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Prática policial: um caminho para a modernidade legal

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01/01/2000 às 01:00
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Uma tese posta à prova do mundo real

São José do Rio Preto, cidade do interior do Estado, localizada na região noroeste, hoje com uma população de 323.418 habitantes (fonte: segundo o Censo 96 / IBGE). Servida por 9 hospitais, 19 postos de saúde, 236 clínicas particulares, 8 faculdades, uma universidade (câmpus da UNESP), 126 escolas, 29 creches, 2 shoppings, 5 cinemas, 4 teatros, 6 grandes clubes, 26 hotéis, 4 emissoras de TV, 2 jornais diários e 9 emissoras de rádio. Com uma densidade demográfica de 764,8 habitantes por km2, a população se concentra quase que em sua totalidade na área urbana, que conta 310.816 habitantes, ou seja, 96% da população, enquanto que a área rural é habitada por 4% da população, 12.552 habitantes. Desse total, temos 196.351 eleitores, representando 61% da população. O PIB estimado em 1997 fora de R$3.000.000.000 (fonte: Conjuntura Econômica - http://www.sjriopreto.org.br). Foi ela o palco experimental da tese.

A despeito de ser uma cidade cujo perfil criminal ainda não é marcado pelos ilícitos com emprego de violência, a sua condição econômica privilegiada vem transformando-a de pólo atrativo nacional. Com um comércio pujante e uma indústria em pleno desenvolvimento, os movimentos migratórios vem colocando-a como palco de crimes mais graves. Os faméricos ou simples furtos, vem dando espaço a roubos onde o cidadão comum, empresas e instituições financeiras são as vítimas. Neste tocante, os levantamentos estatísticos criminais mostravam, desde o início do ano de 1999, uma taxa média mensal de evolução criminal na ordem de 14,11% em furtos e 9,5% em roubos (fonte: Polícia Militar).

No dia 24 de julho de 1999, para romper com o "Ciclo de Ascensão Criminal", estudos jurídicos e estatísticos sustentaram o comando local da Polícia Militar na adoção desta nossa tese como realidade experimental. Com um período de vacância de 30 dias (24.06 - 24.07.99) a tese foi levada ao conhecimento das autoridades envolvidas (Poder Judiciário, Ministério Público, Polícia Civil, Núcleo de Perícias Criminalísticas e Ordem dos Advogados do Brasil (Subsecção local) e, em seguida à comunidade por meio da imprensa, de tal sorte que se passou a operar na seguinte rotina:

  1. casos atendidos de que exsurja flagrância delitiva, como resíduo da atividade de polícia administrativa e de preservação da ordem pública, preso o acusado são levados pelo Condutor imediata e pessoalmente à polícia judiciária para que cumpra seu papel de autuação e apuração da infração penal;
  2. pessoas presas em cumprimento a mandados judiciais de igual forma são conduzidas à polícia judiciária e, por fim;
  3. casos em que não se verifique flagrância delitiva, o registro é feito pelo policial militar em seu Boletim de Ocorrência, encerrada a ocorrência no loccus delicti, enviando-se cópia de tal registro à polícia judiciária por via administrativa.

Como de se esperar, os índices que progrediam geometricamente se reduziram de maneira espetacular, especialmente nos itens "roubos e furtos" que seguem o ditado popular: A ocasião faz o ladrão. Sem pestanejar, podemos concluir pela veracidade da mencionada vox populi vox dei, na medida em que a ausência do Estado-social leva à perda da capacidade de subsistência e à dilapidação da dignidade humana, com conseqüente variação dos valores éticos, morais e sociais criando terreno fértil à tendência criminal. Para buscar a contenção destes efeitos resta o Estado-polícia que, se também fora do cenário, deixa à sorte do destino a tranqüilidade pública rumo ao caos social.

Os passos para a quebra de paradigmas foram cautelosos, não pela singeleza, acertada base jurídica e forte apelo social da proposta, mas especialmente por representar uma delimitação de atribuições diversa da sedimentada cultura, estagnada num modelo onde a autoridade é absoluta e de nada presta contas de eficiência e legalidade à sociedade.

Nos dias de vacatio não houve oposição à tese, mais tarde porém surgiram aqueles que postulavam por sua ilegalidade buscando apoio no Judiciário e Ministério Público da comarca. O Juízo Corregedor e das Execuções, instado a falar, não se imiscuiu vendo, na tese e sua operacionalidade, nada mais que uma medida administrativa diversa da até então reinante, baseada em critérios de oportunidade e conveniência do administrador à qual não se estenderia sua competência judicante. Por raciocínio dedutivo, considerando-se que a oportunidade e conveniência, atributos típicos do ato administrativo e que garantem ao Executivo sua independência, não elidem o juízo de legalidade, é conclusão lógica que a tese não a fere sendo, portanto, legal.

Surge, mais tarde, uma representação à Secretaria de Segurança Pública, postulando contrariamente à tese, com supedâneo na ilação que somente o Delegado de Polícia, técnico em Direito, tem habilitação para decidir se há ou não flagrância num caso concreto e, ainda, que a Secretaria de Segurança Pública do Estado, pela Resolução nº 353, de 27.11.95 ("Regula as ações das polícias civil e militar diante do advento dos juízados especiais criminais") estaria sendo descumprida, porquanto obrigaria a apresentação de toda e qualquer ocorrência "à autoridade policial da delegacia de polícia da respectiva circunscrição policial ".

Pela digressão exegética a que submetemos o leitor, vê-se claramente que, diante do inevitável quadro do sistema de segurança pública imposto pela lei, política e história brasileiras, buscamos desvendar as reais atribuições de cada órgão policial dos Estados, como forma de concretizar o caráter programático dos constitucionais princípios de cidadania, dignidade e direitos humanos, trazendo-o para o mundo real de um Estado que reluta em deixar o autoritarismo.

À medida em que se as autoridades públicas se agarrem à paradigmas de um Estado totalitário, queiram verter até as normas positivadas e de eficácia plena aos cânones consuetudinários de um passado de opressão, simplesmente estão travestindo-se das "togas" autoritárias por hipócritas e suaves discursos em defesa do Estado democrático de direito e busca do bem comum.

Diante do advento da Lei que instituiu os Juizados Especiais Criminais (Lei nº 9099/95), se alterou substancialmente a rotina pré-processual, dando um golpe certeiro no procedimento inquisitivo - o inquérito policial - reduzindo à figura do "Termo Circunstanciado" ou "Termo de Ocorrência". Veja-se que os defensores do inquérito policial, desde o advento da Constituição de 1988, que criou o permissivo de simplificação da persecução penal, sempre se posicionaram contra a regulamentação da matéria pela manutenção do modelo até então reinante. Em que pesem as forças contrárias, dos inaugurais projetos de lei datados de 1989, de iniciativa dos então deputados federais Michel Temer e Nelson Jobim, veio o substitutivo que deu contornos precisos à lei.

A partir disto, em âmbito estadual (SP), se digladiavam autoridades policiais civis e militares para avocar competência de lavratura do neonato "Termo Circunstanciado de Ocorrência". Sem sobra de dúvidas a atividade de polícia judiciária é, nos termos da Constituição Federal, reservada às Polícias Civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, bacharéis em direito e, enquanto a sociedade e o Estado suportarem a estrutura pesada de superposição de atribuições e esforços da dicotomia policial, há que se respeitar tal limite. Ocorre que os princípios que nortearam o constituinte, e mais tarde o legislador infra-constitucional, na regulamentação da Lei 9099/95, consignaram no Termo Circunstanciado de Ocorrência não um ato de polícia judiciária, mas um mero relatório administrativo de comunicação, ao Judiciário e ao dominus litis, uma notitia criminis, mormente porquanto a simplicidade, oralidade, informalidade e celeridade são o espírito da Lei. Assim fala a comunidade jurídica.

          Data maxima venia, o erro da mencionada lei foi apor em seu texto a expressão "autoridade policial" (artigo 69) que deu azo a confundi-la com aquela prevista no Código de Processo Penal. Indubitavelmente a autoridade policial a que se refere o Código de Processo Penal é aquela que preside o inquérito policial, que conduz as atividades de polícia judiciária: o delegado de polícia. Com esta mesma certeza, não se aplica tal entendimento àquela autoridade mencionada pela Lei 9099/95, mas há margem para ilações contrárias.

Assim surgiu, no Estado de São Paulo, por sua pasta de Segurança Pública, a malfadada resolução nº 353/95, para pôr termo à controvérsia interinstitucional, dando atribuição à polícia civil do Estado para elaboração do Termo Circunstanciado.

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Ocorre que a tese que ora apresentamos não traz, pela exposição de motivos aduzida, qualquer dúvida de a quem caiba a atividade de polícia judiciária, menos ainda a quem se atribua a competência para lavratura do Termo Circunstanciado de Ocorrência, nos termos da ordem jurídica vigente, seja por conta de atos normativos legislativos ou administrativos: tais encargos competem às polícias civis, dirigidas por seus delegados de polícia de carreira.

Apresentamos uma tese, com supedâneo legal, simplesmente de alteração da forma de cognição da notitia criminis às autoridades de polícia judiciária, para adequá-la à padrões de legalidade e respeito à cidadania e dignidade da pessoa humana, bem como ao dever de prestação eficiente do serviço de preservação da ordem pública.

Das 2.914 ocorrências atendidas em São José do Rio Preto, nos primeiros 60 dias de execução do projeto, 1.522 foram resolvidas no local e seus registros encaminhados administrativamente à polícia judiciária - aproximadamente, segundo estatísticas, 1.268 horas a mais patrulhadas em benefício do povo e em respeito à lei.

Ainda virá o dia em que o homem verá na autoridade um instrumento para servir à comunidade e não para se servir dela.


BIBLIOGRAFIA

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Sobre o autor
Azor Lopes da Silva Júnior

Doutorando em Sociologia (UNESP), Mestre em Direito (UNIFRAN), Professor de Direito Penal e Direito Constitucional.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA JÚNIOR, Azor Lopes. Prática policial: um caminho para a modernidade legal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 38, 1 jan. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1596. Acesso em: 21 dez. 2024.

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