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Lei 9714/98: inaplicabilidade aos crimes militares

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Com o advento da Lei n. 9.714/98, ampliando as espécies e possibilidades de sanções substitutivas previstas no artigo 44, do Código Penal (em prosseguimento à reforma penal com introdução de novas medidas sancionatórias benéficas previstas na já longínqua Exposição de Motivos à Lei n. 7.209/84), agitou-se a possibilidade de sua aplicação aos crimes militares assim definidos no Código Penal Militar.

Sabe-se que na atividade de aplicação da lei penal o Poder Judiciário deve efetivar os princípios e as regras visando a realização do Direito e a prática da Justiça.

De início, deve ser afastado qualquer cotejo entre a Lei n. 9.099/95 - que introduziu os institutos despenalizadores conhecidos -, com a examinada (Lei n. 9.714/98), porquanto esta contempla novas redações e ampliação das possibilidades de substituição de penas privativas de liberdade por restritivas de direitos (introduzindo também o denominado sursis humanitário), com a finalidade descarcerizadora (para utilizar expressão do grande CEZAR ROBERTO BITENCOURT [1]), cujas espécies já estavam inseridas no Código Penal, antes mesmo da edição da Lei n. 9.714/98.

O Direito Penal Militar, mesmo servindo como complemento do direito comum, é especial porque apresenta um corpo autônomo de princípios, com espírito e diretrizes próprias.

A doutrina bem diferencia o Direito Penal comum do Direito Penal especial porque, enquanto o primeiro se aplica a todos os cidadãos, o segundo tem o seu campo de incidência adstrito a uma classe restrita de cidadãos, conforme sua particular qualidade, lembrando DAMÁSIO E. DE JESUS que "o critério para essa diversificação está no órgão encarregado de aplicar o direito objetivo. Como escreve JOSÉ FREDERICO MARQUES, ´direito comum e direito especial dentro de nosso sistema político, são categorias que se diversificam em razão do órgão que deve aplicá-los jurisdicionalmente. Este é o melhor critério para uma distinção precisa, pelo menos no que tange ao direito penal; se a norma penal objetiva somente se aplica através de órgãos especiais, constitucionalmente previstos, tal norma agendi tem caráter especial, se a sua aplicação não demanda jurisdição própria, mas se realiza através da justiça comum, sua qualificação será a de norma comum. Atendendo a esse critério, teremos um direito penal comum e um direito penal militar´.

"No Brasil, o Direito Penal Militar pode ser indicado como Direito Penal especial, pois a sua aplicação se realiza por meio da Justiça Penal Militar"(2).

A propósito vale também lembrar a lição de JORGE ALBERTO ROMEIRO:

"Como esclarece Pietro Vico, a lei penal militar ´seria excepcional se tomasse para seu fundamento jurídico exclusivamente a qualidade militar da pessoa do culpado, ou se a lesão de deveres perfeitamente idênticos e comum aos militares e a todos os outros cidadãos cominasse uma sanção diversa, ou também se estendesse sua eficácia além do quanto pudesse exigir a exata observância dos deveres militares. A lei penal militar, ao contrário, mira diretamente a incriminação de ofensas a especiais deveres, e tem em consideração a qualidade da pessoa enquanto ela se torna culpada da violação de tais deveres; nem se afasta do direito comum senão somente quando as disposições deste são incompatíveis com a índole dos crimes militares. Assim, a lei penal militar, embora formando o direito próprio e particular dos militares, é sempre, por outro lado, uma lei especial em confronto com a lei penal geral´.

"O direito penal militar é uma ´especialização, um complemento do direito comum, apresentando um corpo autônomo de princípios, com espírito e diretrizes próprias´" (3).

Além disso, o Código Penal Militar tutela outros bens e interesses juridicamente relevantes que não são abrangidos pela lei penal comum, pois nesta não se constituem em fatos típicos e antijurídicos, como por exemplo os crimes de cobardia (arts. 363 a 365), abandono de posto (art. 390), deserção e falta de apresentação (art. 391), automutilação (art. 403), dentre outros; isto porque, quando se fala no ordenamento jurídico militar, a lei penal militar visa primeiramente aos interesses do Estado e das instituições militares.

Nesse passo, repita-se com a ensinança de JORGE ALBERTO ROMEIRO, o direito penal militar é especial porque suas normas, ao contrário daquelas do direito penal comum — destinadas a todos os cidadãos brasileiros —, aplicam-se exclusivamente às pessoas sujeitas ao regramento militar, com deveres especiais para com o Estado, cujo o sistema disciplinar deve ser mais rígido, com maiores exigências de observância das leis, dos regulamentos, das ordens, da disciplina e da hierarquia, indispensáveis à defesa armada e à existência da instituições do mesmo Estado.

Um Código Penal geral não deve tratar de todos os crimes, havendo "os de feição toda própria, apresentando peculiaridades importantes, não apenas quanto à ação, mas também relativamente a seus efeitos ou conseqüências, à personalidade do delinqüente, etc. Em princípio, p. ex., ninguém colocará no mesmo nível o autor de um delito político - o idealista que sonha melhores dias para sua pátria - e o autor de estupro ou latrocínio.

"Crimes existem também que reclamam critérios outros que não os do Código Penal (subordinando-se a razões de Estado, de política criminal etc.) e, conseqüentemente, não se conciliando com a rigidez e inflexibilidade de suas normas e princípios" (4).

Bem por isto, o Código Penal comum em vigor desde 1º.01.42 (Decreto-lei n. 2.848, de 7-12-40), em sua parte especial (em artigo não muito invocado), excluiu expressamente do seu campo de incidência a legislação especial sobre os "crimes contra a existência, a segurança e a integridade do Estado e contra a guarda e o emprego da economia popular, os crimes de imprensa e os de falência, os de responsabilidade do Presidente da República e dos Governadores ou Interventores, e os crimes militares" (CP, art. 360), subordinando-os, no entanto, às suas regras gerais somente naquilo "não colidam com as expressamente inscritas na legislação penal especial (art. 12 do CP)" (5).

O art. 12 do Código Penal não suscita qualquer dúvida e a doutrina tem assentado, com firmeza:

"A essas leis, a menos que disponham de forma diferente, aplicam-se as regras gerais do Código Penal, não apenas as contidas em sua Parte Geral, como também as que se encontram na Parte Especial, como a que conceitua funcionário público, por exemplo (art. 327)" (6).

Ora, regras gerais do Código Penal são as normas não incriminadoras, permissivas ou complementares, previstas na Parte Geral ou Especial. Em regra, estão contidas na Parte Geral, mas também podem estar descritas na Especial (ex: conceito de funcionário público - art. 327). Por outro lado, como afirma DAMÁSIO DE JESUS "a legislação especial, conjunto de leis extravagantes, também pode conter regras gerais diversas das do Código. Neste caso, prevalecem aquelas. Em caso contrário, quando a lei especial não ditar regras gerais a respeito dos fatos que descreve, serão aplicadas as do Código" (ob. cit., p. 127).

Pois bem. Especificamente quanto às penas decorrentes da prática de crimes, não custa lembrar que a Carta Magna elenca no art. 5º, inc. XLVI, o rol daquelas que a lei individualizará, dentre outras: a) privação ou restrição da liberdade; b) perda de bens; c) multa; d) prestação social alternativa; e) suspensão ou interdição de direitos.

O Código Penal, por sua vez, como lei geral, em simetria com o comando constitucional, dividiu-as em privativas de liberdade, restritivas de direitos, e multa (art. 32), e regulou sua forma de imposição e substituição, ditando também as regras básicas pelas quais deverão ser executadas (a especificação da execução está na Lei de Execução Penal), destacando-se que são reprimendas distintas, possuindo, cada qual, características próprias e diferenciadas entre si.

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A seu turno, o Código Penal Militar classifica as penas em principais (art. 55): a) morte (previsão constitucional no art. 5º, XLVII); b) reclusão; c) detenção; d) prisão; e) impedimento; f) suspensão do exercício do posto, graduação, cargo ou função; g) reforma, e acessórias (art. 98): I) perda de posto e patente; II) indignidade para o oficialato; III) incompatibilidade com o oficialato; IV) exclusão das forças armadas; V) perda de função pública, ainda que eletiva; VI) inabilitação para o exercício da função pública e VII) suspensão do pátrio poder, tutela ou curatela.

O Código Penal Militar não prevê qualquer pena como substitutiva de pena privativa de liberdade ao passo que, no Código Penal comum, está expressamente relacionada (derivada do comando constitucional), a substituição de pena privativa de liberdade por restritivas de direitos.

Assim, e sendo claro que a substituição (contida na parte geral do Código Penal comum) somente será aplicável aos fatos incriminados na legislação especial ou extravagante, se estas não regularem a matéria dispondo de forma diversa (art. 12, do CP), e como o Código Penal Militar tem comando específico sem previsão das denominadas "penas alternativas", resulta na sua inaplicabilidade aos crimes militares, que têm disciplina própria em lei especial que não a contempla.

Concluindo: a Lei n. 9.714/98 que alterou dispositivos do Código Penal, e trata da substituição das penas privativas de liberdade por restritivas de direito, não pode ser aplicada aos crimes militares (sejam próprios ou impróprios) seja porque incompatível com a sua índole, mas também porque o Código Penal Militar, como lei penal especial, regula a matéria de modo diverso em face de sua especialidade, em a qual não se encontra previsão legal de pena substitutiva (salvo acessórias), prevalecendo como legislação penal especial sobre as regras de direito penal comum.

Este entendimento foi firmado pela Segunda Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, no Habeas Corpus n. 99.012542-4, da Capital, em julgamento realizado no dia 17.08.99.


BIBLIOGRAFIA

1. BITENCOURT, Cezar Roberto. Novas Penas Alternativas, SP: Saraiva, 1991, p. 104).

2. JESUS, Damásio E. de. Direito Penal, 13ª ed., SP: Saraiva, 1988, v. 1, p. 08).

3. ROMEIRO, Jorge Alberto. Curso de Direito Penal Militar, SP: Saraiva, 1994, p. 05).

4. FRANCO, Alberto Silva et al. Código Penal e sua interpretação jurisprudencial, 6ª ed., SP: RT, 1997, v. 1, tomo II, p. 3.935).

5. MIRABETE, Júlio Fabbrini. Código Penal Interpretado, SP: Atlas, 1999, p. 1942).

6. BASTOS JÚNIOR, Edmundo José de. Código Penal em Exemplos Práticos, Florianópolis: Ed. Terceiro Milênio, 1998, p. 30).

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Sobre o autor
Nilton João de Macedo Machado

juiz de Direito substituto de 2º grau em Santa Catarina, professor da Escola Superior da Magistratura Federal de Santa Catarina e da UNIVALI

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MACHADO, Nilton João Macedo. Lei 9714/98: inaplicabilidade aos crimes militares. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 4, n. 35, 1 out. 1999. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1582. Acesso em: 23 dez. 2024.

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