XXX, objetivando o trancamento da ação penal nº XXXX.71.18.000668-9, que tramita perante o Juízo da Vara Federal Criminal de Carazinho/RS.
Segundo se depreende dos autos, o Ministério Público ofereceu denúncia em desfavor do ora paciente, dando-o como incurso nas sanções do artigo 334 do Código Penal. A exordial foi redigida nas seguintes letras (fls. 15-6):
"No dia 13 de março de 2005, no Município de Seberi/RS, o denunciado XXXXX XXXXXXX iludiu totalmente o pagamento de imposto devido pela entrada de mercadoria no país.
Naquela ocasião, o acusado transportava consigo, a bordo do ônibus da empresa XXXXXX, placas XXX XXXX, mercadorias avaliadas em R$ 9.525,50 (nove mil, quinhentos e vinte e cinco reais e cinqüenta centavos) oriundas do Paraguai, conforme descrito na relação anexa ao auto de infração.
(...) As mercadorias apreendidas encontravam-se desacompanhadas da documentação comprobatória de recolhimento dos impostos, de forma que o acusado iludiu o pagamento do Imposto de Importação e IPI, incidentes sobre os produtos, no montante de R$ 4.762,75 (quatro mil, setecentos e sessenta e dois reais e setenta e cinco centavos)."
Consoante se verifica do sistema de acompanhamento processual da Justiça Federal, a peça acusatória foi recebida em 26 de outubro de 2007, sendo determinada a expedição de Carta Precatória (15.05.2008) para a audiência preliminar de suspensão condicional do processo, nos termos do artigo 89 da Lei nº 9.099/95.
Contra o seguimento da persecução criminal foi ajuizado o presente mandamus. Nas razões (fls. 02-13) os Impetrantes aduzem, em síntese que, "não há como considerar justo o motivo originário da ação penal, quando sequer a fazenda nacional tem interesse na execução fiscal do valor capitaneado pela denúncia". Apontam ilegalidade na instauração da peça acusatória, uma vez que há nítido desinteresse fiscal, conforme preceitua o art. 20 da Lei nº 10.522/02.
Diante disso, requerem a concessão liminar da ordem para ´sustação do andamento do processo´ e, no mérito, o trancamento da ação penal.
A pretensão merece acolhida.
Sobre o tema, trago à colação percuciente análise realizada pelo ilustre magistrado Ricardo Rachid de Oliveira, nos autos do Recurso em Sentido Estrito nº XXXX.70.02.003142-8, nas seguintes letras:
"(...) não há como iniciar-se uma persecução penal, muito menos condenar alguém, por ter iludido tributos num valor que é considerado desimportante pelas instâncias responsáveis pela cobrança civil dos créditos tributários.
Isso porque, a adoção e aceitação do princípio da insignificância é um corolário da aceitação dos princípios da ultima ratio, intervenção mínima do direito penal e proporcionalidade.
A aceitação de tais princípios ultrapassa a mera opção ideológica do intérprete. Trata-se de uma injunção constitucional.
(...) a partir do direito penal, o Estado se vale da maior violência permitida como sanção, é que não só a atividade produtora de normas penais incriminadoras deve estar submetida a limites que garantam a legitimidade no uso da violência institucional, mas também a atividade dos juristas deve ser voltada a um direito penal mínimo.
Tem-se como certo, portanto, que a pena criminal é uma medida de intervenção em bens e valores consagrados e protegidos constitucionalmente, dentre os quais se ressalta a liberdade. Intervenção dessa ordem deve ser sempre excepcional, dela só podendo se valer o Estado para a proteção de bens e valores de igual consagração constitucional e na medida da real necessidade do uso de meio tão invasivo. (...)
No que diz respeito à aplicação do princípio da insignificância para o delito de descaminho, permitir a condenação ou o prosseguimento de um processo penal contra quem iludiu menos do que R$ 10.000,00 em tributos significa retirar do direito penal seu caráter de subsidiariedade (de soldado de reserva) e colocar a sanção violenta à frente dos meios ordinários de reparação civil.
Se é certo que o bem jurídico tutelado é a arrecadação tributária, a tutela de tal bem jurídico se faz, conforme o caso, no âmbito administrativo com a aplicação de sanções pecuniárias (multa) e decretação de perdimento dos instrumentos da infração e da mercadoria; no âmbito civil com a reparação do valor do tributo evadido; e no penal com a imposição de pena criminal.
Ora, se o Estado se impõe um valor limite para a tutela civil do bem jurídico em causa, não se concebe porque esse mesmo valor não sirva de limite para a tutela penal do mesmo bem jurídico. Afinal é o direito penal a ultima ratio e ele é quem deve ser mínimo por injunção constitucional; ele é quem é o subsidiário, e não o contrário!
Nesse ponto, nem mesmo o caráter eminentemente extrafiscal do imposto de importação pode servir de óbice, como este próprio magistrado já chegou a considerar. A utilização da exação com vistas a atingir fim diverso do meramente econômico, como por exemplo o da proteção à indústria no caso do imposto de importação, ou o de desestimular o tabagismo, no caso da alíquota de 330% de IPI incidente sobre cigarros, se dá pela via da exação mesma, ou seja, se dá pelo incremento do valor do tributo incidente sobre a atividade econômica que se busca desestimular, ou o oposto em relação às que se busca fomentar. (...)
Por certo, não se está considerando insignificante o valor de R$ 10.000,00. É, evidentemente, um valor substancial ainda mais se considerarmos o valor do salário mínimo vigente. Mas não é disso que se trata, quando se está a aplicar o princípio da insignificância. A insignificância, aqui, é jurídica. E juridicamente, o Estado, por lei, declara que não tem interesse em movimentar a máquina estatal para cobrar valores inferiores a R$ 10.000,00.
Não se desconhece, igualmente, que a opção política por não cobrar valores inferiores a R$ 10.000,00 leva em consideração aspectos econômicos ligados ao custo-benefício de se movimentar uma máquina judiciária cara para cobrar um valor que eventualmente não vai ser pago.
Mas tal raciocínio, igualmente, não pode ser desconsiderado no âmbito penal. Em outras palavras, já que a consideração a respeito do princípio da insignificância é uma das portas que a dogmática abre (declaradamente, frise-se) para considerações de cunho eminentemente de política criminal, visando corrigir a imprevidência legislativa - por não ter condições de analisar as peculiaridades do caso como têm os juristas -, a qual coloca sob o manto da tipicidade formal condutas que materialmente não são típicas, não pode ser excessivo considerar questões de administração judiciária nesse tema"
No mesmo sentido, ao examinar com sua costumeira acuidade a figura inscrita no art. 334 do Código Penal cotejada com o artigo 20 da Lei 10.522/02 (com a redação dada pela Lei nº 11.033/04) tendo em conta o princípio da subsidiariedade, entendeu o Supremo Tribunal Federal "ser inadmissível que uma conduta seja irrelevante no âmbito administrativo e não o seja para o Direito Penal". (HC 92.438/PR - julgado em 19.08.2008).
Naquela oportunidade asseverou o Ministro Joaquim Barbosa, que "o direito penal só deve atuar quando extremamente necessário para a tutela do bem jurídico protegido, quando falharem os outros meios de proteção e não forem suficientes as tutelas estabelecidas nos demais ramos do Direito". (Informativo 516 do STF de 18 a 22/08/2008).
Diante de tal inteligência, passou o Superior Tribunal de Justiça a adotar idêntico posicionamento, inclusive por decisão monocrática confirmada à unanimidade em Agravo Regimental pela Egrégia Sexta Turma na sessão de 14.10.2008, verbis:
"PENAL. HABEAS CORPUS. SUBSTITUTIVO DE RECURSO ORDINÁRIO. DESCAMINHO. DÉBITO FISCAL. ARTIGO 20, CAPUT, DA LEI 10.522/02. PATAMAR ESTABELECIDO PARA O AJUIZAMENTO DE EXECUÇÃO DA DÍVIDA ATIVA OU ARQUIVAMENTO SEM BAIXA NA DISTRIBUIÇÃO. CONDUTA DESINTERESSANTE NO ÂMBITO ADMINISTRATIVO NÃO PODE SER PENALMENTE RELEVANTE. PRINCÍPIO DA SUBSIDIARIEDADE. ORDEM CONCEDIDA. (STJ, HC 109.494. Desª convocada Jane Silva, decisão de 29.08.2008).
Frente a esse quadro, a Quarta Seção deste Tribunal no julgamento dos Embargos Infringentes nº 2005.70.02.006341-6, em 18.09.2008, após ampla discussão sobre o assunto, homologou à unanimidade, o novel entendimento de que se os impostos sonegados em casos de descaminho forem inferiores à quantia de R$ 10.000,00, tem-se a configuração da atipicidade da conduta. Confira-se o respectivo acórdão:
"PENAL. DESCAMINHO. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. APLICABILIDADE. PARÂMETRO. ARTIGO 20 DA LEI Nº 10.522/02. DISPENSA DE EXECUÇÃO FISCAL NA ESFERA ADMINISTRATIVA. SUBSIDIARIEDADE. CABIMENTO.1. Consoante recente entendimento da Suprema Corte e do STJ, se a Fazenda Pública dispensa a cobrança de tributo inferior ao fixado no art. 20 da Lei 10.522/02, só há justa causa para processar e julgar acusado pela prática de descaminho quando o total dos impostos sonegados for superior ao apontado parâmetro legal. 2. No caso dos autos, a conduta é materialmente atípica. Aplicação do princípio da insignificância."
Da mesma forma, o TRF da 1ª Região passou a adotar o referido entendimento, como se vê do seguinte julgado:
PENAL. PROCESSO PENAL. DESCAMINHO. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. DENÚNCIA. REJEIÇÃO. ART. 43, I DO CPP. I - Na hipótese, foram encontradas com a denunciada mercadorias estrangeiras no valor de R$ 2.850,00 (dois mil, oitocentos e cinqüenta reais), conforme atestam o Auto de Infração e Termo de Apreensão e Guarda Fiscal e o Laudo de Exame Merceológico elaborado pelo Instituto Nacional de Criminalística. II - Não merece censura a decisão que rejeita a denúncia por atipicidade de conduta, visto que a 3ª Turma vem entendendo que não se deve falar em crime de descaminho, em se tratando de posse de pequena quantidade de mercadorias estrangeiras, de reduzido valor, que por si só já indica inexistir lesão ao Fisco, de modo que autorize a movimentação do aparelho estatal encarregado da repressão. Precedente. III - A Segunda Turma do STF concedeu ordem de habeas corpus para trancar ação penal, por ausência de justa causa, contra acusado pela suposta prática do crime de descaminho, ao fundamento de que o art. 20 da Lei 10.522/02, com redação dada pela Lei 11.033/04, tem como parâmetro para o ajuizamento de execuções fiscais o limite de R$ 10.000,00 (dez mil reais) e, por conseguinte, não é admissível que uma conduta considerada irrelevante no âmbito administrativo o seja para o Direito Penal (HC 92438 - Fonte: Informativo 516 do STF). IV- Recurso improvido. (RCCR 2006.38.02.005612-1/MG, Terceira Turma Rel. Des. Federal Cândido Ribeiro, DJ de 26/09/2008, p.597 )
Ora, se as duas mais altas Cortes do país, bem como a Quarta Seção deste Tribunal concluíram ser atípico o descaminho de mercadorias tributadas até R$ 10.000,00, não vislumbro outra solução, a não ser reconhecer que a conduta perpetrada pelo ora paciente mostra-se irrelevante para a continuidade da persecutio criminis in judicio, eis que conforme narrado, deixou de recolher aos cofres públicos os tributos calculados em R$ 4.762,75 (quatro mil, setecentos e sessenta e dois reais e setenta e cinco reais)
Por fim, cumpre ressaltar que uma vez considerada atípica a conduta (conforme também decidiu o Supremo Tribunal Federal nos HCs nºs 77.003 e 84.412) desimporta qualquer exame dos aspectos subjetivos (v.g. habitualidade criminosa) relacionados à propensão delitiva por parte do agente.
Ante o exposto, com apoio no artigo 3º do CPP c/c art. 557 § 1º-A do CPC e art. 37, § 1º, inc. II, do Regimento Interno desta Corte, concedo a ordem para determinar o trancamento da ação penal nº XXXX.71.18.000668-9, tendo em conta a atipicidade da conduta. Intimem-se. Publique-se. Comunique-se à Vara de origem. Após, arquivem-se os autos.
Porto Alegre, 23 de outubro de 2008.
Des. Federal Élcio Pinheiro de Castro
Relator