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Afinal, democracia e discriminação são situações conciliáveis?

01/08/1999 às 00:00
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Vivenciamos hoje no Brasil, inegavelmente, profunda crise social que acarreta problemas de todas as ordens, dando-nos a constante impressão de que vivemos no limite entre a segurança e a tragédia. Percebemos, com isto, que é de extrema urgência a reformulação das relações sociais em nosso país, não por altruísmo, mas por justiça, não para atender a teses acadêmicas, mas para a obtenção de resultados que, objetivamente, beneficiarão a todos, indistintamente.

É inevitável que, ao refletirmos sobre esta questão abordemos as raízes de nossos problemas e sendo assim, impõem-se algumas indagações. É legítima uma democracia que comporta discriminações diversas? É autêntico um sistema democrático no qual a cidadania plena, entendendo-se esta como a conjugação e o gozo dos direitos políticos, civis e sociais, é deferida plenamente a alguns brasileiros e concedida parcialmente a outros? Ou ainda: Até quando vamos nos preparar, em nossa condição de nação, para o futuro, ignorando que no presente, grande parte de nossa população não tem acesso à educação, a um sistema de saúde eficaz e a um emprego digno?

É certo que o Brasil é a terra dos contrastes. Convivemos, aqui, com contrastes de todo gênero e natureza. Mas, é ilusório achar que a nação, crescerá, verdadeiramente, quando parcela de sua população sofre os efeitos do preconceito, seja ele social, racial, ou sexual. Sim, preconceito. Quando falamos em crise social precisamos abolir o caráter dogmático da questão e identificarmos causas. E, uma delas é o preconceito. Este, especificamente considerado, é apenas o resultado de processos éticos internos do portador, um conceito ou opinião formados antes de se ter conhecimentos adequados e independentes da razão. Mas, a exemplo de uma chaga, uma doença, ele tem efeitos práticos, surgindo, então, a discriminação, que ocasiona o prejuízo, o isolamento, o tratamento preferencial, ditados pela segregação.

Podemos observar um descompasso total, no Brasil, em relação a este assunto. De um lado, não se admite a existência do preconceito, invocando-se, a todo instante, o Princípio da Isonomia, preceito constitucional que declara a igualdade de todos perante a lei. Por outro lado, discrimina-se, abertamente, oferecendo-se tratamento diferenciado à mulher, ao negro, ao deficiente físico, ao pobre.

É chegado o momento de discutirmos este assunto olhando no espelho, expormos nosso posicionamento e juntos encontrarmos soluções. Esta discussão interessa a toda a sociedade, como uma questão de sobrevivência.

Não podemos mais ficar no campo das palavras. Precisamos de instrumentos, mecanismos, processos que transformem as relações inter-raciais, grupais, pessoais ou sociais em relações, antes, puramente democráticas. E, para a efetivação legítima desta democracia, é preciso haver uma política institucional corajosa, ainda que seja taxada de polêmica.

O Direito carece de um exercício maior para o enfrentamento desta questão, porque, até então, nossa legislação se restringe ao aspecto penal, desprezando o fato de que existem em nossa sociedade verdadeiras barreiras segregando, aniquilando e revoltando parcelas significativas de nossa população.

Dizia Martin Luther King Jr. "Precisamos estar juntos antes de aprendermos a viver juntos". É necessário, portanto, identificarmos o preconceito como o limite dos esforços que demandamos para derrubarmos essas barreiras e implantarmos uma democracia social .

Em relação à mulher caminhamos, ainda que pouco. Hoje, é inegável a imensa contribuição feminina ao contexto da vida social. É inegável, também, que muito ainda precisa ser feito para que a mulher seja dignamente tratada, em sua condição de mulher, como pessoa, como ser, como profissional. É inquestionável que, muito se perdeu e ainda se perde pelo reconhecimento mutilado da cidadania feminina.

No que diz respeito aos negros, necessário se faz uma análise mais profunda da situação. Porque, por certo, a sociedade brasileira tem, em relação a eles, uma considerável dívida composta por injustiças e mazelas que precisam ser corrigidas e compensadas. Injustiças que foram cometidas por adotarmos condutas que, hoje, sabemos, foram e ainda são cientificamente falsas, juridicamente condenáveis, humanamente intoleráveis e politicamente hipócritas.


Cabe, aqui, breve retrospectiva histórica, para provarmos que o tratamento jurídico homogêneo ou a emancipação legal não implicam, necessariamente, na emancipação social, podendo até gerar uma situação inversa, a exemplo do que ocorreu após a abolição da escravatura em 1.888. Concomitantemente à emancipação dos escravos o governo promoveu a imigração européia, tirando do negro a possibilidade da emancipação social pelo seu trabalho, que seria, então, remunerado. A situação do negro, simplesmente, piorou. Com a abolição, ganhou a liberdade e o abandono. Sem meios de subsistência, sem posses, sem escolaridade e, principalmente, sem a aceitação social de sua nova condição de "cidadão".

A abolição deveu-se mais à razões econômicas do que humanitárias, porque interessava à Inglaterra a substituição do trabalho servil pelo trabalho assalariado, ampliando o mercado consumidor, além de eliminar a concorrência de centros produtores de açúcar. O Império optou pela imigração européia como forma de substituir o trabalho servil dos negros pelo trabalho assalariado dos brancos. Cerca de 4 milhões de imigrantes entraram no país de 1.880 a 1.930.Aos imigrantes europeus são concedidas pequenas faixas de terra para desenvolverem a agricultura de subsistência, além de outras condições que foram determinantes para a integração plena do europeu na sociedade brasileira. Interessante notar que medida similar a esta foi, anteriormente, inserida no Projeto de Proteção aos Escravos de autoria de José Bonifácio de Andrada e Silva e apresentado à Assembléia Constituinte de 1.823. (Antologia do Negro Brasileiro-Edison Carneiro-pgs.22/25). O projeto, em seu artigo 10, dizia: "Todos os homens de cor forros, que não tiverem ofício, ou modo certo de vida, receberão do Estado uma pequena sesmaria de terra para cultivarem e receberão, outrossim, dele, os socorros necessários para se estabelecerem, cujo valor irão pagando com o andar do tempo". Tivesse tal projeto sido aprovado e hoje teríamos, com grandes possibilidades, um outro quadro sócioeconômico e político, no Brasil, porque a história da população afro-brasileira teria uma outra conformação. Infelizmente, isto não aconteceu, antes, firmou-se a opção pela imigração européia, a despeito da mão de obra negra recém liberta.

O decreto-lei 7.969 de 18 de Setembro de 1.945 ao tratar da imigração, dizia que ela se destinava a garantir à "composição étnica da população as características mais convenientes da sua ascendência européia". Respeitamos a imensa contribuição que o imigrante europeu trouxe à sociedade brasileira, mas, lamentamos o fato da imigração ter se iniciado, paralelamente a um momento oportuno à integração da mão de obra dos escravos, então, libertos. Não acreditamos que práticas preconceituosas, individualmente consideradas, possam ditar o destino do país. Mas o fato de todo um contingente pertencente a um grupo étnico, sofrer a imposição de barreiras raciais e ter acesso precário à educação, ao emprego, a uma efetiva participação social, acreditamos seja uma situação potencialmente capaz de influenciar ou, até mesmo, determinar o futuro da nação.

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Todos seremos beneficiados se a parcela não branca de nossa população obtiver acesso pleno aos aspectos vivenciais da sociedade . Não é com a legislação penal que a questão da emancipação social dos afro-brasileiros haverá de ser resolvida, mesmo porque, esta legislação ainda não é satisfatória.


A lei 7.716 de 5 de Janeiro de 1.989, a chamada Lei Anti-Racismo, é mais completa que a anterior, Lei Afonso Arinos (Nova Redação) No. 7.437 de 20 de Dezembro de 1.985. Atualmente, o ato discriminatório por motivo de origem ou cor é crime e não mais uma contravenção penal. Mas, ainda assim, merece a lei atual as criticas relativas ao imenso casuísmo que contempla nas modalidades delitivas. A Constituição Federal, por sua vez, em seu artigo 5o. parágrafo XLII determina que "a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito a pena de reclusão, nos termos da lei". Este preceito constitucional, regulamentado na lei anteriormente citada, padece da crítica de haver contemplado como crime , apenas a prática do racismo, não abrangendo outras práticas discriminatórias.

Além disto, é preciso que alguém, após praticar a discriminação por preconceito de cor ou raça, declare o motivo de seu gesto. Esta é razão da imensa dificuldade de tipificação desta figura penal. O fato que, inicialmente, configura-se como Crime de Racismo, chega à apreciação do Poder Judiciário na figura de um tipo penal de Injúria ou Difamação, que requerem penas mais leves.

Não se trata de importar soluções norte-americanas, porque nossos problemas têm conotações próprias, mas sabemos que o aprimoramento da legislação penal é insuficiente para enfrentarmos esta questão. Precisamos recorrer a medidas de caracter civil e político. É preciso que se busquem ações compensatórias que se oponham a tantas outras de discriminação, sob pena de, não o fazendo, comprometer-se, irremediavelmente, o equilíbrio social. A solução para a violência urbana não requer providências somente na área de segurança pública ou na esfera legislativa. É preciso haver a diminuição do hiato social, com oportunidades efetivas de inserção social para todos. É inadiável um consenso nacional, em favor da implantação de uma ação afirmativa com instrumentos para reduzir, senão aniquilar, a discriminação racial ou de qualquer outra natureza.

Havendo assim, o conseqüente reconhecimento de que a cor da pele, a origem, o sexo ou o estado civil, não importam na graduação do valor ético da personalidade e da capacidade produtiva do ser humano. Além disto, democracia e discriminação são situações antagônicas. Esta compromete, de modo irrefutável, a legitimidade daquela.

É preciso compreendermos ainda, que a complexidade de nossa formação cultural pode ser um ponto extremamente positivo, desde que nossas diversidades não sejam entraves à obtenção do bem comum e sim, um elemento de superação aos muitos problemas que enfrentamos para nos conformarmos aos ditames do mundo contemporâneo.

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Sobre a autora
Ivete M. R. Favaretto

advogada, professora da Universidade Paulista (UNIP), mestranda em Direito Penal pela PUC/SP

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FAVARETTO, Ivete M. R.. Afinal, democracia e discriminação são situações conciliáveis?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 4, n. 34, 1 ago. 1999. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/164. Acesso em: 25 nov. 2024.

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