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Direito internacional e globalização face às questões de direitos humanos

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01/09/2000 às 00:00
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C - Conclusões

Poder-se-ia elencar três novas características do direito internacional em construção (Weiss, apud. Aubertin e Vivien, 1998:2-15). A primeira, decorrente das lacunas entre as relações de Estados e de outros atores, é a intersecção das esferas do direito público e do privado, tanto no âmbito nacional como no internacional. Segundo exemplo da Professora Nádia Araújo(34), tudo o que for codificado no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC) terá conseqüências importantes para contratos privados.

A segunda característica é a crescente utilização de instrumentos legais não-cogentes ou voluntários, sob a forma de declarações de intenções ou de atos unilaterais. Como se a comunidade internacional pudesse de facto julgar a ação política dos Estados que se comportam mal. Na Cúpula da Francofonia de 1999 no Canadá, por exemplo, este país propôs sanções aos Chefes de governo que violassem os direitos humanos, mas essa "comunidade internacional" restrita se contentou em adotar a proposta do Presidente francês Jacques Chirac de criar um "Observatório dos Direitos Humanos", sem nenhum efeito cogente.

Cabe ressaltar que a sociedade internacional ainda é descentralizada – e assim será muito provavelmente por longo tempo. Ademais, não há, no sistema internacional, nem autoridade superior, supranacional, nem mesmo milícia permanente, que possa tornar obrigatório, sob via de força, o cumprimento das normas. Decorre, portanto, que os Estados sofrem pressões difusas e confusas, mas ainda são os principais responsáveis pela construção do direito internacional e dos direitos humanos, em particular.

Sucede, contudo, que o direito internacional nunca foi tão solicitado no mundo e tão ampliado a questões diversas (Lefebvre, 1997). Nesse sentindo, os primeiros passos do Tribunal Internacional Penal confirmam a retomada do ideal de justiça internacional: para Cançado Trindade (1999), o monitoramento mundial do respeito aos direitos humanos e a inclusão dessa dimensão nos programas das Nações Unidas são etapas importantes para a realização desse ideal.

A terceira é a integração do direito nacional e do direito internacional à medida que os textos internacionais exigem uma harmonização de outras legislações domésticas. Considerando que os instrumentos internacionais ratificados pelos governos de cada Estado-parte prevalecem sobre as legislações nacionais (ou, ao menos, a ela se equivalem, em igualdade hierárquica), essa evolução parece óbvia. Contudo, a questão do status normativo das fontes internacionais frente às nacionais não será desenvolvida.

Constata-se, em suma, que o processo cunhado de "globalização" tem surtido efeitos impressionantes na esfera jurídica, haja vista a necessidade de regulação internacional mais consentânea com as demandas atuais da comunidade internacional. Apesar da natural diversidade de interesses dos Estados, a idéia de "constitucionalização" das regras de conduta dessa comunidade no que se refere à proteção dos direitos humanos é cada vez mais premente, o que implica reforçar a relatividade do conceito de soberania.


D

-NOTAS

1. Para uma definição detalhada de "globalização multidimensional", ver Viola (1996).

2. O Estado tem direito soberano de controlar mensagens que entram no seu território, segundo a Resolução 37-92 da ONU datada de 10.12.1982.

3. O número de transnacionais em 1970 situava-se em torno de 7.000; já em 1992, estimava-se em 37.000.

4. Para uma versão onusiana do tema, ver a entrevista de K. Annan, The Economist, 18.09.1999.

5. Debate realizado entre o Ministro francês das Relações Exteriores, Hubert Védrine, e 80 estudantes no Quai d´Orsay, Paris, junho de 2000. Foi um exemplo chocante de como a juventude francesa exigiu de seu ministro políticas severas contra todos que violam os direitos humanos (denunciados pela imprensa), principalmente Beijing e Moscou.

6. Cada caso é merecedor de atenção especial. Na Chechênia, por exemplo, a guerra ainda não acabou, e a comunidade internacional fez pressão diplomática, sem influenciar a política de "extermínio de terroristas" de Vladimir Poutine.

7. Esta ONG denunciou, em relatório publicado dia 29 de março de 2000, não só as violações aos direitos humanos no Reino da Arábia Saudita, como sendo o "pior sistema judiciário do mundo", mas também a indiferença da comunidade internacional. Jornal Libération, 30.03.2000, p.14.

8. Termo utilizado pelo Presidente J. Chirac para descrever esse fenômeno de disparidades múltiplas dentro da sociedade francesa.

9. Segundo dados comparativos dos relatórios do PNUD dos últimos 30 anos.

10. Sobre a desigualdade de poder no cenário internacional, ver Hurrel, A. e Woods, N. Inequality, Globalization and World Politics, 1999.

11. Ver nota 5.

12. Chartouni-Dubarry e al Rachid, "Droit et mondialisation", 1999.

13. O conceito de poder é objeto de querelas intermináveis na teoria de relações internacionais. Ele traduz aqui a capacidade de agir na cena internacional (Gounelle, 1998; Lefebvre, 1997), de atores coletivos como G-8 e OTAN, UE ou individuais, como os EUA.

14. Chartouni-Dubarry e al Rachid, op. cit.

15. Entrevista realizada dia 23 de maio de 2000. Ver Boucault e Araujo (1999).

16. Professor de Relações Internacionais no Instituto de Estudos Políticos de Paris. Entrevista realizada dia 09.03.2000, em Paris.

17. Ver Krasner, S. Sovereignity: Organized Hipocrisy, 1999. Ver também Badie, B. La fin des souverainetés, 1999.

18. Smouts, M.-C. "Du bon usage de la gouvernance en relations internationales", Revue Internationale des Sciences Sociales, n° 155, mars 1998, p. 85-94.

19. Cf. Drinan, R. Cry of the oppressed: the human rights revolution. São Francisco: Row Pub,1987.

20. Nota-se a aproximação do ideal de jurisdição planetária com a criação de tribunais internacionais, como o Tribunal Penal Internacional.

21. Cf. Lafer, Comércio, Desarmamento e Direitos Humanos. Paz e Terra, 1999, p.141.

22. Arendt, Hannah. Entre o Passado e o Futuro. São Paulo, Perspectiva, 1972, p.83.

23. Hobbes, T. Leviathan. Harmondsworth, Penguin Books, 1979, pp.189-201.

24. Dupuy, P. La protection internationale des droits de l’homme, p.404, 1980.

25. Ressalte-se que ao Brasil coube, por indicação, presidir o Comitê de Redação.

26. Bobbio, L ‘età dei diritti, Torino: Einaudi, 1990, pp.143-155

27. Cf. exemplos in: Lindgren Alves, J. Os Direitos Humanos Como Tema Global, 1994, p.140.

28. Art. 2º, # 7.

29. Lindgren Alves, J . op. cit., p. 38.

30. Trindade (Cf. apresentação ao livro de Lindgren Alves, J. Os Direitos Humanos como Tema Global, 1994)

31. Desde 1992, o Brasil é parte dos dois intrumentos.

32. Com as exceções dos Estados Unidos da América e da Somália.

33. Ressalte-se a crescente aproximação do Governo com as organizações não-governamentais, como expressão legítima de organização da sociedade civil.

34. Entrevista realizada dia 23 de maio de 2000.


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Sobre o autor
Ancelmo César Lins de Góis

diplomata de carreira em Brasília (DF), bacharel em Direito e em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (UnB), professor de Ciência Política na Faculdade de Direito do UniCEUB

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GÓIS, Ancelmo César Lins. Direito internacional e globalização face às questões de direitos humanos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 45, 1 set. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1607. Acesso em: 10 mai. 2024.

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