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Critérios para a fixação do dano moral coletivo em caso de trabalho degradante e análogo à condição de escravo.

Aplicação do art. 23, incisos I e II, da Lei nº 8.884/94

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3. EXTENSÃO SUBJETIVA E OBJETIVA DESSA FORMA PECULIAR DE INFRAÇÃO À ORDEM ECONÔMICA

Outro ponto relevante que deve ser colocado em discussão é a extensão subjetiva e objetiva desse tipo peculiar de infração à ordem econômica.

Primeiramente, por extensão subjetiva, entenda-se até quem, dentro da cadeia econômica ou produtiva de determinado bem ou serviço deve ser considerado como responsável pela infração consubstanciada pela utilização de trabalho em condições análogas à de escravo ou em condições degradantes.

Segundo, por extensão objetiva, entenda-se que tipo de condutas leva a ocorrência desse tipo de violação direta ou indiretamente. Com efeito, determinadas práticas comerciais podem efetivamente fomentar a utilização de práticas empresariais que redundam na utilização de trabalho em condições análogas à de escravo ou em condições degradantes.

Uma pequena digressão se faz necessária quanto à correta interpretação dos direitos em questão.

É desnecessário fundamentar a dignidade humana e o direito dos trabalhadores de serem tratados dignamente como direitos fundamentais. Contudo, é relevante destacar a dinâmica de um princípio de interpretação constitucional em particular, o princípio da máxima efetividade.

Segundo tal princípio, na interpretação das normas constitucionais, deve-se atribuir-lhes o sentido que lhes confira maior eficácia. Contudo, não é só a mera interpretação das normas que recebe influxo desse princípio. Com efeito, a própria conduta dos agentes públicos e as definições de políticas públicas, atividade legislativa e atuação judicial devem se pautar por um curso de ação que efetivamente garanta a máxima efetividade das normas constitucionais. Tais direitos não podem se transformar em promessas constitucionais inconsequentes, na lição do Ministro Celso de Mello.

Observe-se que para fins de políticas de repressão ao trabalho análogo ao de escravo ou em condições degradantes, é necessário levar em consideração uma importante assimetria de informações.

Os agentes econômicos de determinado segmento econômico possuem muito mais informação sobre o seu processo produtivo do que os órgãos de fiscalização, ou seja, podem avaliar com muito mais propriedade se uma determinada etapa produtiva está tendo um custo compatível com a adoção dos padrões mínimos relativos ao trabalho decente.

A título de exemplo, uma usina de cana-de-açúcar possui melhores condições e um custo menor de obtenção da informação de que o custo da cana que recebe é suficiente para que se possa inferir que foram respeitados padrões mínimos de trabalho dos trabalhadores rurais ou não.

É bastante plausível que a usina tenha pelo menos potencial ciência de que está comprando um insumo que tem seu preço artificialmente determinado para baixo, em virtude de um ativo descumprimento da legislação trabalhista. Mais ainda, tal entidade está ativamente – e conscientemente em muitos casos – beneficiando-se de tal infração à ordem econômica.

Logo, percebe-se que ocorre a extensão subjetiva da infração para englobar outros agentes da cadeia econômico-produtiva.

Quanto aos efeitos dessa extensão, são decorrência lógica: 1) responsabilidade solidária pelo dano moral coletivo; 2) simplificação do ônus da prova dos órgãos de fiscalização (basta demonstrar que pela posição na cadeia econômica e pela assimetria informacional, o agente econômico deveria ter ciência da infração no momento anterior da cadeia).

Além disso, negar tais efeitos seria ir de encontro ao princípio da máxima efetividade, especialmente em uma questão tão nuclear que é a dignidade humana.

Passando-se a análise da extensão objetiva, verifica-se que determinadas condutas ou práticas empresariais podem fomentar a ocorrência e recorrência do trabalho em condições análogas à de escravo ou em condições degradantes.

Práticas indiretas, como simplesmente fazer vista grossa para os insumos adquiridos a preços que indicam potencial descumprimento de normas trabalhistas já é um elemento de grande fomento das infrações.

Não somente práticas passivas, mas práticas aparentemente lícitas podem criar estímulos para a ocorrência desse tipo de infração. Um exemplo ilustrativo: imagine-se que uma usina de cana-de-açúcar compre a cana de diversas fazendas ou produtores. É comum que a usina estimule a competição entre seus fornecedores, para que possa maximizar seu lucro.

As formas para estimular podem ser as mais diversas: definir volumes de compras de cada fornecedor, indicações de faixas de preços aos quais se dispõe a comprar, benesses para os melhores fornecedores, etc.

Os fornecedores, por sua vez, para conseguir uma vantagem competitiva, podem ver-se incentivados a descumprir normas trabalhistas, algo que não necessariamente afeta a qualidade de seus produtos e depende de efetiva e eficiente fiscalização para ter alguma consequência negativa.

Logo, ainda com o princípio da máxima efetividade dos direitos fundamentais em mente, há um imperativo lógico que determina, por exemplo, a necessária atuação do Ministério Público do Trabalho, para coibir tais práticas dos agentes econômicos em etapa mais a frente da cadeia produtivo-econômica.

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O Ministério Público do Trabalho, a título de ilustração, poderia mover uma Ação Civil Pública, não somente em face de um fazendeiro de cana que se vale de trabalho em condições análogas à de escravo ou em condições degradantes, mas em face da própria usina de cana que não denunciou tais práticas quando tinha ciência ou poderia inferir a ocorrência de tais violações, ou para que a mesma não adote práticas em face de seus fornecedores que venha a estimular a redução desmedida de custos (especialmente no aspecto laboral).


CONCLUSÃO

O estudo buscou fazer uma releitura dos efeitos econômicos da utilização de trabalho em condições degradantes ou em condições análogas à de escravo, de modo se verificar que a prática indubitavelmente configura uma ofensa à ordem econômica.

Partindo da premissa empírica de que tais questões não chegam a ser abordadas pelos órgãos de defesa da concorrência, torna-se ainda mais relevante a função processual da condenação em danos morais coletivos. Trata-se de veículo de tutela não só do senso moral e ético social que deve espelhar os valores constitucionais, mas também de tutela dos efeitos deletérios ao mercado, livre concorrência e livre iniciativa.

Sugere-se como critério para a fixação do dano moral coletivo o Art. 23, incisos I e II, da Lei 8.884/94, ou seja, de 1% (um por cento) a 30% (trinta por cento) do faturamento anual bruto da empresa no seu último exercício, excluídos os impostos. Tal valor não deverá ainda ser inferior à vantagem auferida, quando quantificável.

Particularmente, a vantagem auferida é minimamente o próprio valor sonegado dos trabalhadores e dos custos com a realização de um meio ambiente laboral adequado.

Não obstante, tal critério possa parecer excessivo para alguns, convém lembrar que se trata de um critério legal adotado para casos de defesa da ordem econômica. Infere-se, portanto, que é um critério que a lei reputa adequado para reparar não só as infrações, como para desestimular práticas anticoncorrênciais.

Desta forma, se o malferimento dos princípios da livre iniciativa e livre concorrência permite tal rigor, a verdadeira desproporcionalidade e ausência de razoabilidade está na utilização de padrão mais brando para casos de infração aos mesmos princípios que cumulam violações ao valor social do trabalho e à dignidade humana.


BIBLIOGRAFIA

GICO JUNIOR, Ivo Teixeira. Cartel – Teoria Unificada da Colusão. São Paulo: Lex Editora S.A. 2007.

MEDEIROS, Xisto Tiago de. Dano moral coletivo, São Paulo, LTr, 2004. P. 54.

PERES FILHO, José Augusto de Souza. Paradigma constitucional brasileiro da livre concorrência e da defesa do consumidor face às estruturas de poder no mercado. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Natal. Rio Grande do Norte. 2008. p. 77.

SILVA, Marcello Ribeiro. O Trabalho Escravo Contemporâneo Rural no Contexto da Função Social. Revista do Ministério Público do Trabalho. Brasília, ano XIX, n. 37, março/2009.

SZTAJN, Rachel. Teoria Jurídica da Empresa: atividade empresária e mercados. São Paulo: Atlas, 2004. P. 47.


Notas

  1. SILVA, Marcello Ribeiro. O Trabalho Escravo Contemporâneo Rural no Contexto da Função Social. Revista do Ministério Público do Trabalho. Brasília, ano XIX, n. 37, março/2009.
  2. GICO JUNIOR, Ivo Teixeira. Cartel – Teoria Unificada da Colusão. São Paulo: Lex Editora S.A. 2007. P. 127-128.
  3. SZTAJN, Rachel. Teoria Jurídica da Empresa: atividade empresária e mercados. São Paulo: Atlas, 2004. P. 47.
  4. PERES FILHO, José Augusto de Souza. Paradigma constitucional brasileiro da livre concorrência e da defesa do consumidor face às estruturas de poder no mercado. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Natal. Rio Grande do Norte. 2008. p. 77.
  5. MEDEIROS, Xisto Tiago de. Dano moral coletivo, São Paulo, LTr, 2004. P. 54.
  6. MEDEIROS, Xisto Tiago de. Dano moral coletivo, São Paulo, LTr, 2004. P. 126.
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Sobre o autor
Afonso de Paula Pinheiro Rocha

Professor Universitário. Procurador do Trabalho. Doutorando em Direito Constitucional - UNIFOR. Mestre em Direito Constitucional - UFC.MBA em Direito Empresarial pela FGV-Rio.<br>

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROCHA, Afonso Paula Pinheiro. Critérios para a fixação do dano moral coletivo em caso de trabalho degradante e análogo à condição de escravo.: Aplicação do art. 23, incisos I e II, da Lei nº 8.884/94. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2562, 7 jul. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/16943. Acesso em: 2 nov. 2024.

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