V. Da inconstitucionalidade da lei municipal por ferimento aos artigos 6º, 182, § 2º, da Constituição Federal e 204, inciso III, da Carta Estadual:
Quando o consumidor paga, juntamente com o valor do lote adquirido, o valor correspondente às áreas verdes e às áreas institucionais, ele está fazendo sua parte para dar a destinação social da sua propriedade e para que seja possível a prática do esporte e do lazer pela coletividade. A Administração Pública Municipal, pelo contrário, quando possibilita a transferência dessas áreas para terceiro, na maioria das vezes de forma gratuita, acaba por tornar impossível o cumprimento do disposto nos artigos 6º e 182, § 2º, da Carta Magna e 204, inciso III, da Lei Maior estadual, que dispõem:
"Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição."
(....).
Art. 182 - (....).
§ 2º - A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor".
"Art. 204. O Estado, utilizando a rede oficial de ensino e em colaboração com entidades desportivas, garantirá, através de lei, a promoção, o estimulo, a orientação e o apoio à prática e à difusão da educação física e do desporto, formal e não-formal:
(....);
III - através da obrigatoriedade de reserva de áreas destinadas a praças e a campos de esporte nos projetos de urbanização e de unidades escolares e de desenvolvimento de programas de construção de áreas para a prática do esporte comunitário."
Vê-se assim que o Município que, por força do artigo 5º, XXII, da Constituição Federal, deveria proteger consumidor, acaba por prejudicá-lo. Primeiro dispõe que determinada extensão de terra será destinada à coletividade adquirente dos lotes, como área verde e área de lazer, prática de esporte, para, num segundo momento, após os consumidores-adquirentes terem pago por aquela área, dar destinação diversa daquela originariamente estabelecida, lesando, assim, o cidadão-consumidor em seu patrimônio e no seu direito de cidadão a ter o lazer, a saúde, a educação, o descanso, a circulação, pelo qual colaborou economicamente para ocorrer.
Com isso, a destinação social da propriedade urbana fica seriamente comprometida, ou melhor, fica anulada por desídia, conivência, omissão e prevaricação do Poder Público Municipal.
A lesão aqui não é só ao patrimônio individual, mas também do patrimônio ambiental, cultural, de lazer, de circulação, de saúde da coletividade como um todo.
Segundo os termos da contestação do Senhor Prefeito Municipal à ação civil pública (nº 97.0015498-0, em curso pela 1ª Vara de Fazenda Pública e de Registros Públicos desta Capital - cópia em anexo) proposta pelo Ministério Público Estadual em caso semelhante, ele assim vem agindo para resolver o problema dos pobres e dos sem tetos. Se ele está mesmo querendo usar a propriedade particular para ajudar os menos aquinhoados pela sorte, por que não os leva para casa dele ou desaproprie sua própria fazenda ou as fazendas de seus secretários ou, então, retire parte dos jardins existentes nos grandes quintais dos bairros nobres de Campo Grande? Fazer salamaleque com o chapéu alheio é muito fácil. Devem os homens públicos achar o caminho da legalidade para trilhar na resolução dos problemas sociais e não ficar pisando e repisando na Constituição e nas leis, como se eles fossem Senhores absolutos do mundo e as leis de nada valessem. Não existe outro caminho para o administrador Público senão o da legalidade. Se eles vislumbrarem uma via melhor do que a indicada pela norma jurídica, devem primeiro pugnar pela mudança da lei, para depois agirem como querem e não o contrário. Isso só será possível se eles tiverem argumentos fáticos, lógicos e jurídicos para convencerem o legislador estadual e federal de seu ponto de vista. Caso tenham, que o façam, mas se não tiverem devem agir na legalidade e não à sombra da lei, quais marginais desordeiros.
Assim exposta a questão, percebe-se que igualmente por esse motivo a combatida lei municipal é inconstitucional, não podendo sobreviver no mundo jurídico, Afinal, "A lei ou é constitucional ou não é lei. Lei inconstitucional é uma contradição em si(14)". É um aborto feito pelo Poder Legislativo que a aprova e pelo Poder Executivo que a sanciona.
VI. Da inconstitucionalidade da lei municipal por impossibilitar a construção de obra de infra-estrutura prevista em lei federal, inviabilizando, assim, o cumprimento dos dispostos no artigo 182 da Carta Maior e 213, 219, inciso II e 222, § 2º, incisos I, II, III e XXI da Constituição Estadual:
Há de se observar outrossim que muitas das áreas que o Poder Público Municipal recebeu autorização legal para desafetar (posto que desafetação não houve) são constituídas por terrenos que foram deixados pelo loteador e hipotecados ao Município para garantir a construção das obras de infra-estrutura, nos termos do item "A.4.2.2.II.e" da Lei Municipal nº 2.567, de 08 de dezembro de 1988, que trata do ordenamento de uso e de ocupação do solo do Município de Campo Grande. Ocorre que o Município não cobrou do loteador a feitura dessas obras nem ele próprio fez as obras pagas pelo consumidor adquirente, como seria de sua obrigação, nos termos do item "A.4.2.2.II.g" da Lei Municipal sobredita e do artigo 40, caput, da Lei Federal nº 6.766, de 19.12.79.
Dessa forma, a autorização para a alienação, doação, dação ou cessão de uso dessas áreas, sem a feitura imediata daquelas benfeitoria ou com a contemplação de garantias outras necessárias à sua execução, implica numa violação grave ao direito de todos os consumidores-adquirentes (ofensa ao direito coletivo), ao direito de toda coletividade e à postura urbanística da cidade (ofensa ao direito difuso). Aqui também, por culpa exclusiva das autoridades legislativas e executivas municipais, a função social da propriedade não é cumprida, com ofensa, de igual forma,ao parágrafo 2º do artigo 182 da Constituição da República.
A ofensa a Lei do Parcelamento do Solo Urbano, por culpa exclusiva do Legislador e do Administrador público municipal, torna inviável a política constitucional do desenvolvimento urbano, o bem estar dos habitantes da urbe e a função social da propriedade, com violação dos disposto no caput e nos parágrafos 1º e 2º do artigo 182 da Lei Maior, assim como dos artigos 213, 219, II e 222, § 2º, I, II, III e XXI da Constituição do Estado.
Para clarificação do ora exposto, transcreve-se aqui os citados dispositivos constitucionais:
"Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem- estar de seus habitantes.
§ 1º - O plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal, obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana.
§ 2º - A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor."
"Art. 213. A política urbana, a ser formulada e executada pelo Estado e pelos Municípios, terá como objetivos o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e a garantia do bem-estar de sua população.
Art. 219. O Estado e os Municípios, com a colaboração da sociedade, promoverão e executarão programas de interesse social, que visem prioritariamente:
(...)
II - à dotação de infra-estrutura básica e de equipamentos sociais, especialmente aqueles relacionados à educação e à saúde;
Art. 222. Toda pessoa tem direito a fruir de um ambiente físico e social livre dos fatores nocivos à saúde.
(...)
§ 2º Incumbe ainda ao Poder Público:
I - distribuir equilibradamente a urbanização em seu território, ordenando o espaço territorial de forma a constituir paisagens biologicamente equilibradas;
II - prevenir e controlar a poluição e seus efeitos;
III - criar e desenvolver reservas e parques naturais e de recreio, bem como classificar e proteger paisagens, locais de interesse da Arqueologia, de modo a garantir a conservação da natureza e a preservação dos valores culturais de interesse histórico, turístico e artístico;
(...)
XXI - preservar os valores estéticos indispensáveis à dignidade das aglomerações humanas."
O disposto no artigo 3º da lei municipal impugnada não é o suficiente para dela retirar a inconstitucionalidade que neste item lhe é irrogada, mesmo porque trata de situação totalmente diferente.
Duas iniciais de ações civis públicas, cujas cópias seguem em anexo - uma delas inclusive da lavra de V. Exa e datada de 26 de julho de 1991 e que até hoje não trouxe uma resposta útil aos consumidores, aos cidadãos e a coletividade lesada - demonstram com clareza quais as injustiças que neste campo têm-se cometido contra os cidadãos humildes (considerados pela própria lei objeto desta representação como "favelados"(15)) que não têm padrinhos políticos e vivem da boa vontade de governantes e administradores politiqueiros que gostam de alimentar as chagas populares, para que isso lhes resulte dividendos políticos nas urnas, alto prestígio diante dos grã-finos da "gran monde"(16) e olhares furtivos e admirados nos salões de festins. É coisa requintada! Só quem dorme em berços de ouro e tem palacetes cercados de bosques verdejantes e jardins floridos os pode apreciar de bom gosto. Não é algo para plebeu, mas para nobre mesmo.
O vício ora apontado leva também a necessidade da declaração de inconstitucionalidade da norma municipal analisada.
VII. Da legitimidade do Ministério Público para tomar as medidas cabíveis em relação à matéria ora tratada:
A legitimidade do Senhor Procurador-Geral de Justiça para propor a reclamada ação direta de inconstitucionalidade é inquestionável, já que resulta de mandamento constitucional. Isso é mais que legitimidade. É um dever cívico, patriótico mesmo.
O próprio Senhor Prefeito municipal ao contestar a ação civil pública nº 97.15498-0, que já foi citada acima e cuja cópia segue em anexo, deixou clara a legitimidade de V.Exa para propor Adin. com o objetivo de anulação de Lei Municipa. E o fez nos seguintes termos:
"(....), pretende o autor via ação civil pública anulação de Lei Municipal e proibição dos vereadores de votarem ou aprovarem leis referente ao assunto da demanda.
Todavia, a via eleita pelo autor não é a via adequada, haja visto que busca provimento jurisdicional no sentido de anular a lei em questão, o que produzirá efeitos erga omnes, conseqüentemente, a via adequada para discussão do caso em questão seria a AÇÃO DIREITA DE INCONSTITUCIONALIDADE, cuja ação o autor não tem legitimidade para propor, sendo de competência do Procurador-Geral de Justiça." (f. 391 dos autos da ação civil pública mencionada)
Tem também o Ministério Público Estadual, em relação aos desdobramentos e omissões que tiverem a lei municipal inconstitucional, inclusive responsabilidade por improbidade administrativa e indenização dos lesados, a legitimidade para propor a ação civil pública cabível. E é o que está sendo viabilizado, desde logo, nas áreas de atuação das Promotorias de Justiça do Meio Ambiente, Patrimônio Público, Consumidor e Habitação e Urbanismo, por meio da instauração de inquérito civil.
Neste último sentido, cabe a transcrição das lições insertas no Artigo "BENS PÚBLICOS DE LOTEAMENTOS E SUA PROTEÇÃO LEGAL", acima transcrito em parte, da autoria do preclaro Promotor de Justiça José Carlos de Freita, a respeito do tema. Embora trate de legitimidade para propor ação civil pública, tal estudo acaba, no presente caso, por demonstrar a necessidade de uma atuação mais rápida e eficaz do Ministério Público no que concerne a propositura de ação direita de inconstitucionalidade, com pedido de liminar.
Eis o excerto que interessa:
É necessário frisar que o descaso e/ou a inércia com a preservação e recuperação desses bens nega os fins da legislação urbanística, traduz desvio de finalidade ou abuso de poder por omissão, afrontando o princípio constitucional da legalidade que rege toda a atividade da Administração Pública (art. 37, caput, CF):
"Art. 37 - A administração pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e, também, ao seguinte: (...)"
38. O dever de buscar sempre a finalidade normativa é inerente ao princípio da legalidade, porque todo comportamento administrativo que desatende o fim legal descumpre a própria lei (JOSÉ AFONSO DA SILVA, Curso de Direito Constitucional Positivo, 8ª ed., Malheiros Editores, São Paulo, 1990, p. 562; HELY LOPES MEIRELLES, Direito Administrativo Brasileiro, 17ª ed., Malheiros Editores, São Paulo, 1992, p. 95; CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO, Elementos de Direito Administrativo, 3ª ed., Malheiros Editores, São Paulo, 1992, pp. 54-55; CAIO TÁCITO, O abuso do poder administrativo no Brasil - conceito e remédios, em Revista de Direito Administrativo 56/10; VÍTOR NUNES LEAL, Poder Discricionário e Ação Arbitrária, em Problemas de Direito Público, Forense, Rio de Janeiro, 1960, p. 285; AFONSO RODRIGUES QUEIRÓ, Reflexões sobre a Teoria do Desvio de Poder em Direito Administrativo, Coimbra Editora, 1940, p. 16; MARIA CUERVO SILVA E VAZ CERQUINHO, O Desvio de Poder no Ato Administrativo, Ed. Revista dos Tribunais, São Paulo, 1979, pp. 18-19), pouco importando que consista em uma ação ou em uma omissão, pois as abstenções juridicamente relevantes também estão sujeitas ao controle de compatibilidade e conformação ao Direito (ANTÔNIO CARLOS DE ARAÚJO CINTRA, Motivo e Motivação do Ato Administrativo, Ed. Revista dos Tribunais, São Paulo, 1979, p. 34; EINSENMAN, "O Direito Administrativo e o princípio da legalidade", em Revista de Direito Administrativo 56/48).
39. Por isso que é defeso ao Município escudar-se em pretenso poder discricionário, que não tem lugar na espécie, como ensina a ilustre jurista e juíza federal LUCIA VALLE FIGUEIREDO, para quem "é dever do Município o respeito a essa destinação, não lhe cabendo dar às áreas que, por força da inscrição do loteamento no Registro de Imóveis, passaram a integrar o patrimônio municipal qualquer outra utilidade. Não se insere, pois, na competência discricionária da Administração resolver qual a melhor finalidade a ser dada a estas ruas, praças, etc. A destinação já foi preliminarmente determinada" ("Disciplina Urbanística da Propriedade", RT, pág. 41, 1980).
40. A indiferença do Poder Público ou a perpetuação dessa situação ofendem os direitos e interesses difusos, coletivos e individuais indisponíveis, autorizando sua tutela supletiva judicial pelo Ministério Público, instituição vocacionada à defesa da ordem jurídica e do patrimônio público e social pela ação civil pública (arts. 127, caput, e 129, II e III da Constituição Federal; arts. 1º, IV, 5º e 21 da Lei 7.347/85; arts. 81, 82, 83, 110 e 117 da Lei 8.078/90; art. 25, IV, "a", da Lei nº 8.625/93), pois nenhuma lei exclui da apreciação do Judiciário a lesão a direitos (art. 5º, XXXV, CF), ainda que haja negligência (culpa) da Administração Pública Municipal na gestão dos bens públicos (tolerando invasões), pois sua omissão é geradora de responsabilidade civil aquiliana objetiva e subjetiva (arts. 15 e 159, Cód. Civil; art. 14, § 1º, Lei 6.938/81; art. 37, § 6º, CF).
41. Na omissão, deixa a Municipalidade de exercer, a tempo e modo, o poder de auto-executoriedade dos seus atos, já que "a utilização indevida de bens públicos por particulares, notadamente a ocupação de imóveis, pode - e deve - ser repelida por meios administrativos, independentemente de ordem judicial, pois o ato de defesa do patrimônio público, pela Administração, é auto-executável, como o são, em regra, os atos de polícia administrativa, que exigem execução imediata, amparada pela força pública, quando isto for necessário" (HELY LOPES MEIRELLES, "Direito Administrativo Brasileiro", 20ª edição, Malheiros Editores, pág. 434)
42. O TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE GOIÁS concebeu a ação civil pública como instrumento adequado para a manutenção e conservação do patrimônio público, que o Ministério Público é parte legítima ativa e que o Município é responsável pela sua omissão no dever de fiscalização, não sendo discricionária a proteção aos bens de uso comum do povo, mas, sim, vinculada à lei e sujeita à apreciação judicial (Ap. 35.404-6/188, 1ª Câm. e 3ª Turma, Rel. Des. Antônio Nery da Silva, j. 27/06/95, v.u. in RT 721/207-213). Assim também decidiram o TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL acerca do cabimento de ação civil pública para a restauração de área livre de lazer do povo (RJTJERGS 139/70 - in "Código de Processo Civil" - Theotonio Negrão - nota ao art. 1º da Lei 7.347/85), e o TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO, sobre a legitimação ativa ministerial e a possibilidade de se impor judicialmente obrigação de não fazer ao Município (Ap. Cível 205.577-1 - Presidende Venceslau - 3ª Câm. Civil, Rel. Des. Alfredo Migliore, j. 07/06/94, v.u. in JTJ/LEX 161/130).
43. Portanto, deve o Parquet tutelar o patrimônio público e social, sob esse prisma urbanístico."
Além de defender e tutelar o patrimônio público e social, deve o Ministério Público, no caso presente, através da ação direta de inconstitucionalidade, defender a ordem jurídica, o regime democrático e todos os outros interesses sociais que estão sendo lesados.