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Proteção constitucional da pequena propriedade rural

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01/09/2000 às 00:00
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1 – Direito ou garantia fundamental

A primeira referência constitucional ao direito de propriedade na Constituição em vigor aparece no art. 5º, caput, como um consectário do princípio da igualdade, nos seguintes termos: "Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes". É possível que a inserção da propriedade no rol dos direitos fundamentais encontre suas raízes na origem dos próprios direitos fundamentais, especialmente nos primeiros textos que começaram a reconhecer aos homens certos direitos hoje tão elementares, mas que ao tempo em que se cogita eram impensáveis. De fato, a Magna Carta, escrita em maio de 1215 e efetivada em 1225, pelo rei João Sem-Terra, embora de alcance restrito aos "homens livres", reconheceu de forma expressa a direito de ter bens, como se infere do art. 39: "Nenhum homem livre será detido nem preso, nem despojado de seus direitos nem dos seus bens, nem declarado fora da lei, nem exilado, nem prejudicada a sua posição de qualquer outra forma; tampouco procederemos com força contra ele, nem mandaremos que outrem o faça, a não ser por um julgamento legal de seus pares e pela lei do País". Na mesma esteira, mas ampliando o direito para todos, a Declaração Fundamental dos Direitos do Bom Povo de Virgínia, de 1776, dizia: "Que todos os homens são, por natureza, igualmente livres e independentes, e têm certos direitos inatos, dos quais quando entram em estado de sociedade, não podem por qualquer acordo privar ou despojar seus pósteros e que são: o gozo da vida e da liberdade com meios de adquirir e possuir a propriedade e de buscar e obter felicidade e segurança". Por conseguinte, aqui aparece de forma expressa a propriedade como sendo um direito inato, ou seja, um direito natural extensivo a todas as pessoas, independente de sua origem ou qualquer outra condição. No Brasil, as constituições pretéritas também cuidaram do direito de propriedade, nos seguintes termos:

Constituição de 1824: "Art. 179: A inviolabilidade dos direitos civis e políticos dos cidadãos brasileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual e a propriedade, é garantida pela Constituição do Império, pela maneira seguinte":

Constituição de 1891: "Art. 72. A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes":

Constituição de 1934: "Art. 113. A Constituição assegura a brasileiros e estrangeiros o direito à liberdade, à subsistência, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes":

Constituição de 1937: "Art. 122. A Constituição assegura a brasileiros e estrangeiros residentes no País o direito à liberdade, à subsistência, à segurança individual e à propriedade, nos seguintes termos":

Constituição de 1946: "Art. 141, § 1º. A Constituição assegura a brasileiros e estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à subsistência, à segurança individual e à propriedade, nos seguintes termos":

Constituição de 1967: "Art. 150, § 1º. A Constituição assegura a brasileiros e estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à subsistência, à segurança individual e à propriedade, nos seguintes termos":

Constituição de 1969: "Art. 153, § 1º. A Constituição assegura a brasileiros e estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à subsistência, à segurança individual e à propriedade, nos seguintes termos":

Todos os dispositivos mencionados cuidam dos direitos e garantias fundamentais, sendo os equivalentes respectivos do art. 5º da atual Constituição. Nenhum deles, porém, enfrentou a questão, que ainda hoje continua pendente, de saber se a propriedade é direito ou garantia fundamental. Aliás, fazer a distinção entre direitos e garantias fundamentais é tema que ainda desperta alguns debates entre os estudiosos, a exemplo de Rui, para quem os primeiros se caracterizam por serem normas meramente dispositivas, ao passo que as garantias seriam disposições assecuratórias. No tocante à propriedade, a discussão tem relevo em face da redação do art. 5º, caput(1), que se refere à garantia do direito de propriedade, e ao seu inciso XXII, que tem disposição assecuratória clássica, usando o termo "é assegurado(2)" para se referir ao que não é, efetivamente, uma garantia, mas, sim, um direito. De fato, não se garante o direito de propriedade simplesmente dizendo que "é assegurado". A dicção do dispositivo traduz inequivocamente o simples reconhecimento de que ao homem, entre tantos outros direitos fundamentais, o Estado lhes reconhece também o de propriedade por ser inerente à sua natureza. Embora não possa ser desprezada a lição barbosiana, é certo que há nítida distinção entre os direitos e garantias fundamentais, mas que não podem ser resolvidas simplesmente pela forma como se encontram redigidos os respectivos textos. Há, pois, disposições constitucionais escritas como se fossem assecuratórias, que na verdade traduzem simples direitos, enquanto há outras que, a despeito de afirmarem um direito, normas definem, efetivamente, garantias fundamentais. Em suporte do que pretendo esclarecer, trago a lume dois dispositivos constitucionais, ambos do art. 5º:

Inciso XXXIV: "são a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas: a) o direito de petição aos poderes públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder; b) a obtenção de certidões em repartições públicas, para defesa de direitos e esclarecimento de situações de interesse pessoal";

Inciso XXVIII - são assegurados, nos termos da lei: a) a proteção às participações individuais em obras coletivas e à reprodução da imagem e voz humanas, inclusive nas atividades desportivas; b) o direito de fiscalização do aproveitamento econômico das obras que criarem ou de que participarem aos criadores, aos intérpretes e às respectivas representações sindicais e associativas;

A alínea "a" do primeiro dispositivo cogita do "direito de petição" e o segundo assegura o direito de fiscalização do aproveitamento econômico de obras intelectuais. Seria o primeiro, de fato, um direito, enquanto o segundo seria uma garantia? A resposta é negativa para ambos, porque não tem nenhum o valor do direito de petição se não for para a defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder, enquanto que o direito de fiscalizar não é direito, mas a garantia de um direito. Fiscaliza-se para ter certeza de que o direito sobre a obra intelectual está sendo respeitado. Enfim, podem ser apontadas as seguintes distinções entre os direitos e garantias fundamentais:

a) os direitos se refletem pelas disposições meramente declaratórias contidas no texto constitucional. Como normas, existem independente de garantias. Assim, é direito de todos ter uma Administração Pública que respeite as leis e as instituições do Estado;

b) as garantias refletem disposições assecuratórias do mesmo texto, e só se justificam em face da potencialidade de desrespeito aos direitos. Assim, se a Administração Pública, por seus agentes, não respeita as leis ou as instituições do Estado e lesa direitos individuais, o lesado pode, para restaurar seu direito, valer-se da garantia do mandado de segurança;

c) nem sempre os direitos e as garantias se expressam por dispositivos próprios, sendo até comum estarem confundidos num mesmo dispositivo legal. De qualquer forma, pode-se afirmar que as garantias ou direitos são as prerrogativas que tem o indivíduo em face do Estado e se lhe assentam num non facere, isto é, são limitações impostas aos governantes em beneficio das pessoas, os verdadeiros destinatários de tais garantias e direitos;

d) todo o rol do art. 5º é, em essência, de direitos individuais ou coletivos, porque as garantias também são direitos fundamentais;

e) todavia, alguns destes direitos servem para dar eficácia a outros, por isso são mais que direitos, são garantias;

f) outros, por fim, por representarem verdadeiros dogmas constitucionais direcionadores de toda atividade pública, são mais que direitos e garantias, são mesmo princípios, como o contraditório, a ampla defesa, a presunção de inocência, o devido processo legal e o juiz natural.

É claro, pois, que a propriedade em si não é garantia, mas apenas um direito fundamental, para cuja proteção são destinadas certas garantias, como a impenhorabilidade daquela que for considerada pequena, por lei, ou a certeza de que a desapropriação somente será admitida quando se fundar em critérios de necessidade ou utilidade pública, ou interesse social, sempre mediante procedimento contraditório com ampla defesa, e com a garantia da justa e prévia indenização em dinheiro, ressalvados apenas os casos previstos na própria Constituição e que mais adiante abordarei.


2 – Pequena propriedade rural e sua proteção

2.1 – Noções

Em pelo menos dois dispositivos constitucionais há expressa referência à pequena propriedade rural, ambos remetendo à lei ordinária a tarefa de explicitar o que se entender como tal. Seria o imóvel com área menor que 10 hectares? Ou seria aquele de área até um módulo? Se fosse esta a resposta, outra pergunta deveria ser formulada: o que se entender por módulo e qual a sua dimensão. Os dispositivos constitucionais são os seguintes:

"Art. 185. São insuscetíveis de desapropriação para fins de reforma agrária:

I - a pequena e média propriedade rural, assim definida em lei, desde que seu proprietário não possua outra";

"Art. 5° omissis...

XXVI - a pequena propriedade rural, assim definida em lei, desde que trabalhada pela família, não será objeto de penhora para pagamento de débitos decorrentes de sua atividade produtiva, dispondo a lei sobre os meios de financiar o seu desenvolvimento".

Regulamentando o art.185, foi editada a lei 8629/93, que de forma expressa dá o conceito do que sejam a pequena e a média propriedade rural, respectivamente aquela entre 1 (um) e 4 (quatro) módulos fiscais, e de 4 (quatro) a 15 (quinze) módulos. Sob esta ótica, o problema está resolvido, na medida em que não há mais o que discutir: os imóveis com até 15 módulos fiscais não podem ser desapropriados para fins de reforma agrária, vez que a ementa da lei reguladora se refere expressamente ao art. 185, CF. Todavia, duas perguntas principais remanescem, uma delas ainda sem resposta conclusiva:

  1. qual a extensão de um módulo fiscal e qual a relação com o módulo rural;
  2. o conceito de pequena propriedade, dado pela lei 8629/93 se aplica ao art. 5°, XXVI, para fins de impenhorabilidade?

É sobre estas perguntas que passo a discorrer a seguir, a começar por distinguir os módulos rural e fiscal.

          2.2 – Módulo rural e fiscal

Não é difícil de se responder, embora não seja fácil se explicar, o que sejam módulos rural e fiscal., nem tampouco especificar a dimensão de um e outro. De fato, o estatuto de terra (lei 4504/64), define o módulo rural(3) e assim considera a propriedade familiar:

"O imóvel rural que, direta e pessoalmente, explorado pelo agricultor e sua família, lhes absorva toda a força de trabalho, garantindo-lhes a subsistência e o progresso social e econômico, com área máxima fixada para região e tipo de exploração, e eventualmente trabalhado com ajuda de terceiros".

Em outros termos, pode-se dizer que o módulo rural é menor parcela de fracionamento do solo rural, levando-se em conta vários critérios objetivos que permitiriam ao trabalhador dali extrair o seu sustento e o de sua família, absorvendo-lhe toda a força própria de trabalho. Por conseguinte, o tamanho do módulo rural deverá levar em conta, em síntese, a produtividade e os custos de produção em cada região do País. Cabe ao INCRA fixar, para cada município, a dimensão do módulo rural, aliás, como sempre foi feito(4). Ocorre que na mesma lei, porém, aparece o termo "módulo fiscal", unidade usada para servir de base para o cálculo do ITR, e, que, logicamente, não sendo módulo rural, não pode ser confundido com este. O que seja o módulo fiscal é definido pelo art. 4º do decreto 84685, de 06.05.80:

"O módulo fiscal de cada município, expresso em hectares, será fixado pelo INCRA, através de Instrução Especial, levando-se em conta os seguintes fatores: a – o tipo de exploração predominante no município; I – hortifrutigranjeira; II – cultura permanente; III – cultura temporária; IV – pecuária; V – florestal; b) a renda obtida no tipo de exploração predominante; c) outras explorações existentes no município que, embora não predominantes, sejam expressivas em função da renda ou da área utilizada; d) o conceito de "propriedade familiar", constante do art. 4º, item II, da lei 4504, de 30 de novembro de 1964. § 1º. Na determinação do módulo fiscal da cada município. O INCRA aplicará metodologia, aprovada pelo Ministro da Agricultura, que considere os fatores estabelecidos neste artigo, utilizando-se dos dados constantes do Sistema Nacional de Cadastro Rural. § 2º. O módulo fiscal fixado na forma deste artigo, será revisto sempre que ocorrerem mudanças na estrutura produtiva, utilizando-se os dados atualizados do Sistema Nacional de Cadastro Rural".

A distinção é relevante em face da diferença de extensão de um para outro. Para citar apenas um exemplo, no município de Hidrolândia, na região da Grande Goiânia, um módulo rural mede 3 hectares, enquanto que o módulo fiscal mede 12 hectares. A implicação é enorme, porque, a se adotar o número de módulos rurais, imóvel pequeno naquele município seria o que tivesse até 12 hectares, enquanto que pelo conceito adotado pela lei 8629/93 que se refere ao módulo fiscal, passa para 48 hectares! Seria de se perguntar quantas pessoas, neste país, em região valorizada e próxima de grande centro, teriam um imóvel rural com área de 48 hectares. Certamente, a resposta seria a de que, de todos os proprietários rurais, bem poucos não seriam considerados pequenos.

Sem embargo, não há muito o que discutir diante da clareza do texto da lei 8629/93, pois, para fins do art. 185, CF, é pequeno o imóvel rural com até 4, e, entre 4 e 15 módulos fiscais, é médio. Parece-me, porém, como adiante explicarei, que, para fins do art. 5º, XXVI, CF, ainda não foi fixado o que seja pequena propriedade rural.

          2.3 – Proteção constitucional da pequena propriedade rural

          2.3.1 – Noções

Definido o que seja módulo rural e módulo fiscal, sendo certo que o primeiro conceito utilizado para se definir a propriedade familiar nos termos do art. 4º, II e III, do Estatuto da Terra, e que o segundo é unidade de medida para fins de cálculo do ITR, insta considerar tais medidas para fins de proteção constitucional da pequena propriedade rural, haja vista que tanto o art. 5º, XXVI, como o art. 185, ambos da Constituição Federal, a ela se referem, mas ambos clamam por uma lei regulamentadora. Partindo-se do que dispõe o art. 5º, § 1º, CF, de que as normas definidoras de direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata, o que dispensa lei, e que a impenhorabilidade do imóvel pequeno é garantia fundamental, tem-se um pequeno problema, qual seja, como dar aplicação à garantia se ainda não há lei definido o que seja pequena propriedade rural. Para incrementar a discussão, há a lei 7513/86, que acrescentou o inciso X ao art. 649, CPC, dispondo sobre a impenhorabilidade do imóvel de até um módulo, sem especificar se se trata de módulo rural ou módulo fiscal. Por outro lado, regulamentando o art. 185, CF, veio a lei 8629/93, que se utilizou do conceito de módulo fiscal para garantir a impossibilidade de desapropriação do pequeno e médio imóvel rural. É, pois, com estas variáveis que passo a analisar duas garantias constitucionais da pequena propriedade rurais, quais sejam, a impossibilidade de desapropriação e a impenhorabilidade.

          2.3.2 – Impossibilidade de desapropriação por interesse social

dispõe, inicialmente, o art. 5°, XXIV, CF, que "aa lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, ressalvados os casos previstos nesta Constituição". Portanto, considerando que a propriedade não é direito absoluto, o Poder Público poderá retirá-la compulsoriamente do proprietário, quando julgar relevante por questão de necessidade ou utilidade pública, ou mesmo por interesse social, sempre pagando ao expropriado valor justo, prévio e em dinheiro, ressalvados os casos previstos na própria Constituição.

A desapropriação é, pois, uma das formas mais drásticas e usuais de intervenção do Estado na propriedade privada e poderia representar uma contraditio in adjecto se não fosse a previsão constitucional, porque, de fato, inicialmente, o texto fundamental diz garantir o direito de propriedade, o que não basta para que o direito de propriedade esteja realmente protegido.

Sem embargo da desapropriação por necessidade ou utilidade pública, que pode incidir sobre qualquer bem, mesmo que seja produtivo, é essencial considerar as peculiaridades da desapropriação por interesse social. Desde que precedido de pagamento prévio, justo e em dinheiro, é lícito à União desapropriar, por necessidade ou utilidade pública, qualquer bem, grande, médio ou pequeno, produtivo ou improdutivo, rural ou urbano, móvel ou imóvel, único do proprietário, ou apenas um entre muitos.

Durante os debates constituintes, até se chegar à redação do atual dispositivo, discutiu-se quais seriam os imóveis que poderiam ser desapropriados para fins de reforma agrária, e se concluiu desde logo que o pequeno e o médio seriam insuscetíveis de tal forma de intervenção. Logo mais, por pressão dos "com-terra", se convencionou também que a propriedade produtiva, de qualquer tamanho que fosse, não seria desapropriada para fins de reforma agrária. A questão é, de certa forma, lógica: de nada adianta desapropriar uma pequena ou média propriedade de uma pessoa para passar à outra, porque não resolve o problema agrário do País e gera um desgaste político considerável; por outro lado, de nada adiante, e nem justo é, se tirar a grande propriedade de quem produz, só porque é grande, e passar para quem, talvez, nuca tenha produzido e nem saiba como fazê-lo.

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Assim, por interesse social somente poderá ser desapropriado o imóvel rural que não cumpre a função social(5), caso em que o pagamento da indenização, a despeito de ser prévio e em valor justo, não será em dinheiro, mas, sim em títulos de dívida agrária resgatáveis em até 22 anos, porque o prazo de 20 anos começa a ser contado a partir do segundo ano de sua emissão.

A finalidade do dispositivo constitucional é expressa: tirar o imóvel rural de quem tem, mas não cumpre a função social da propriedade, para passar para quem não tem e quer trabalhar a terra para dali tirar o sustento seu e de sua família. Prova maior disso é que o beneficiado com a terra adquirida com a reforma agrária não poderá negociá-la pelo prazo de 10 anos(6). Resolvidas tais questões de pronto no texto constitucional, incumbiu-se ao legislador ordinário de regulamentar o que se entender por pequena e média propriedade rural (art.185, CF), e a tarefa foi cumprida com a edição da já citada lei 8629/93, para quem é pequeno o imóvel com até 4, e acima disto até 15 módulos fiscais, é médio, sendo ambos insuscetíveis de desapropriação para fins de reforma agrária.

Enfim, quanto à desapropriação, pode-se dizer que, sendo para fins de necessidade ou utilidade pública, qualquer imóvel, produtivo ou improdutivo, rural ou urbano, pequeno, grande ou médio, único do proprietário ou apenas um entre muitos, pode ser desapropriado, mas a indenização deverá ser paga a vista e em dinheiro(7). Se, porém, a desapropriação se fundar em interesse social, para fins de reforma agrária, não há como incidir sobre qualquer propriedade produtiva, e nem tampouco sobre a pequena e a média, produtiva ou não, desde que seja a única de que disponha o proprietário. Não importa nem mesmo se o proprietário a mantém por mero deleite, para fins-de-semana, ou com intenção produtiva. O que lhe garante a impossibilidade de desapropriação é o fato de ser pequena ou média e ser o único imóvel rural do proprietário. Aliás, dando correta aplicação à garantia constitucional, decidiu o STF que em caso de herança, se a área que couber a cada herdeiro for menor que ditos módulos, ficará imune à desapropriação para fins de reforma agrária, ficando o julgado assim ementado:

EMENTA: Desapropriação - Enquadramento do imóvel como revelador de pequena ou média propriedade - Sucessão "mortis causa". Aberta a sucessão, o domínio e posse da herança transmitem-se, desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários - artigo 1.572 do Código Civil. Daí a insubsistência de decreto para fins de desapropriação, no qual restou considerado o imóvel como um todo, olvidando-se o estatuto da terra - lei n. 4.504, de 30 de novembro de 1964, no que, mediante o preceito do par. 6. Do artigo 46, dispõe que, no caso de imóvel rural em comum, por forca de herança, as partes ideais para os fins nele previstos são consideradas como se divisão houvesse. Propriedades diversas enquadradas como médias por não suplantar, cada qual, considerada de per si, o teto de quinze módulos fiscais - Inciso III do artigo 4º da lei 8629/93. MS-22045/ES, relator Ministro Marco Aurélio, DJ -30-06-95.

Tratas-se, pois, de garantia constitucional absoluta, que protege não apenas o proprietário original, mas também os seus herdeiros.

          2.4.1 – Noções

Outra proteção constitucional da pequena propriedade rural é a garantia da impenhorabilidade, cujo tema ainda tem suscitado debates por pelo menos duas questões: primeiro, porque o art. 5°, XXVI, CF, clama por uma lei que defina o que se entender por pequena propriedade rural(8); segundo, porque dispõe o § 1º do mesmo artigo que "As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata". Como conciliar os dois dispositivos, se a pequena propriedade é impenhorável, mas o seu conceito depende de lei? Como dar aplicação ao dispositivo se o art. 5º, § 1º, estabelece que as normas que definem direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata, isto é, independem de lei? Poderia ser utilizado o conceito de pequena propriedade dado pela lei 8629/93, regulamentadora do art. 185, que trata da reforma agrária, para considerar impenhorável o imóvel com até 4 módulos fiscais? Por outros termos, a lei a que se refere o art.5°, XXVI, poderia ser a própria lei 8629/93, ou haveria necessidade de se editar outra? Neste caso, poderia ser tomado o conceito dado pelo art. 649, X, CPC, que declara absolutamente impenhorável o imóvel rural que, sendo o único de que disponha o devedor, tenha área de até um módulo(9)?

          2.4.2 – O inciso X do art. 649, CPC, e o art. 5º, XXVI, CF

Penso que para responder as perguntas formuladas no tópico anterior é preciso ver a história. O inciso X foi inserido no art. 649 do CPC pela lei 7513, de 09.07.86, época em que os brasileiros menos avisados ainda viviam iludidos com o "sucesso" do Plano Cruzado(10). Todavia, àquela altura dos acontecimentos muitos pequenos agricultores, que haviam tomado empréstimos em bancos para custear suas lavouras confiando na "inflação zero" se viam de uma hora para outra tendo seus bens penhorados porque não podiam pagar as dívidas. Enfim, o quadro que se começava a desenhar era a de bancos se tornando fazendeiros, e estes em sem-terra. A lei 7513 foi a primeira tábua de salvação dos pequenos proprietários, e na sua esteira é que veio o texto constitucional, que, embora seja de 05.10.88, começou a ser elaborado quando da eleição do Congresso Constituinte, em 15.11.86, embora os trabalhos, de fato, começaram mesmo após a posse dos eleitos, em 01.02.87, sendo que ainda os primeiros meses foram gastos com a elaboração e aprovação do regimento interno da Assembléia Nacional Constituinte. Pois bem. Eleito e empossado o Congresso Constituinte, o quadro econômico do País era negro, com a inflação mensal subindo vertiginosamente e já alcançando a casa dos 40% ao mês, o desemprego em alta e as greves, no campo e na cidade, assolando o País de norte a sul. Era preciso fazer algo. Então, a Assembléia Nacional Constituinte, verdadeiro e único agente do Poder Constituinte, que é ilimitado, houve por bem declarar a impenhorabilidade da pequena propriedade rural, cujo conceito seria dado por lei, desde que a dívida fosse oriunda de sua atividade produtiva, exigência que não havia sido feita pela lei 7513/86. Portanto, para o constituinte a garantia da impenhorabilidade pressupõe apenas que se trate de pequena propriedade rural e que a dívida seja decorrente de sua própria atividade produtiva, sem se perquirir se é a única de que dispõe o devedor e se é, ou não, trabalhada pela família, fugindo, pois, até mesmo dos parâmetros utilizados para torná-la insuscetível de desapropriação para fins de reforma agrária, bem como da regra abraçada pelo art. 649, X, CPC. De fato, para que o pequeno imóvel rural não esteja sujeito à desapropriação para fins de reforma agrária, é necessário que o bem seja o único imóvel rural que integre o seu patrimônio, regra que foi copiada, em parte, do art. 649, X, CPC, segundo o qual, para não se sujeita à penhora o imóvel rural não pode ter mais que um módulo e ser o único de que disponha o devedor.

Em resumo, segundo o art. 649, X, o imóvel com área de até um módulo, quando for o único de que disponha o devedor, é impenhorável, salvo quando dado em hipoteca para fins de financiamento agropecuário. Não se perquire, porém, a origem da dívida, como se decorre, ou não, da atividade produtiva do devedor, ou se foi contraída com o tratamento de doenças, ou a passeio, ou por outras causa. O imóvel de até um (1) módulo é impenhorável somente por ser imóvel de apenas 1 módulo e ser o único bem do devedor, o que bastou ao legislador para excluí-lo do rol dos bens penhoráveis e incluí-lo justamente no dos impenhoráveis de forma absoluta, o que importa dizer que não poderá ser penhorado nem mesmo com anuência do devedor.

Por seu turno, a garantia constitucional não tem este alcance, limitando-se à dívida contraída em benefício da atividade produtiva do próprio imóvel, que seja trabalhado pela família do devedor, tenha ele somente este ou mais imóveis, o que leva inexoravelmente à conclusão de que o art. 649, X, não regulamenta o art. 5°, XXVI, CF, nem foi por ele revogado. Ambos protegem a pequena propriedade rural, mas partem de premissas diferentes. Aliás, nem teria sentido concluir de modo diverso, porque, como foi visto, o imóvel rural de até um módulo é, somente por este fato e por ser o único do devedor, impenhorável, independente da natureza ou origem da dívida, enquanto que a garantia constitucional somente protege a pequena propriedade trabalhada pela família contra a penhora por dívidas decorrentes de sua atividade produtiva.

Se isto é certo, o mesmo não se pode dizer que qual módulo se refere o art. 649, X, CPC, ou seja, se se cuida do módulo rural ou do módulo fiscal. Tomando-se como exemplo o mesmo município do Hidrolândia, onde o módulo rural mede 3 hectares e o fiscal, 12, se tomarmos em conta este último, seria impenhorável o imóvel com até 12 hectares, o que eqüivaleria a considerar impenhorável o imóvel com até 4 módulos rurais. É aceitável este ponto de vista, haja vista que o módulo rural é a menor unidade de parcelamento do solo, ou seja, nenhum imóvel rural pode ser dividido em porções menores que um módulo rural, porque cada qual deve corresponder, pelo menos, à propriedade familiar (art. 4º, II e III, lei 4504/64). A questão foi enfrentada pelo Tribunal de Justiça de Goiás e recebeu decisão controvertida, como se vê dos seguintes julgados da primeira e terceira câmaras cíveis:

EMENTA: "Agravo de instrumento. Penhora. Área inferior a um módulo fiscal. Impenhorabilidade. O imóvel rural de área até um módulo fiscal, assim fixado pelo INCRA, não pode ser objeto de penhora desde que seja o único de que disponha o devedor, só pode ser onerado pela hipoteca em face de financiamento agropecuário (inteligência do art. 649, X do CPC). Agravo provido. TJGO, Primeira Câmara Cível, DJ n 12188 de 17/11/95 p 8, acórdão de 31/10/95, relator Des. Arivaldo da Silva Chaves".

EMENTA: "Impenhorabilidade de imóvel rural. Distinção entre módulo rural e módulo fiscal. Agravo improvido. A impenhorabilidade do imóvel rural de que trata o art. 649, I, do Código de Processo Civil, com a redação da lei 7.513/86, é estabelecida pela área do módulo rural, idêntica à fração mínima de parcelamento, e não pelo módulo fiscal, figura criada para definir o cálculo da ITR e utilizável para o conceito de pequena propriedade nos termos da Lei 8.629/93. Improvido por unanimidade. TJGO, Terceira Câmara Cível. DJ n 12232 de 22/01/96 p 5, acórdão de 05/12/95, relator Des. Jamil Pereira de Macedo".

Para o primeiro julgado, o módulo fiscal é o que define a impenhorabilidade do art. 649, X, CPC, ao passo que para o segundo, é o módulo rural. Nenhum dos dois julgados, porém, cogitou de distinguir um e outro módulos e nem se preocupou de medir as conseqüências das posições que adotaram. Parece certo, porém, que se deve considerar impenhorável o imóvel com até um módulo fiscal, não o rural, porque seria o mesmo que nada, haja vista que não há, sob o manto da legislação em vigor, imóvel menor que esta fração. Portanto, tenho que o imóvel mencionado no art. 649, X, CPC, é aquele com até um módulo fiscal, o que pode representar algo como até 4 módulos rurais, ou mais, dependendo da área que for fixada pelo INCRA para cada um em cada região.

          2.4.3 – O art. 5º, XXVI, CF, e a lei 8629/93

Restando claro que o art. 649, X, CPC, não regulamenta o art. 5º, XXVI, CF, voltamos à pergunta inicial, qual seja, se pode ser utilizada a lei 8629/93 para definir o imóvel impenhorável. Sobre esta questão, os tribunais já se debruçaram algumas vezes. Para demonstrar o pomo da controvérsia, relato caso concreto ocorrido na comarca de Hidrolândia quando fora penhorado um imóvel com pouco mais de 28 hectares e cujo proprietário requereu a declaração de impenhorabilidade, sendo o pedido denegado. Para se ver livre da arrematação, entrou com agravo de instrumento e, em seguida, com o mandado de segurança 5.770/-8/101, relator o i. desembargador Jales Ferreira da Costa, para receber o efeito suspensivo. Concedida a liminar pelo E. TJGO, prestei as informações de estilo nos seguintes termos:

"Em outubro de l989 foi protocolada nesta Comarca a carta precatória acima, de citação, penhora, avaliação e praça, tendo a constrição judicial recaído sobre uma gleba de terras de 5 alqueires e 63 litros. Posteriormente, ao serem julgados improcedentes os embargos do devedor, em 02/03/94 o credor reapresentou a carta e pediu prosseguimento à execução, com avaliação e venda judicial da referida gleba. Feita a avaliação, embora regularmente intimado, o devedor-impretrante não se manifestou sobre ela, e, pelo despacho de fs. 36-verso, de 06/04, aceitei o valor e designei praça para os dias 16 e 27 de maio último, sendo o devedor intimado em 18/04/94, mesma data da juntada aos autos. Em 12/05/94, por novo procurador, o devedor argüiu nulidade da penhora (realizada em 1989), ao argumento de que a lei 8009/90 impede que recaia em bem de família, além do que o art. 5, XXVI da CF estabelece que a pequena propriedade rural, definida em lei, não será objeto de penhora para pagamento de débitos decorrentes de sua atividade produtiva, desde que trabalhada pela família. Em 16/05 juntou cópia de acórdão proferido no Agravo de Instrumento nº 7841-6/180, da Comarca de Jussara, em que foi Relator o Des. Jales Ferreira da Costa, que considerou impenhorável área menor que 4 módulos fiscais, embora, ao transcrever a ementa, tenha o procurador se referido a módulos rurais, coisas absolutamente distintas, porque, nesta Comarca, o módulo fiscal é de 35 hectares, enquanto o módulo rural é de 3 hectares. Pelo despacho de fs. 71 indeferi o pedido por considerar que a lei 8009/90 não se aplica ao caso, e também porque não considerei como pequena a sua propriedade, de 5 alqueires e 63 litros, além do que não fez prova de que o imóvel seja trabalhado pela família e que a dívida fosse decorrente de sua própria atividade produtiva. Mantive a realização da praça, mas na primeira não houve licitante. Em fs. 73/75, com certidões que procuram demonstrar que a gleba é seu único bem, o devedor, antes da segunda praça, insistiu em que tem ela menos de 4 módulos rurais e, fundado na lei 8629/93, pediu mais uma vez a suspensão. Antes que o pedido fosse apreciado, foi concedida a liminar no referido Mandado de Segurança, a que ora respondo, e considero a questão até singela, embora interessante.

DO DIREITO CORRETAMENTE APLICÁVEL

Pois bem. Primeiramente, insisto em que a lei 8009/90 não se aplica ao caso, posto que destinada a resguardar a residência familiar, e não área de terras. Se assim fosse, ninguém, nem mesmo os grandes latifundiários, desde que residentes no latifúndio, poderiam sofrer constrição judicial para pagamento de suas dívidas. Definitivamente, entendo que a lei 8009 só se aplicaria, se fosse o caso, à casa e móveis onde o devedor resida, mas não sobre a área de terras, vez que trata-se de bem divisível. Mesmo silente a lei a respeito, a hermenêutica jurídica conduz ao entendimento de que não se aplica a todo o imóvel rural, até porque seus dispositivos são no sentido da habitação e não de produção. Assim, o caput do art. 1º., o art. 4º e, em especial, o § 2º deste artigo este sim destinado a imóvel rural, especificando restringir-se à moradia. Também o inc. VII do art. 3º, que fala em fiança, quando, no caso, analogicamente, o impetrante está sendo executado na condição de avalista. Também não se aplica ao caso a lei 8629/93, vez que editada para regulamentar a Constituição Federal na parte relativa a reforma agrária, mais especificamente a desapropriação para este fim, conforme se vê da sua ementa: "Dispõe sobre a regulamentação dos dispositivos constitucionais relativos à reforma agrária, previstos no Capítulo III Título VII, da Constituição Federal."

Efetivamente, a lei 8629/93 estabelece que o imóvel entre 1 e 4 módulos fiscais é considerado pequena propriedade rural, mas deixa claro que é para os fins da presente lei (art. 4.) e não serão objetos de desapropriação para fins de refroma agrária. Veja-se que a Lei maior, e esta que a regulamenta, apenas o exclui, inclusive, da desapropriação para fins de reforma agrária, mas não impede que seja por interesse ou necessidade públicos. Ora, módulo fiscal é medida de extensão para fins tributários e não agrários. Para este, a medida é o módulo rural, fixado pelo INCRA para cada região, e que é o que se denomina também de fração mínima de parcelamento do solo. Segundo a tabela de fs. 80 dos autos (anexa), nesta Comarca o módulo fiscal é de 35 Ha, enquanto o módulo rural é de 3,0 Há. Por conseguinte, 4 módulos fiscais totalizam 140 Ha, o que é um absurdo considerar como pequena propriedade, para fins de impenhorabilidade. Se assim fosse, nesta Comarca, como de resto na maioria das regiões produtivas do País, dificilmente teríamos algum imóvel rural penhorável, posto que a grande e esmagadora maioria reside na faixa até 30/50 Há. Portanto, não há outra interpretação a ser feita, senão a de que a lei 8629/93 só se destina a regulamentar o art. 185, I da CF, e não o art. 5, XXVI. O primeiro refere-se à desapropriação para fins de reforma agrária, (não se referindo nem mesmo à despropriação por interesse ou necessidade públicos) e dela exclui os imóveis rurais de até 4 módulos fiscais (140 Ha); o segundo se refere à impenhorabilidade de pequena propriedade, mas a lei necessária ainda não foi editada, e, certamente, quando o for, será em módulos rurais, que servirá também para limitar o parcelamento do solo. Esta é a expressão utilizada pelo Estatuto da Terra e demais leis agrárias. Resumindo, a área do impetrante é de 5 alqueires e 63 litros. Cada alqueire corresponde a 48.400 M2, ou 80 litros. O hectare mede 10.000 M2. Assim, a área do impetrante equivale a 28,01 hectares, o que, para os padrões brasileiros , jamais pode ser considerada pequena propriedade, sob pena de se tutelar os maus pagadores, ou, o que é muito pior, restringir o acesso aos meios de financimento aos bons pagadores, porém, que tenham apenas o seu imóvel de até 140 Ha, porque nenhuma banco concederá o crédito se não houver lastro para garantir o pagamento.

AS PROVAS QUE O IMPETRANTE NÃO FEZ, E QUE SÃO ESSENCIAIS PARA A EFETIVAÇÃO DA LIQUIDEZ E CERTEZA DO SEU ALEGADO DIREITO

Por fim, além de não ser pequena propriedade, o impetrante não fez nenhuma prova de que o imóvel seja explorado (só) pela própria sua família. Pelo contrário, informações fidedignas do Avaliador e do Oficial de Justiça desta Comarca, que lá estiveram por mais de uma vez cada um, é de que ele tem empregado como, pelo menos, tirador de leite e fabricante de queijo. A exploração só pela família é requisito constitucional exigido pelo art. 5, XXVI da CF, cuja falta afasta o impetrante do pretendido favor legal-constitucional, destinado mesmo só aos pequenos. Também não fez prova de que a dívida seja decorrente de sua própria atividade produtiva. Também pelo contrário, pela petição de fs. 12/13, e pelo Adendo de fs. 11 e 16, a dívida fora contratada por Indústria e Comércio de Tijolos Dois Irmãos Ltda, tendo o impetrante e outros como avalista, e, nesta qualidade, é que está sendo executado, isto é, como coobrigado. Assim, mesmo que se lhe aplicasse a lei 8009/90, não seria contemplado com o benefício porque ao fiador (porque não dizer, analogicamente, o avalista) não se aproveita (art. 3, VII).

A CONCLUSÃO FINAL

Por conseguinte, e em resumo, a gleba de terras não é pequena propriedade rural, nem é explorada pela família, e nem tampouco e muito menos a dívida é decorrente de sua própria atividade produtiva, sendo, na verdade, avalista de dívida de atividade comercial de indústria cerâmica, e o coobrigado não pode fugir à sua responsabilidade. Ao teor do exposto, tenho como absolutamente improcedente a alegação de nulidade da penhora, razão porque considero correta a decisão de ter mantido a praça. Restrito ao assunto, e certo de ter prestado estas informações com base nos ditames do direito e da justiça, valho-me do ensejo para ratificar a Vossa Excelência meus protestos de consideração e respeito".

No mérito, porém, o TJGO acabou por dar provimento ao agravo de instrumento, entendendo que é impenhorável o imóvel rural com até quatro módulos fiscais, sem nem mesmo ter considerado que no caso concreto a dívida era decorrente de atividade industrial do devedor, não de atividade produtiva do imóvel.

          2.4.4 – Posição atual do STJ

Passados quase 12 anos de vigência Constituição atual, é certo que ainda não foi editada lei regulamentando o art. 5º, XXVI, CF, o Colendo STJ tem decidido que a lei 8629/93 deve ser aplicada à espécie, sendo, pois, de se considerar impenhorável o imóvel rural com até um módulo fiscal, desde que seja trabalhado pela família do devedor e que a dívida seja oriunda de sua atividade produtiva:

EMENTA: Execução de título extrajudicial. Módulo rural. Penhora. Precedentes da Corte. 1. Na linha de precedentes da Corte não vulnera lei federal a "decisão que se utiliza do conceito de pequena propriedade, assim como definido na Lei nº 8629/93, para considerar impenhorável área rural com 19 hectares", nem que afasta o imóvel rural a que se refere o art. 649, X, do Código de Processo Civil, do conceito de fração mínima de parcelamento. No caso, sendo a área menor de 13 hectares, impõe-se a impenhorabilidade. 2. Recurso conhecido e provido. STJ, RESP 149363/PR. Recurso especial. Fonte DJ de 12/04/1999 p.:144. Terceira Turma. RESP 149363/PR, relator Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, Terceira Turma

Em outro julgado, também da Terceira Turma, decidiu o Colendo Superior Tribunal de Justiça que o módulo a se referir é o fiscal:

DECISÃO: (...) Quanto à penhora, de fato "o ato jurídico praticado pelo agravante, nenhuma garantia de hipoteca possui em seu favor, eis que a fração da área hipotecada é inferior ao módulo rural", isto porque, segundo consta, "o auto de penhora foi lavrado sobre área de apenas 3,0 ha (constituída dentro de um todo maior de 80.000 m²), não perfaz o módulo fiscal da região suficiente para contemplar a pretensão do agravante de penhorabilidade sobre o imóvel rural do agravado, ainda que hipotecada a área através da nota de crédito rural". Daí a correta incidência do art. 4º, § 2º da Lei nº 8.009/90. Nego provimento ao agravo de instrumento. Publique-se. DJ 11/02/2000, p. 00144, Relator Ministro Nilson Naves, Terceira Turma".

Por fim, em voto vencedor do Ministro Ruy Rosado de Aguiar, a Quarta Turma do mesmo Tribunal houve por bem entender que a expressão "módulo rural" do art. 649, X, não se relaciona com o conceito de fração mínima de parcelamento, do que pode-se deduzir que se aproximou do conceito de módulo fiscal. O julgado ficou assim ementado:

EMENTA: modulo rural. Impenhorabilidade. Execução. O imóvel rural impenhorável, de ate um modulo, a que se refere o artigo 649, x, do CPC, e o que tem as dimensões mínimas que assegurem ao pequeno agricultor e a sua família condições de sobrevivência, não se confundindo com o conceito de fração mínima de parcelamento. Tratando-se de norma protetiva do pequeno produtor, deve ser interpretada um favor dele. REsp 66672/rs; Recurso Especial 1995/0025449-2, DJ 30/10/1995, p. 6774, Quarta Turma.

Em síntese, pois, para o STJ, não havendo lei regulamentadora do art. 5º, XXVI, o parâmetro para se utilizado para se definir qual o imóvel rural impenhorável é mesmo da lei 8629/93, que se vale do conceito de módulo fiscal, não de módulo rural.

          2.4.5 – Posição atual do STF

Por ser matéria de índole constitucional, a questão não poderia ficar afastada de apreciação pelo STF, e, realmente, foi apreciada e decidida por mais de uma vez. Uma das decisões foi a decisão tomada Ministro Sepúlveda Pertence, ao relatar o RE 136.753-RS, em 13.2.97.S, conforme notícia veiculada no informativo 59, onde consta:

"Não ofende o art. 5º, XXVI, da CF decisão que, em face da não edição da lei regulamentadora nele mencionada, aplica analogicamente a definição de "propriedade familiar", constante do art. 4º, II, do Estatuto da Terra (Lei 4504/64), conferindo, desse modo, plena eficácia à norma constitucional"

Para o Ministro, pois, em o módulo a prevalecer é o rural, utilizado pelo Estatuto da Terra para conceitual a propriedade familiar. Todavia, em 1998 a mesma corte voltou a Capreciar a questão, agora na pena do Ministro Marco Aurélio Melo, ao julgar agravo de instrumento interposto contra decisão do presidente o TJPR, que negara seguimento a recurso extraordinário:

"Penhora. Pequena propriedade rural. Definição. Agravo desprovido. O recurso extraordinário cujo trânsito busca-se alcançar foi interposto, com alegada base na alínea "a" do permissivo constitucional, contra acórdão proferido pelo Tribunal de Alçada do Estado do Paraná, assim sintetizado: "Impenhorabilidade. Pequena propriedade rural. Definição de módulo rural. Incidência do art. 649, X, do CPC. Apelação improvida. O módulo do imóvel rural referenciado como impenhorável, segundo o inciso X do art. 649 do CPC, não se confunde com fração mínima de parcelamento de solo, reservada esta a desmembramento da menor parte possível da área agrícola, tendo aquele sua dimensão definida segundo fatores específicos de apuração, entre os quais se enfeixam o de localização, tipo de cultura e espécie de exploração rural incidente sobre o imóvel, definidos através da complexa lei agrária (folha 23)" Articula-se com o malferimento do artigo 5º, inciso XXVI, da Carta Política da República, insistindo-se na possibilidade de penhorar-se a gleba em questão. Alude-se ao fato de não encontrar justificativa plausível para os parâmetros utilizados pela Corte de origem relativamente à fixação do módulo mínimo da pequena propriedade rural a ser protegido. Sustenta-se ainda haverem sido desprezados os demais requisitos previstos no preceito para ter-se por impenhorável o imóvel (folha 29 à 34). O Juízo primeiro de admissibilidade disse da falta de prequestionamento (folha 37 à 41). O especial simultaneamente interposto teve a mesma sorte do extraordinário, seguindo-se a protocolação de agravo, não conhecido no âmbito do Superior Tribunal de Justiça (folha 44). Conforme certificado à folha 43-verso, não foi apresentada contraminuta. Recebi os autos em 22 de junho de 1998. 2. Na interposição deste agravo foram observados os pressupostos de recorribilidade que lhe são inerentes. A agravante providenciou o traslado das peças mencionadas no artigo 544, § 1º, do Código de Processo Civil, e os documentos de folhas 10, 11, 44 e 45 evidenciam a regularidade da representação processual e do preparo. Quanto à oportunidade, a decisão atacada foi veiculada no Diário de 12 de agosto de 1997, terça-feira (folha 43), ocorrendo a manifestação do inconformismo em 22 imediato, sexta-feira (folha 3), e, portanto, no prazo assinado em lei. A norma evocada pela agravante implica garantia constitucional da parte contrária ao dispor que: "A pequena propriedade rural, assim definida em lei, desde que trabalhada pela família, não será objeto de penhora para pagamento de débitos decorrentes de sua atividade produtiva, dispondo a lei sobre os meios de financiar o seu desenvolvimento". Pois bem, cumpre, então, perquirir o que se entende como pequena propriedade rural. A lei 8629, de 25 de fevereiro de 1993, define-a com base na área compreendida entre um e quatro módulos fiscais e muito embora tal diploma diga respeito à desapropriação-pena do artigo 185 da Constituição Federal, iniludivelmente, fixa os parâmetros concernentes à pequena propriedade, e esta não pode ser considerada de forma distinta, tendo em conta tratar-se de desapropriação ou penhora. É que está prevista em um mesmo diploma, ou seja, na Constituição Federal e, por isso mesmo, deve ter definição única. Tenho como aplicável à espécie a citada lei, não conferindo à referência à desapropriação eficácia restritiva. De qualquer modo, mesmo que não se adote essa óptica, há de distinguir-se entre pequena propriedade e módulo rural mínimo, definido pela legislação competente. A coincidência não é necessária. As regras concernentes às posturas municipais podem direcionar de maneira a chegar-se a extensão menor que a definidora da pequena propriedade. E isto ocorre no tocante ao Município de Moreira Sales, no que viabilizado desmembramento a desaguar em três hectares, havendo propriedade de cinco hectares. No artigo 4º da lei 4.504, de 30 de novembro de 1964 - estatuto da terra -, alude-se ao módulo rural, definindo-se como propriedade familiar o imóvel que, direta e pessoalmente explorado pelo agricultor e sua família, absorva-lhes toda a força do trabalho, garantindo-lhes a subsistência e o progresso social e econômico, com área máxima fixada para cada região e tipo de exploração e, eventualmente, trabalhado com a ajuda de terceiros. Ora, como salientado pela Corte de origem, as normas de regência revelam que, em se tratando da cultura de algodão, o módulo rural no Município de Moreira Sales alcança vinte hectares. Assim sendo, a área do agravado, possuindo 12,10 hectares, surge como impenhorável. A agravante, por atuar no meio rural, deveria ter conhecimento desses parâmetros. Mostra-se consentâneo com a regra constitucional o enfoque dado à controvérsia pelo Juiz Relator, Dr. Ronald Moro. O provimento atacado mediante o extraordinário, lavrado com estrita observância da estrutura que lhe é própria, com fundamentação elogiável, presta homenagem à garantia constitucional que, repita-se, milita não a favor do credor, mas do devedor, sendo excepcional a articulação de violência pelo primeiro. 3 - Por tais, conheço do pedido formulado neste agravo, mas a ele nego acolhida. 4 - Publique-se. Brasília, 24 de agosto de 1998. Ministro Marco Aurélio"

Portanto, a para a Corte Maior do País o imóvel rural de até 4 módulos fiscais, não módulo rural, é impenhorável, vez que, adotando uma linha conceitual unitária, aplica-se a lei 8629/93 para regulamentar o art. 5º, XXVI, CF. Todavia, insisto, parece que o respeitável Ministro também não se atentou para a diferença necessária entre módulos rural e fiscal, tanto que dá aplicação à lei 8629/93, que se utiliza do último conceito, mas faz referência a um trecho do julgado recorrido que se refere ao módulo rural, dizendo que "como salientado pela Corte de origem, as normas de regência revelam que, em se tratando da cultura de algodão, o módulo rural no Município de Moreira Sales alcança vinte hectares".

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Sobre o autor
Ari Ferreira de Queiroz

juiz de Direito, professor de Direito da Universidade Católica de Goiás e da Escola Superior da Magistratura, mestrando em Direito do Estado pela Universidade de Franca (SP), doutorando em Direito Público pela Universidad del Museo Social Argentino (Buenos Aires)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

QUEIROZ, Ari Ferreira. Proteção constitucional da pequena propriedade rural. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 45, 1 set. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1676. Acesso em: 24 abr. 2024.

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