobre fatos e/ou normas falsos. Trata-se de um desvio que decorre da grave inoportunidade do ato. O mesmo acontecendo com o ato cujo motivo é insuficiente. Se a situação não satisfaz plenamente, é inoportuna a edição do ato administrativo [14].
Por outro, não só se faz mister a existência suficiente do motivo como, também, deverá ser adequado para o ato que se pratica. Por exemplo, a urgência não pode servir de base para um ato (ou procedimento) protelatório, mesmo que revestido de legalidade formal. Ainda, haverá de guardar pertinência lógica com o objeto. Verbi gratia, a falta de licença para comerciar não justifica a ordem para a destruição dos bens do comerciante de fato. É o que se denomina de compatibilidade (motivo/objeto) [15].
Dando continuidade, já na esfera da conveniência, a possibilidade deverá ser entendida tanto no aspecto jurídico como físico. Este será o indispensável respeito à realidade; aquele atende ao conceito de objeto lícito, tomado no sentido de respeito ao Direito, o ordenamento jurídico no seu todo. Por sua vez, a conformidade é a congruência entre o objeto e a finalidade almejada. Porém, abarca algo mais, engloba todas as hipóteses de insatisfação que possa atacar o interesse público contido na norma de finalidade [16].
Finalmente, não satisfaz apenas estar conforme o fim. É preciso que a decisão seja eficiente. Claro que não existe uma linha clara entre a eficiência e a ineficiência, mas se alguém deverá dar a última palavra sobre a satisfação ou não do interesse público, esse alguém só pode ser o magistrado. Ao Judiciário "não cabe fazer opções administrativas (mérito), mas, sem dúvida, ele tem o dever de não permitir que elas se façam com violação da lei, ainda que indireta" [17].
2. Princípios que norteiam a ponderação entre o direito individual e o interesse público.
O juiz é um agente criador do Direito. Quando for lhe exigido a solução de um determinado caso, não poderá deixar de fazê-lo sob a justificativa do silêncio, obscuridade ou insuficiência da lei (art. 4º da LICC). Apoia-se sempre (ou ao menos deveria fazê-lo), ao analisar um caso concreto, nos princípios que informam o conteúdo daquilo que se quer julgar [18]. Requisito este que se justifica mais ainda quando se trata de questões de Direito Administrativo, pois este não está "codificado", no sentido clássico do termo, e talvez mais do que qualquer campo jurídico, é uma construção doutrinária e jurisprudencial [19]. Como acentua Vedel [20], é em grande parte não legislativo, a sua construção é essencialmente feita pelos juizes. O magistrado tem a missão de renovar o Direito, aplicando os textos legais conforme os valores sociais vigentes, e nada mais seguro do que se guiar pelos princípios, pois estes se ajustam constantemente à sociedade.
A Constituição [21] indica os princípios que devem guiar a Administração na busca dos seus objetivos (deveres). Porém, os princípios norteadores não se resumem apenas aos elencados no art. 37, o Poder Público deverá orientar-se também de acordo com os direitos e garantias individuais e outros princípios que mesmo implícitos disciplinam a sua conduta. No entanto, não se busca aqui exaurir os princípios que guiam a Administração Pública, mas somente exaltar aqueles que se considera fundamental para a apreciação do ato administrativo e a consecução de sua finalidade, isto é, os princípios da moralidade, razoabilidade, motivação, legalidade e legitimidade, com ênfase nestes dois últimos e num constante diálogo com os princípios da igualdade e proporcionalidade. Além de se valorizar o respeito aos direitos individuais e a plena concretização da justiça.
Não se pode negar a existência dos princípios na ordem normativa. Cada vez são mais aclamados e admitidos como orientadores da criação e interpretação de todas as normas jurídicas, servindo-se, por si só, vale ressaltar, como fundamento para decisões jurídicas concretas, impondo obrigações e deveres tanto aos particulares como às entidades públicas e acarretando direitos subjetivos.
Os princípios tanto podem estar explícitos como implícitos. Os explícitos estão literalmente expressos numa norma legal, positivados em diploma jurídico letra por letra. Por sua vez, os princípios implícitos não estão transcritos em nenhum texto legal, mas a sua existência se deduz pelo viés dos demais princípios e regras de um ordenamento, pois em qualquer ordenamento jurídico há diversos princípios que permeiam a ação dos órgãos públicos e inspiram as decisões judiciais [22].
O ordenamento está constituído por regras e princípios. As regras, embora genéricas e abstratas, regulam situações fáticas. Doutro lado, os princípios têm um grau de abstração e generalidade muito maior, pois não envoltos por pressupostos de fato, orientam as mais distintas situações e regras, "refletem um valor básico de justiça inserido no ordenamento e o direcionam para uma finalidade" [23].
Enquanto as regras são excludentes entre si: se uma se aplica a outra se exclui. Os princípios assentam-se no âmbito de sua importância. "Quando apontam direções contrárias, deve-se apreciar o que cada um deles representa, tudo isso sob a ponderação dos fatos que informam o caso" [24]. Buscando-se um princípio, é bem provável que haja outro na direção oposta, mas a solução do caso concreto terá como base a importância de cada uma.
Os princípios, porque intermedeiam a concretização material e os valores que a sociedade tem como justos, possuem "uma tensão que reflete a pluralidade social, devendo-se ponderar os valores pertinentes, visando a apurar uma solução que seja razoável" [25]. Numa verificação que, para ser adequada, precisa da análise caso a caso. Por isso é que, muitas vezes, o interesse público é uma questão que deve ser respondida em cada caso particular, respeitando-se as particularidades.
Dando-se precedência a um princípio e afastando os demais, não se está recusando a aplicação normativa de qualquer deles, mas os recebendo na sua totalidade e reconhecendo que ao caso pertinente este ou aquele é de mais valia, devendo ser enfatizado em relação aos outros. No mais, há de se sublinhar que os princípios jurídicos não resultam no desamparo da segurança, pois, "integrando e sistematizando a ordem jurídica, estão todos previamente configurados, uma vez que não prejudicam a segurança jurídica" [26].
Entretanto, de forma alguma são estáticos. Usando-se de recurso estilístico, pode-se dizer que os princípios são os pulmões do Direito. Dado que fundamentados nos valores sociais, estes não permanecem os mesmos no transcorrer dos anos. Assim, os princípios permitem a atualização do Direito à sociedade que regula, sem se precisar de mais promulgações ou reformas legislativas. Nem tampouco são sempre os mesmos princípios que serão aplicados na resolução de um conflito, ou lide, quando submetido ao Judiciário.
Por mais que aplique o princípio da supremacia do interesse público sobre o particular, para a resolução do caso que se apresenta, "não há uma fórmula pronta, um silogismo ou o que seja; deve-se usar do discernimento, analisar os bens sujeitos ao sacrifício e recorrer à resposta que albergue a justiça" [27]. Perante um caso concreto, é impossível o afastamento da ponderação. O intérprete tem a missão de avaliar o peso do princípio em questão, os pressupostos de fato que o circundam, e o único meio capaz de se lograr com êxito é através da razoabilidade.
2.1. Moralidade e razoabilidade
Não é fácil falar de moralidade sem cair em conceito vazio. É princípio que está incorporado em todos os outros princípios. Por derivar-se da moral, deve corresponder à conduta tida como correta, a honesta e adequada aos valores sociais da justiça [28]. Tem como função limitar a atuação administrativa [29], exigindo que a conduta dos agentes públicos responda a duas necessidades: a de justiça para os cidadãos e de eficiência para com a própria Administração, com vista à concretização dos fins impostos para a realização do interesse público [30].
Na esfera administrativa, não está a moralidade vinculada apenas à finalidade, mas também aos meios que se utiliza a Administração para atingir o fim determinado. É através da finalidade que se fixa, entre outros limites, a definição da moralidade administrativa Como explicita Moreira Neto, a moral administrativa orienta-se pela diferença prática entre boa e má administração [31]. No exagero da exemplificação, a Fazenda Pública não poderá usar de propaganda televisiva para avisar (diga-se, notificar) um determinado contribuinte que o seu débito tributário está sendo lançado. O meio não é idôneo, é imoral. Pois deve-se conjugar a moralidade com a razoabilidade.
O fundamento básico da razoabilidade, a sua essência, é a prudência e o bom senso. Ela é noção que participa da essência do Direito, sendo fator determinante na resolução dos casos concretos. "Logo, a lei não pode impor discriminações, salvo se razoáveis aos demais valores sociais" [32].
Parece até pleonástico falar-se de ação pública ou lei razoáveis, embora princípio jurídico, pois fica sem sentido o ordenamento que enuncia regras desarrazoáveis. As normas jurídicas devem refletir os interesses e valores sociais que permeiam a sociedade. Entretanto, com o correr do tempo, determinadas normas distanciam-se do que se espera na coletividade, deixando-se de ser razoáveis. É o motivo pelo qual se fundou o princípio em análise. "Seu conteúdo, insiste-se, pura e simplesmente obriga e, acaba por conferir direito subjetivo ao razoável" [33].
Em suma, há uma conjugação necessária entre os princípios da razoabilidade e da moralidade, e nessa relação intrínseca, o interesse público serve como guia: é razoável e moral aquilo que com ela se coaduna. A aplicação da lei (ou de um princípio) deve ser razoável, mas o que a orienta é a moral, os valores sociais que ela representa.
2.2. Motivação e Publicidade
Não mais impera a monarquia, onde ela sobrevive é mais formal do que real. Assim, a República (res publica = coisa pública) exige a transparência dos atos daqueles que a administram. Quem cuida do que não é seu não pode agir no sigilo. Por mais árdua a missão, o sigilo não se justifica frente ao próprio povo, único proprietário da coisa pública. A democracia, a cidadania e a legitimidade não coadunam com o ato secreto.
Tudo está nas mãos do povo que deve conhecer para poder controlar. E este controle só pode ser feito se houver o conhecimento precedente. Ninguém controla se não conhece os fatos. Ao cidadão é dado conhecer o que Administração Pública realiza para poder fiscalizá-la [34]. Não só o conhecimento do que faz, mas também porque o faz.
Ressalvando-se os casos que correm em segredo com vista a garantir os próprios cidadãos, trata-se de direito de informação integral. Não é suficiente que se revelem apenas alguns pontos, pois os cidadãos têm o direito de conhecer o inteiro teor dos atos que lhe são pertinentes. Deste modo, é princípio que se complementa com o da motivação.
Esta é, de certa forma, a garantia da publicidade, uma vez que permite conhecer o conteúdo do ato administrativo. Por conseguinte, a falta de motivação pressupõe o sigilo, a falta de publicidade dos reais motivos, porque na prática não há ato sem motivo. Há que se destacar a necessidade da proteção da própria sociedade, pois todos têm o direito de saber como funciona e na base de que motivos a Administração atua [35].
Motivação é a "exteriorização das razões que justificam o ato". Não se confunde com os motivos, estes podem ter existido sem que tenha havido motivação, mas, também, podem não ter existido e mesmo assim a Administração haver motivado (justificado) o ato, como se houvessem motivos idôneos para apoiá-los [36].
A motivação se justifica não só pela desconfiança histórica que se tem em relação ao poder, como também pela natureza falível do ser humano. Por isso, indaga C. A. Bandeira de Mello [37]: como contestar a validade de um ato se a sua razão de ser permanecer oculta? Como submetê-lo ao crivo jurisdicional, se são desconhecidas as bases sobre as quais se funda? O Estado de Direito exige a explicação do motivo que uma norma se impõem, pois, caso contrário, faltará consenso, o que foge ao conceito democrático do exercício do poder.
É através da motivação que se verifica se o ato resulta da vontade pessoal e arbitrária do administrador, se ele observou a regra da proporcionalidade e da adequação entre os meios e os fins. A motivação surge, assim, como um dos pilares de controle do princípio da proporcionalidade [38]. A decisão sem fundamento é "um discurso puro e bruto da autoridade, do autoritarismo, da força" [39].
A motivação se revela evidentemente necessária quando o ato decisório, por exemplo, uma promoção por merecimento, possa favorecer A, B ou C. Qualquer resultado em favor de um, opera um sacrifício nos outros dois [40]. Por isso, para que o ato seja aceitável, é preciso que seja legal, razoável e motivado explicitamente. Se o ato não se apresentar sequer formalmente motivado, impossibilita saber se houve sacrifício com desrespeito ao Direito.
Deverá, nos dias atuais, a motivação ser tomada como um princípio geral do Direito, mesmo que não haja norma legal explícita a respeito, uma vez que, além de se relacionar e quase se confundir com o princípio da publicidade, decorre da extensão do princípio do devido processo legal que se estende à atividade administrativa.
Mas o devido processo legal (due process of law), deve ser tomado, hoje, não só no seu sentido clássico formal, como também no sentido material. Não é simples procedimento do devido processo legal (due procedural process of law), porém, como aparece na Constituição, deve ser tomado com o conteúdo do Direito americano, o da igualdade substancial e não apenas formal [41].
Na esteira de C. A. Bandeira de Mello [42], se as decisões judiciais são nulas quando carecem de motivação (art. 93, IX, da CF/88 e art. 458, II, do CPC), se são suscetíveis de desconstituição por ação rescisória quando fundadas em erro de fato (art. 485, IX, do CPC) e, mais ainda, se as decisões administrativas dos Tribunais devem ter motivação expressa (art. 93, X, da CF/88), não há como imaginar que atos administrativos podem ficar fora de tal imperativo.
Há de se complementar, se o Judiciário deve motivar as suas decisões administrativas, da mesma forma os Poderes Legislativo e Executivo estão submetidos a tal obrigação, pois só assim se garantirá a efetividade do controle a que estão sujeitos [43]. Além do mais, bem disse Osório, "ninguém (inclusive a jurisprudência brasileira) duvida, teoricamente, da existência de um princípio da motivação administrativa na ordem constitucional pátria" [44].
Porém, para uma adequada motivação, a autoridade precisa indicar não somente o fundamento legal, mas também os fatos ou circunstâncias sobre os quais se apoia o ato, bem como a relação de pertinência lógica entre o supedâneo fático e a decisão tomada, com vista à compreensão de sua idoneidade [45].
Se faltar a enunciação da norma jurídica que se aplica não há como saber se o ato corresponde à competência utilizada; se não existir a enunciação dos fatos à vista dos quais está-se agindo, não será possível controlar a existência material de um motivo para o ato e, pior ainda, seu ajustamento à hipótese normativa: sem fundamentação do porquê se agiu de tal maneira não há como saber se houve ou não razão válida para justificar a medida.
Da leitura, pode-se inferir que não há obediência à legalidade e à legitimidade se o ato administrativo for expedido sem motivação, que uma vez impugnado, apresenta-se justificativas ad hoc, o que não possibilita o conhecimento de que realmente existiram ou foram tomadas em conta ao tempo de sua prática [46].
Não se pode admitir motivação posterior que não garante de maneira induvidosa (sujeita-se ao convencimento do juiz) que preexistiram os motivos alegados e foram suficientes para a declaração válida. Se o ato é vinculado e o motivo possa ser demonstrado induvidosamente a posteriori (conceitos determinados), a ausência de motivação não invalida o ato. Porém, se os conceitos são indeterminados, a fim de demonstrar a sua ocorrência, a motivação é obrigatória.
Enfim, a relação entre os princípios de publicidade e da motivação são evidentes. O conhecimento pelo cidadão dos atos administrativos, que não raras vezes resultam em restrições de direitos ou imposições de ônus, constitui direito fundamental que impõe obediência, caso contrário, no dizer de Moreira Neto (1992, p. 63), transforma-se o Estado de Direito numa falácia. E não custa repetir, no Estado Democrático de Direito (caput do art. 1º da CF/88), em que nada foge da apreciação judiciária (art. 5º, XXXV, da CF/88), em que os administrados têm o direito de receber informações de seu interesse (art. 5º, XXXIII, da CF/88) e em que ninguém é obrigado a agir ou deixar de agir senão por força da legal (inc. II do art. supracitado), a segurança do cidadão e de todos que se submetem ao ordenamento nacional é fator de absoluta importância. Portanto, o Poder Público não pode emanar atos, principalmente se integrados por elementos indeterminados, de maneira enigmática, capaz de confundir o administrado e, por conseguinte, impossibilitando-o de conhecer o móbil que o motivou. Aquele que assim age viola os princípios da publicidade e da moralidade.
2.3. Legalidade e legitimidade
Um dos principais dogmas sobre o qual se funda o Direito Administrativo, após a Revolução Francesa, ano de 1789, é o primado do indivíduo em face do Estado, e a afirmação de "direitos naturais e imprescindíveis do homem", cuja relação mais direta está na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, firmando-se que tudo que não é proibido por lei pode ser permitido: le citoyen contre le pouvoirs. Assim, entre os três poderes, é sobre o executivo que irá pairar maior grau de desconfiança, pois é o que parece mais perigoso para o indivíduo. Já que, no tocante aos os outros poderes, não se pensa que poderão ameaçar os direitos individuais, o que resulta natural não só para o Judiciário como para o Legislativo [47].
A justificativa é simples. Se a lei é a "expressão da vontade geral", não há como imaginar o povo oprimindo-se a si próprio. É desta crença quase divina que decorre uma tripla consequência. As matérias mais significativas são reservadas à lei – em particular, todas as que tangem à liberdade e à propriedade. A lei deverá ser sinônima e consubstancial do direito: a lei é o direito e falar-se-á de legalidade ou ilegalidade para se invocar à regularidade e irregularidade. Por fim, a lei é ato inicial, incondicional e incontestável; enquanto a decisão executiva é ato subsequente, condicionado e contestável.
Em certo ponto, é possível dizer que tais concepções ainda animam o Direito Administrativo, mas, como, já dizia Prosper Weil, já em 1964, sabe-se hoje que um Parlamento pode ser tirânico e que o Legislativo nem sempre reúne os representantes da nação, podendo ser o próprio governo. Mas, se a confiança não é mais tão certa, a submissão da Administração Pública ao Direito ainda continua bem forte. Deste modo, pode se dizer que a tutela do indivíduo frente às ameaças do Poder aos seus direitos e liberdades constitui a primeira e principal inspiração ("La première et la principale inspiration") do Direito Administrativo [48].
De tudo o exposto, convém afirmar, não há atividade administrativa livre, tudo está submetido ao Direito. Sempre que a ação administrativa possa ofender aos direitos do indivíduo, ela será sindicável pelo Judiciário e, portanto, determinado sob o princípio da legalidade. Devendo-se reforçar que o princípio da legalidade não engloba apenas a lei, a Constituição, ou outras regras escritas, mas também princípios gerais não escritos, cuja obediência é determinada pelo juiz, sem nenhum texto escrito.
Como diz Weil [49]: "l’administration se trouve en effet limitée, non seulement par des règles écrites, masis aussi par des principes générau dont le juge impose le respect en dihors de tout texte". Dito de outro modo, a legalidade é a qualidade do que é conforme a lei. Mas, nesta definição, o termo "lei" deve ser entendido no sentido mais amplo possível, correspondendo ao próprio "Direito".
A Administração é uma criação abstrata do Direito e não um produto pessoal de um soberano, atuando necessariamente sob o império da legalidade, que por sua vez é uma legalidade objetiva, sobrepondo-se à Administração e não um simples instrumento ocasional e relativo da mesma. Por isso é que a legalidade pode ser invocada pelo indivíduo, o que expressa o princípio de liberdade que a Revolução instaura, vindo a se transformar em verdadeiro direito subjetivo. Este é o sentido geral do princípio da legalidade administrativa [50].
O princípio de legalidade aplicado à Administração expressa a regra segundo a qual o Poder Público deve agir conforme o Direito. Não se resume à submissão do Executivo ao Legislativo, mas, sim, à submissão da Administração ao Direito, na sua mais ampla acepção. E uma vez que a mais importante finalidade do Direito Administrativo, que por si só o justificaria, é a defesa das liberdades e dos direitos dos administrados, o controle de legalidade tem no seu centro de gravidade a relação com o interesse do administrado, que pode se expressar de três maneiras, conforme os dizeres de Moreira Neto [51]:
1) Interesse simples – tutela-se simplesmente um interesse público, que é mero interesse de fato. Para exemplificar, o autor aponta a hipótese de um munícipe ter interesse na implantação de uma rodovia federal que passe pela sua região, mas que por não estar imposta ex lege, se não acontecer, nada pode exigir, não há prejuízo de direito, mas sim de fato;
2) Interesse legítimo – é o também denominado direito reflexo. Quando ocorre a violação de uma regra que, nos seus efeitos, atinge o direito do administrado;
3) Direito subjetivo – "quando na relação entre Administração e administrado a norma tutela exclusiva ou precipuamente o interesse privado". Exempli gratia, é o direito do servidor público que cumpriu os requisitos legais de se aposentar.
A desconformidade da ação estatal com as normas legais (ilegalidade objetiva) "poderá ou não ferir um interesse juridicamente protegido" [52]. Deste modo, como conclui o citado autor (op. et loc. cit.), "nem toda ilegalidade objetiva resultará numa ilegalidade subjetiva". Mas há de se lembrar que todo ato está submetido ao princípio da moralidade e, portanto, se não for razoável, proporcional ou obediente aos princípios que orientam o ordenamento, será imoral e sujeita ao crivo jurisdicional.
Com relação à legitimidade, ela não pode ser concebida no sentido geral que é dado pelos positivistas, como algo meta-jurídico que não pode ser cogitado pelos juristas. Nessa corrente positivista, podem ser enquadradas as teorias de Kelsen, Bobbio e Hart, porém, não se pode categoricamente afirmar que os positivistas desconhecem uma diferença entre legitimidade e legalidade, apenas retiram do próprio conceito de legalidade o de legitimidade.
Entende-se por Legalidade um atributo e um requisito do poder, daí dizer-se que um poder é legal ou age legalmente ou tem o timbre da legalidade quando é exercido no âmbito ou de conformidade com leis estabelecidas ou pelo menos aceitas [...] Costuma-se falar em Legalidade quando se trata do exercício do poder e em legitimidade quando se trata de sua qualidade legal: o poder legítimo é um poder cuja titulação se encontra alicerçada juridicamente [53].
Identifica-se em Bobbio um posicionamento positivista clássico: o poder é legítimo porque está na Lei. Mas se é o poder que cria a lei positiva, como decorrer a legitimidade do poder da lei? Não se estaria a criar autopoiéticamente a legitimidade normativa? O problema surge quando se faz a seguinte questão: e se o poder, que cria o Direito, não for legítimo? Assim, fica evidente que Bobbio não considerou a diferença entre legitimidade para ser poder (A) e legitimidade como poder (B).
A primeira se refere ao momento em que o poder não está estabelecido e a Segunda – a que Bobbio usa – quando ele já está estabelecido. A legitimidade de "A" não pode ser a mesma do que a de "B". Pois se na "B", Bobbio poderia alegar que a legitimidade vem da lei, por si criada por um poder legítimo, em "A" isto não pode acontecer pelo simples fato de ainda não haver lei. Desta forma, o que Bobbio teria dificuldades em aceitar, a legitimidade só pode resultar de uma fonte: a justiça [54].
Assume-se a posição, portanto, de que a legitimidade é a adequação da lei a princípios de justiça que permitam a realização de todas as formas de vida respeitáveis, sendo a legalidade a positivação desses preceitos de justiça, de tal forma que se envolva a justiça numa cápsula de segurança jurídica. Como afirma Dworkin:
O Direito é um empreendimento político, cuja finalidade geral, se é que tem alguma, é coordenar o esforço social e individual, ou resolver disputas sociais e individuais, ou assegurar a justiça entre os cidadãos e entre eles e seu governo, ou alguma combinação dessas alternativas [55].