B - Direitos Humanos e a "Globalização da Justiça"
Antes de tudo, convém analisar a evolução do direito internacional antes e após a IIª Grande Guerra. Antes de 1945, o direito internacional passou em silêncio pelas questões de direitos humanos, tratando apenas de questões restritas à escravidão e ao trabalho forçado. As questões humanitárias entravam na agenda internacional quando ocorria uma guerra, mas logo mencionava-se o problema da ingerência contra um Estado soberano e a discussão morria lentamente. Temas como o respeito às minorias dentro de territórios nacionais e direitos de expressão política não eram abordados para não ferirem o então inconstestável e absoluto princípio de soberania (Lefebvre, 1997:115-7).
Após a Segunda Guerra, o tema "Direitos Humanos" passou a ser tratado como verdadeira revolução, na medida em que teria colocado o ser humano individualmente considerado no primeiro plano do Direito Internacional Público em um domínio outrora reservado aos Estados nacionais. Paradoxalmente, o direito internacional feito por Estados e para os Estados começou a tratar da proteção internacional dos direitos humanos contra o Estado, único responsável reconhecido juridicamente. Esse novo elemento significaria uma mudança qualitativa para a comunidade internacional, pois não se cingiria mais a interesse nacional particular(19). O cidadão, antes vinculado a sua nação, torna-se lenta e progressivamente "cidadão do mundo"(20).
A multiplicação dos instrumentos internacionais após o final dessa guerra, como a Declaração Universal de 1948 e os dois Pactos de 1966, levaram a uma nova evolução da proteção internacional dos direitos humanos. Por essa razão, o que se verifica na atualidade é uma espécie de busca por uma "justiça globalizada", a qual poderia ser institucionalizada por meio de um tribunal verdadeiramente supra-nacional, permanente e livremente constituído pela comunidade internacional.
A propósito, alguns estudiosos aventam a urgência de se "constitucionalizar" as relações internacionais(21) para sob a égide do paradigma grociano enfatizar a sociabilidade existente para tornar possível elaborar regras que garantam uma convivência internacional harmoniosa. Essa "constitucionalização" exigiria o estabelecimento de um verdadeiro e único tribunal internacional e evitaria o que se verifica na atualidade: a proliferação fácil de tribunais ad hoc - o que constitui fator altamente pernicioso para a construção de um sistema jurídico internacional equilibrado, eficiente e justo.
É bem verdade que essa idéia não se coaduna com a realidade (em sentido hobbesiano) das relações internacionais, sempre assimétricas e marcadas pelo diferencial de poder entre os atores. Seria ingênuo supor, por exemplo, que uma grande potência fosse acatar sentenças e decisões contrárias a seus interesses. De qualquer sorte, entende-se que o sistema multilateral ainda é o melhor mecanismo para resolver questões jurídicas apresentadas constantemente no cenário internacional. É preciso estimular o diálogo baseado no respeito ao Direito Internacional, à resolução pacífica de controvérsias e aos princípios reconhecidos como básicos no âmbito do Direitos Humanos.
A relativização da soberania é a questão central da temática referente à aplicação atual de mecanismos de proteção dos Direitos Humanos. É sobejamente sabido que o primeiro grande precedente que rompeu com a idéia de um domínio reservado dos Estados em Direitos Humanos foi o "Grupo de Trabalho Especial sobre a Situação dos Direitos Humanos no Chile", do regime de Pinochet. Sucede, contudo, que o "Tribunal" ad hoc criado refletiu a força política momentânea em detrimento do fortalecimento dos mecanismos do Direito Internacional Público. Trata-se de evidente mecanismo que contribui mais para resolver questões específicas, ao sabor das circunstâncias políticas e da força da opinião pública, do que para instaurar mecanismos permanentes e firmes de controle do Direito.
B.1 - Marcos históricos dos Direitos Humanos
Na própria Bíblia, está estatuído, no Gênesis, que "Deus criou o homem à sua imagem", como querendo ensinar que o homem assinala o ponto culminante da criação. Nesse sentido, observa Hannah Arendt que "... a própria vida é sagrada, mais sagrada que tudo mais no mundo; e o homem é o ser supremo sobre a terra"(22). Assim, entende-se que todo homem é único e quem suprime sua existência é como se destruísse o mundo por completo.
Analisando as idéias apresentadas pelos grandes pensadores da teoria política moderna, verifica-se que os indivíduos, até mesmo para Hobbes, têm o direito inalienável à vida(23). Esses e outros direitos fundamentais correspondem ao que Jean-Marie Dupuy qualificou de "noyau dur" dos direitos humanos. Eles remetem-nos às obrigações erga omnes da Corte Internacional de Justiça e referem-se ao princípio de jus cogens evocado na convenção de Viena sobre Tratados Internacionais (Lefebvre, 1997: 123).
Ademais, pode-se dizer que há certa relação entre a teoria de Locke - para quem o Estado e o Direito são uma espécie de meio-termo entre a liberdade vigente no "estado de natureza" (onde tudo é permitido) e as exigências da vida em sociedade e os princípios que inspiraram a proteção dos direitos fundamentais do ser humano. De fato, é importante aqui ressaltar que a passagem do Estado absolutista para o Estado de Direito (Rule of Law) transita pela preocupação do individualismo em estabelecer limites ao abuso de poder do todo em relação ao indivíduo.
Esses limites encontrariam guarida na idéia de divisão dos poderes, que, preconizada por Montesquieu, quedou estatuída no art. 16 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão: "Toute société dans laquelle la garantie des droits nest pas assurée, ni la séparation des pouvoirs déterminée, na point de Constitution".
Ainda que se observe que os principais marcos históricos da temática estão na Revolução Parlamentar Inglesa, na Independência dos EUA e na Revolução Francesa, com suas respectivas Declarações, a inclusão da observância dos Direitos Humanos entre os princípios da Carta da ONU (1945) e a proclamação da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) representaram mudança qualitativa das relações internacionais.
Com efeito, a Carta de São Francisco, consoante Pierre Dupuy, fez dos Direitos Humanos um dos axiomas da organização, conferindo-lhes uma estatura constitucional no Direito das Gentes.(24)
Certo é que o tema "Direitos Humanos" constitui um dos itens mais importantes da agenda internacional contemporânea. Para analisá-lo de maneira mais sistemática, convém agora abordar três pontos: a Convenção de Viena; o quadro normativo existente no plano internacional; e a política brasileira na matéria.
B.2 - A Conferência de Viena e a consagração dos princípios da indivisibilidade, da interdependência e da universalidade.
Após um quarto de século da realização da Iª Conferência Mundial de Direitos Humanos, realizada em Teerã, a IIª. Conferência (Viena, 1993) consagrou os Direitos Humanos como tema global(25).
A Conferência de Viena conferiu abrangência inédita aos Direitos Humanos ("DH"), ao reafirmar sua universalidade, indivisibilidade e interdependência. Ademais, afastou a objeção de que o tema estaria no âmbito da competência exclusiva da soberania dos Estados.
Quanto à universalidade, foi uma das conquistas mais difíceis da Declaração de Viena. De fato, só ao final se conseguiu consenso sobre o caráter universal dos DH e se compreendeu que a diversidade cultural não pode ser invocada para justificar sua violação. Assim, ainda que as diversas particularidades históricas, culturais, étnicas e religiosas devam ser levadas em conta, é dever dos Estados promover e proteger os DH, independentemente dos respectivos sistemas. A observância dos DH não pode ser questionada com base no relativismo cultural. Entendeu-se que a universalidade é, na verdade, enriquecida pela diversidade cultural, que não pode ser invocada para justificar a violação dos direitos humanos.
Cuida-se, aqui, de um processo de amadurecimento das idéias relacionadas à dignidade humana mínima e à universalidade do ser humano individualmente considerado, acima de quaisquer particularismos. Os Direitos Humanos passam, então, a ser encarados como sinal de progresso moral(26).
O que se superou foi a resistência derivada do suposto "conflito de civilizações", aceitando-se a unidade do gênero humano no pluralismo mesmo das particularidades das nações e de seus antecedentes culturais, religiosos e históricos.
Tanto sob o ponto de vista da diplomacia, como sob o ponto de vista do Direito, o avanço foi extraordinário. Contudo, não se pode afirmar que, no campo operativo, o universalismo tenha realmente suplantado o relativismo(27). Com efeito, os instrumentos jurídicos sobre a matéria têm mais caráter declaratório do que impositivo.
De qualquer sorte, a Declaração de Viena também estatuiu que a proteção dos DH não pode ser questionada com base na soberania. Com efeito, o reconhecimento da legitimidade da preocupação internacional com a proteção dos DH foi outra conquista conceitual da Declaração. Confirmou-se a idéia de que os DH extrapolam o domínio reservado dos Estados, invalidando o recurso abusivo ao conceito de soberania para encobrir violações. Os DH não são mais matéria de competência exclusiva das jurisdições nacionais. Não se levanta mais a exceção do "domínio reservado dos Estados", em benefício último do ser humano.
É importante sublinhar que a própria Carta da ONU consagra, em seu texto(28), o princípio da não-ingerência em assuntos de competência interna dos Estados, o que deu ensejo a diversas interpretações no que tange à legitimidade de uma ação da ONU nesse campo. Sucede que o chamado "direito de ingerência" é um dos conceitos abusivos que mais têm prejudicado o trabalho da ONU em favor dos Direitos Humanos. No contexto do direito humanitário, "sua origem remonta ao final dos anos 80, quando os "Médecins sans Frontières" encontraram obstáculos governamentais para fornecer auxílio médico e alimentar a populações africanas e asiáticas em áreas conflagradas"(29).
A idéia de "competência nacional exclusiva" encontra-se, agora, superada pela atuação dos órgãos de supervisão internacionais na proteção dos direitos humanos. De fato, não há noção mais alheia à proteção internacional dos Direitos Humanos que a da soberania"(30). Por isso mesmo acredita-se que esse princípio deva ser redefinido em função das aspirações dos componentes do espaço público internacional em plena fase de consolidação.
Ao firmar um Tratado qualquer, os Estados abdicam de uma parcela de sua soberania e se obrigam a reconhecer como legítimo o direito da comunidade internacional de observar sua ação interna sobre o assunto de que cuida o instrumento jurídico negociado e livremente aceito. Ademais, o Professor Cançado Trindade (1999) atribui à proteção internacional dos direitos humanos um caráter especial, haja vista que estes prescrevem obrigações visando a garantir o interesse geral, independementement dos interesses individuais das partes contratantes. Sendo assim, os direitos humanos consagrados em instrumentos internacionais não devem ser limitados, salvo esteja explícito em texto jurídico.
No que tange à indivisibilidade, está superada a dicotomia entre "categorias de direitos"(civis e políticos, de um lado; econômicos, sociais e culturais, de outro). Verificou-se que a teoria das "gerações de direitos" é historicamente incorreta e juridicamente infundada, porque não há hierarquia quanto a esses direitos e porque os argumentos em favor dessa divisão são ultrapassados. Com efeito, os direitos humanos devem ser considerados de maneira eqüitativa, em pé de igualdade e com a mesma ênfase.
Dado novo, desde o início defendido pelo Brasil, é a interdependência entre democracia, desenvolvimento e DH. O reconhecimento do direito ao desenvolvimento como direito humano universal foi o maior êxito para os países em desenvolvimento. A Declaração de Viena propõe medidas concretas para a realização do direito ao desenvolvimento, por meio da cooperação internacional, tais como: alívio da dívida externa e luta para acabar com a pobreza absoluta.
Em resumo, certo é que o sistema internacional de proteção do DH saiu fortalecido da Conferência de Viena, eis que quedaram estatuídos princípios fundamentais no caminho da "globalização" dos mecanismos concretos de proteção dos Direitos Humanos.
B.3 - O quadro normativo existente e a política brasileira de Direitos Humanos.
Para expor o arcabouço jurídico existente, convém ressaltar, de início, que a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), proclamada pela Assembléia Geral da ONU, definiu, pela primeira vez, como "padrão comum de realização para todos os povos e nações" os DH e liberdades fundamentais.
Previu-se, em seguida, a adoção de dois Pactos para a implementação da Declaração. Sucede que, devido a controvérsias Leste-Oeste e Norte-Sul, a elaboração levou 20 anos e outros 10 foram necessários para a entrada em vigor. Por fim, foram adotados, em 1976, o Pacto de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais; e o Pacto de Direitos Civis e Políticos.(31)
Desde a Declaração Universal de 48 até hoje, a ONU adotou mais de 60 Declarações e Convenções sobre DH. Convém ressaltar que as Convenções constituem hoje importante arcabouço jurídico das Nações Unidas. Formam o que se denomina "the United Nations Human Rights System", cujo poder de influência na matéria tem sido crescente. O Brasil é parte de todas as mais significativas:
a) "Convenção Internacional para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial", adotada em 1965, em vigor desde 1969 e ratificada pelo Brasil em 1968;
b) "Convenção para a Eliminação de Discriminação contra a Mulher", adotada em 1979, vigente em 1981 e ratificada pelo Brasil em 1984. Reuniu o maior número de reservas. O Brasil também expressou reservas devido ao Código Civil. Mas, com a Constituição de 1988, foram elas revistas pelo Governo brasileiro, por não mais se coadunarem ao tetxo constitucional;
c) "Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos e Punições Cruéis, Desumanos e Degradantes", adotada em 1984, vigente em 1987 e ratificada pelo Brasil em 1989. Embora a Constituição de 1988 tenha qualificado a tortura como crime inafiançável e insuscetível de graça ou anistia, o crime ainda não foi tipificado;
d) "Convenção sobre os Direitos da Criança", adotada em 1989, vigente em 1990 e ratificada pelo Brasil em 1990. Tendo sido ratificada por 191 dos 193 países-membros(32), é tida por "virtualmente universal". Ressalte-se que o "Estatuto da Criança e do Adolescente" do Brasil reflete suas disposições, as quais foram adaptadas ao caso brasileiro.
Quanto ao quadro normativo interamericano, o Brasil ratificou, em 1989, a "Convenção Interamericana para Prevenir e Punir Tortura" e, em 1992, a "Convenção Interamericana sobre Direitos Humanos" (Pacto de San José).
No que tange à política brasileira de DH, o Brasil conheceu quatro momentos de evolução de sua atuação na Comissão de Direitos Humanos da ONU. O primeiro vai de 1964 a 1977. Esse período, caracterizado pelo auge do regime ditatorial, pautava-se pela ausência de diálogo da parte do Brasil sobre a temática. As manifestações oficiais eram esporádicas e sempre marcadas por elevado grau de confidencialidade.
O segundo de 1977 (quando o Chanceler Azeredo da Silveira abordou o tema, pela primeira vez, de maneira abrangente e cautelosa) até 1984. Foi um período de posições conservadoras e defensivas. De qualquer forma, o Brasil decidiu abri o diálogo com a apresentação de candidatura oficial à Comissão de Direitos Humanos.
O terceiro vai de 1985, com o começo da redemocratização (quando o Presidente Sarney anuncia nossa adesão aos Pactos de Direitos Civis e Políticos e de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais), até 1990. Foi um período de reconhecimento relativamente tímido da legitimidade das iniciativas multilaterais de controle das violações de DH. Registre-se que, em 1988, a Constituição Federal estabeleceu, no art. 4º, que a prevalência dos DH é um dos princípios que regem as relações internacionais do Brasil.
O quarto vai de 1991 até hoje, em que os mecanismos internacionais não configuram atentado ao princípio de não-intervenção. Há reconhecimento pleno da legitimidade dos mecanismos internacionais de proteção. A política brasileira de DH mudou, de fato, com a consolidação das instituições democráticas.
Atualmente, a política brasileira de DH se caracteriza pelos seguintes fatores: a) atuação pautada pela transparência e disposição para o diálogo com órgãos internacionais, autoridades estrangeiras e ONGs(33); b) adesão a todos os Pactos e Convenções relevantes na matéria; c) valorização dos foros e mecanismos multilaterais; d) valorização da cooperação internacional; e) exigência de atuação internacional para as causas estruturais da violência social.
O Brasil admite a existência de problemas e manifesta o desejo de resolvê-los. Mas, ao expor à comunidade internacional a própria situação interna, procura ressaltar a dimensão socioeconômica da questão. Não esconde seus problemas (haja vista a cobrança de ONGs quanto aos episódios de Candelária, Vigário Geral, Carandiru, índios ianomâmi etc), mas procura mostrar a vinculação com a questão do desenvolvimento. Em outras palavras, procura mostrar a relação entre pobreza, criminalidade, violência e violação dos DH, o que significa que há causas estruturais a serem consideradas e que as violações de DH não ocorrem com a conivência do Estado.
O Brasil de hoje não se caracteriza mais pela arbitrariedade de um regime autoritário mas pelas dificuldades de um país democrático em assegurar a proteção dos DH, dentro do quadro constitucional e em consonância com seu nível de desenvolvimento.
Deve ser enfatizado que a política do Brasil de avaliar e expor a própria situação não é para solicitar a indulgência internacional, mas para chamar atenção para a difícil situação socioeconômica de uma país em busca de efetivo respeito dos DH e de reconhecimento de seus esforços.