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Fraude eletrônica nas eleições

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01/09/2000 às 00:00
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A fraude é possível e o mais recente exemplo disso é o que está acontecendo no Peru. Mês passado Fujimori, com 49,9% dos votos apurados, estava quase ganhando a eleição presidencial no primeiro turno apesar das reiteradas denúncias de fraude feitas pela Oposição. Quando os Estados Unidos e países da Europa se somaram ao coro dos insatisfeitos, inexplicavelmente, votos sumiram, mapas desapareceram e a vitória certa de Fujimori virou disputa de segundo turno. E a crise continua porque o segundo colocado, com o apoio da comissão designada pela OEA para fiscalizar o pleito, exige que o software da totalização seja auditado – e para isto é preciso adiar a eleição. O impasse está criado.

Aqui no Brasil, em 1989, o Partido Democrático Trabalhista solicitou ao TSE, na época presidido pelo Ministro Francisco Rezek, que fosse feita uma auditoria internacional no programa de totalização dos votos. O TSE se recusou, mandou arquivar o processo, Lula ultrapassou Brizola por menos de 500 mil votos, no primeiro turno, e perdeu o segundo turno para Collor de Melo – candidato das elites.

Em se tratando de informática, todos os procedimentos precisam ser checados e conferidos por auditores externos para que não haja dúvidas.

Amílcar Brunazo é bastante direto: "Chegou a hora do Brasil discutir a política de segurança do voto eletrônico, sob pena de deixarmos para nossos filhos um arremedo de democracia, onde o eleitor jamais saberá em quem votou e a Oposição mais terá condições de conferir os votos".

"O povo não será ludibriado na sua vontade e não há perigo algum de que alguém possa manipular o voto eletrônico", com esta frase, pronunciada agora no último dia 7 de maio na sua cidade natal, Lavras do Sul, no interior do Rio Grande do Sul, o presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Néri da Silveira, resumiu as vantagens da informatização do voto no Brasil. Néri presidiu a singela cerimônia realizada na 6ª. seção eleitoral de Lavras do Sul ao final do teste onde 420 dos 6.762 eleitores da cidade usaram a urna eletrônica pela primeira vez, numa eleição simulada. Lavras é uma das milhares de pequenas cidades brasileiras onde as urnas eletrônicas, em outubro próximo, substituirão definitivamente as cédulas de papel. O TSE promoveu um teste semelhante em Sirinhaém, no interior de Pernambuco, e fará outro em Oiapoque, no extremo Norte do Brasil.

Na noite anterior, empenhado no que chamou de "cruzada cívica pelo voto livre e pela eleição de homens honestos", Néri da Silveira fizera palestra para os advogados da região pregando as vantagens da urna eletrônica. Na ocasião, afirmou: "Não vai trabalhar para o povo o candidato que gasta mais na campanha do que receberá de subsídios, se for eleito. Esse vai servir a grupos e a outros interesses, não a quem lhe deu o voto". No dia 20 de maio último, após visitar os estúdios onde será rodada a novela que o TSE começa a exibir a partir do próximo dia 31 de julho sobre as dúvidas dos eleitores no uso da urna eletrônica, Néri da Silveira assegurou que a Justiça Eleitoral "agirá com rigor para combater o uso da máquina administrativa e o abuso do poder político nas eleições municipais deste ano". Néri da Silveira é a mesma pessoa que, na véspera da eleição presidencial de 98, declarou publicamente o seu apoio à reeleição de Fernando Henrique Cardoso – embora devesse ficar neutro pelo fato de ocupar a presidência do TSE.

Naquela ocasião os seguidores da chapa Lula-Brizola lembraram, com a declaração de Néri, a polêmica atitude do então presidente do TSE Francisco Rezek que, depois de comandar e conduzir todo o processo eleitoral que levou Fernando Collor de Melo à Presidência da República em 1989, afastou-se do TSE e tornou-se Ministro das Relações Exteriores do recém eleito governo. E que antes do término deste, no mar de denúncias de corrupção capitaneadas por PC Rodrigues, estrategicamente se retirou do Ministério e, caso inédito no Brasil, tornou-se novamente ministro do Supremo Tribunal Federal (STF).

Em 1996, quando as primeiras urnas eletrônicas foram usadas no país, para quebrar eventuais resistências, o TSE também fez uma campanha nacional de esclarecimento como a de agora. Naquela ocasião destacou principalmente que as urnas eram seguras e evitavam fraudes, além de ensinar a usá-las. A mídia repassou esse mote – as urnas são 100% seguras – sem qualquer senso crítico e ele pegou. Mas já em 1996, pela Internet, uns poucos começaram a alertar que ela, da forma como estava, possuía falhas que permitiam novos tipos de fraudes bem mais graves que as tradicionais. A posição do TSE sempre foi olímpica, evitando polêmicas. A urna é segura e pronto.

Na prática o voto eletrônico foi regulamentado, desenvolvido, implantado e controlado pelo próprio TSE que, a este respeito, assumiu funções legislativas, executivas e judiciárias. Toda a legislação eleitoral está reunida na Lei 4.737, de 1965, também conhecida como Código Eleitoral Brasileiro. Por ter sido elaborado em 1965, o código obviamente não trata do voto eletrônico, embora o seu artigo 152 deixe a porta aberta para a utilização futura de "máquinas de votar, mediante a regulamentação do TSE". O voto eletrônico é regulamentado por outra lei, a Lei. 9.504 de 1997, especificamente por seis dos seus 107 artigos. Há grande discrepância entre a legislação do voto tradicional – subdividida em 383 artigos descendo-se a detalhes como a cor da caneta dos escrutinadores e a distância mínima entre estes e os fiscais – o voto eletrônico tem a apuração, por exemplo, regulada por apenas 2 artigos da Lei 9.504, de 1997. Este pouco detalhamento é que permitiu que o TSE criasse uma máquina de votar que eliminou a possibilidade de auditagem e conferência da apuração.

Enquanto o Código Eleitoral estabelece o direito à conferência da apuração no voto tradicional, a Lei 9.504 é omissa a este respeito em relação ao voto eletrônico. Por isso mesmo, quem quiser contestar algum aspecto do voto eletrônico tem que recorrer aos juízes do TSE pedindo que eles julguem seus próprios atos, baseados em resoluções e portarias escritas por eles mesmos.

A resolução 20.103/98, por exemplo, discorre sobre a apresentação dos programas para análise de auditores indicados pelos partidos políticos; e a 20.105/98, por sua vez, regula os testes de certificação das urnas preparadas para funcionamento. A 20.105/98 é absolutamente vaga ao dizer que os fiscais dos partidos políticos fiscalizarão "a carga das urnas eletrônicas e poderão conferir, por amostragem, até 3% das máquinas". Além de não explicar a razão deste número mágico de 3%, quando o total de urnas a serem empregados este ano, por exemplo, é de 354 mil; o conteúdo da urna escolhida para teste pelos fiscais é alterado com a carga de um programa específico para teste e, logo depois, volta a ser carregado com o programa real de votação. Já a resolução 20.103/98, garante que os partidos terão ‘garantido o conhecimento dos programas de computador a serem utilizados". O TSE sempre se negou a apresentar o código completo dos programas usados na urna eletrônica, alegando razões de segurança.


Paulo César Bhering Camarão, assessor de informática do TSE, o homem que concentra em suas mãos todas as informações sobre a urna eletrônica brasileira, em palestra na OAB de São Paulo no dia 8 de março último, falando sobre a "total transparência aos partidos" que o TSE oferece, caiu em contradição ao afirmar que os fiscais partidários em acesso a tudo, "menos ao bloco de segurança" dos programas da urna. Disse também que a grande preocupação do TSE nas eleições municipais deste ano "é aumentar a transparência para os partidos" tanto do software da urna, quanto o da totalização dos votos. Num outro de seus raros contatos com a mídia, numa entrevista para a Rádio CBN no dia 16 de setembro do ano passado, Camarão garantiu a Heródoto Barbeiro que a urna era inviolável e que o TSE estava sempre pronto a receber qualquer cidadão, qualquer representante de partido, para a qualquer momento verificar a segurança dos programas. Na prática o TSE nunca permitiu uma auditoria real durante a votação, segundo Amílcar Brunazo, "conhecer um programa qualquer antes de ser carregado ou depois de utilizado não tem o menor fundamento técnico como método de segurança de dados". Outro problema é que o prazo de cinco dias para validação do software é insuficiente – sendo a recente eleição peruana o melhor exemplo disto: o candidato da Oposição se recusou a concorrer porque Fujimori queria que o programa de totalização, sob suspeita, fosse validado antes do prazo que os técnicos – inclusive os da OEA – consideraram que fosse o necessário para validar o programa peruano de totalização. Sem a garantia de um programa honesto, Cholo preferiu não concorrer – para não validar a eleição de Fujimori para um terceiro mandato presidencial.

Depois de passar anos e anos argumentando que "as urnas eletrônicas eliminam totalmente as fraudes", Paulo César Camarão admitiu, na "Folha de São Paulo" de 23/09/98, que "quem for tentar (fraudar a urna) terá que subornar pelo menos uns 30" dentro do TSE. Fernando Koch, um dos integrantes do Fórum do Voto Eletrônico que foi funcionário do TRE no período 1996-1998, quando teve acesso a informações internas do desenvolvimento do projeto urna eletrônica e que hoje trabalha para as Nações Unidas, considerou absurda esta declaração de Camarão. "Em 1996 todo o desenvolvimento das urnas eletrônicas ficou a cargo de poucos menos de 10 pessoas contratadas na época pelo INPE que nem funcionários da Justiça Eleitoral eram, portanto não estavam sujeitos aos preceitos da confidencialidade".

Koch, segundo ele mesmo afirma, teve contado direto e prolongado com o desenvolvimento das urnas desde o início, mas fez questão de deixar claro que nenhum funcionário dos TREs da época, nem mesmo ele, teve acesso direto ou abertura para fazer sugestões no desenvolvimento da urna eletrônica, trabalho que definiu como "fechado em razão do cronograma sempre apertado e do sigilo". Mas ele tem e teve acesso a alguns documentos ´internos´ do TSE porque, pela ONU, participa do projeto de instalar máquinas de votar em outros países – segundo explicou aos integrantes do Fórum do Voto Eletrônico.

Koch também conhece bem a sistemática de licitações do TSE que está sendo julgado pelo Tribunal de Contas da União (TCU) por malversação de verbas para a aquisição de urnas eletrônicas. Sobre esta questão Koch alertou: "É sabido dentro dos TREs que a urna custa muito mais do que o valor das unidades compradas a cada eleição (neste ano de 2.000, algo em torno de R$ 168 milhões), devido a custos extras que englobam o armazenamento delas no período em que não são utilizadas, além dos sistemas de computação extra necessários para processamento dos disquetes, treinamento, equipe operacional, etc.

Por exemplo, apesar do custo de R$ 168 milhões das urnas novas compradas para as eleições municipais deste ano, o valor total estimado de gastos do TSE com elas é de R$ 249 milhões, não estando incluído aí o custo do armazenamento das urnas usadas em 96 e 98, que também serão usadas em outubro próximo. Segundo Koch, o custo final do uso das urnas eletrônicas na primeira eleição brasileira totalmente informatizada, hoje, é estimado em três vezes o gasto com a aquisição das 354 mil máquinas que serão usadas - cerca de R$ 1 bilhão, algo em torno de US$ 500 milhões a grosso modo.

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Uma mistura perigosíssima de pouca transparência e muito dinheiro que gerou acirrada disputa de contratos entre as empresas que fabricam softwares e urnas (entre elas a HP, IBM, Itautec, Procomp, SID e Unisys); que foi parar neste início de junho na internet, no site http://www.ue2000.com.br, e no plenário do TCU que julga por esses dias denúncias de malversação de verbas do TSE – na antevéspera da eleição.

Ainda de acordo com Koch, desde o começo do projeto urna eletrônica a questão da constitucionalidade (ou cumprimento das normas), além da segurança, eram itens muito questionados. Vários pontos de segurança foram ponderados "e o projeto estava por ser desaprovado, mas muitas ´forças´ a favor, quase todas de ordem político/econômicas", forçaram a aprovação e o início das operações da urna eletrônica já em 1996. Com a autoridade de quem teve acesso aos documentos internos do TSE, Koch afirmou aos integrantes do Fórum que até hoje não existe certeza do ´sigilo absoluto do voto´ como determina a Constituição". E todos no TSE sabem disto "independente de software/hardware, entrada de código, do eleitor ou não".

Ele citou um exemplo: inicia-se a votação em determinada seção, cinco eleitores usam a máquina e ela quebra, por qualquer motivo. Passa-se então para a votação manual e aqueles cinco votos são incluídos no Boletim de Urna (BU) como votos-papel. Sabe-se quem foram os cinco que votaram tanto pela entrada do número do eleitor na urna, como por exclusão, já que foram os cinco que não que votaram em papel. Se os cinco votarem no mesmo candidato, o voto deles é conhecido, embora a Constituição em vigor garanta que o voto é secreto e inviolável para todos os brasileiros.

Koch garante que nas eleições de 96, que acompanhou, houve muitos problemas no sistema de criptografia dos dados totalizados pelas urnas eletrônicas, tanto que no momento da totalização – sempre feita em locais pré-determinados pelos TREs/TSE - "o sistema foi abandonado e alguma ´forma alternativa´ de coleta de votos foi estabelecida durante a totalização, sem que fossem abertos detalhes sobre o procedimento, como sempre acontece". Comentário final de Koch, sobre este ponto: "Ficou estranha" a totalização...

Na opinião de Koch, a forma de evitar fraudes na urna eletrônica é promover uma auditoria a fundo no programa da urna. Ponto-de-vista que Amílcar Brunazo Filho, moderador do Fórum, discorda: "Não creio ser possível garantir por melhor auditoria que seja feita, que as 350.000 urnas estarão com o software correto. Parte dos programas (sistema operacional e complementos) são carregados na fábrica e parte nas seções eleitorais. Não existe partido político com capacidade de mandar fiscais para todas as cidades do Brasil na semana anterior a votação, quando as urnas estão sendo carregadas e lacradas. Também é totalmente furada a idéia de fazer auditoria depois da eleição, existem programas que se auto-apagam da memória depois de executados, não deixando rastros de sua existência. No caso do voto eletrônico só tem sentido auditoria ANTES e DURANTE a votação. Depois, não serve".

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Sobre o autor
Osvaldo Maneschy

jornalista no Rio de Janeiro (RJ)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MANESCHY, Osvaldo. Fraude eletrônica nas eleições. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 45, 1 set. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1552. Acesso em: 28 mar. 2024.

Mais informações

Uma versão editada deste artigo foi o destaque da capa da revista Cadernos do Terceiro Mundo, junho de 2000.

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