INTRODUÇÃO
O estudo objetiva identificar critérios para a fixação do dano moral coletivo no caso de trabalho degradante e análogo a condição de escravo.
Embora a jurisprudência já tenha apontado diversos parâmetros como a natureza e extensão do dano; o grau de culpa do agente; o porte da empresa; o agravo imposto às vítimas; o caráter pedagógico do dano; a baliza do enriquecimento sem causa, dentre outros, a proposta desse trabalho é adicionar mais um critério fundamentado na referência analógica do art. 23, incisos I e II, da Lei 8.884/94, a incidir tanto sobre a empresa como sobre os administradores direta ou indiretamente responsáveis pelas práticas violadoras da ordem jurídica.
Buscar-se-á demonstrar uma proximidade da prática de trabalho degradante ou análogo a condição de escravo com as infrações à ordem econômica, capaz de permitir uma construção interpretativa que aponta para adoção dos critérios de penalidades às infrações a ordem econômica para a fixação do dano moral coletivo.
Essa construção interpretativa inicia por uma análise dos princípios constitucionais da atividade econômica, passa por um estudo dos efeitos econômicos da utilização de trabalho em condições degradantes ou análogo a condição de escravo e conclui por uma similaridade das racionalidades que informam a tutela do trabalho e a tutela da ordem econômica.
1. TRABALHO EM CONDIÇÕES DEGRADANTES COMO VIOLAÇÃO DA ORDEM ECONÔMICA
São recorrentes no texto constitucional os dispositivos consagradores da dignidade da pessoa humana, seja de forma expressa, seja de forma indireta, através da tutela de elementos necessários a uma existência digna do ser humano.
Contudo, um artigo em particular é relevante para os propósitos deste trabalho, o Art. 170, caput:
Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: (destacado)
Resta inconteste que a ordem econômica tem por fundamento a valorização do trabalho humano que tem por fim, assegurar uma existência digna, de acordo com os ditames da justiça social.
A utilização de trabalho degradante ou análogo a condição de escravo, de uma só vez, malfere este princípio de valorização do trabalho humano, inviabiliza a existência digna e está em total oposição aos ditames da justiça social. Logo, estamos diante de uma clara violação a ordem econômica.
Com efeito, trata-se de uma prática tão odiosa, incompatível com uma pletora de direitos e garantias fundamentais individuais e sociais de primeira grandeza que este aspecto de violação a ordem econômica tende a ficar eclipsado.
Na bela síntese de Marcello Ribeiro Silva:
Neste contexto, não é exagero afirmar que o trabalho análogo ao de escravo constitui a negação dos mais elementares direitos sociais trabalhistas, previstos no art. 7º da CF e na Lei n. 5.889/73; na violação das normas de segurança e saúde no trabalho rural, materializadas na NR 31; além de grave violação ao princípio da dignidade humana e ao direito fundamental de liberdade. [01]
Desta forma, mesmo que não seja sequer preciso configurar estas práticas como infrações à ordem econômica para encontrar uma miríade de fundamentos jurídicos e dispositivos que determinam o seu total expurgo da sociedade o estudo da questão sob esta angulação particular pode trazer novas perspectivas para o aprimoramento do combate às mesmas. Especialmente no tocante a fundamentação jurídica para a imposição de multas e penalidades robustas que efetivamente coíbam e desencorajem a adoção de tais práticas.
Firmada esta noção inicial de que temos uma violação à ordem econômica constitucional, podemos proceder a uma análise infraconstitucional.
A Lei 8.884/94 é decorrente do comando constitucional inserto no Art. 173, § 4º e objetiva a prevenção e a repressão às infrações contra a ordem econômica. O Art. 20 da referida lei, aponta quais são os atos ilícitos à ordem econômica:
Art. 20. Constituem infração da ordem econômica, independentemente de culpa, os atos sob qualquer forma manifestados, que tenham por objeto ou possam produzir os seguintes efeitos, ainda que não sejam alcançados:
I - limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou a livre iniciativa;
II - dominar mercado relevante de bens ou serviços;
III - aumentar arbitrariamente os lucros;
IV - exercer de forma abusiva posição dominante.
Com efeito, pode parecer inusitado tentar enquadrar a utilização de trabalho degradante como uma infração à ordem econômica, porém, a lógica de violação constitucional acima exposta também encontra enquadramento na legislação infraconstitucional.
Inicialmente, cumpre destacar que a preocupação em tutelar a ordem econômica e a concorrência levaram o legislador a adotar termos vagos que demandam uma interpretação ampliativa. Além disso, referencia-se a precisa lição de Ivo Gico Jr.:
... a expressão "os atos sob qualquer forma manifestados" informa de maneira clara e irrefutável a inexistência de requisito formal intrínseco para a caracterização de uma conduta como anticompetitiva, qualquer ato, independentemente da forma, pode ser considerado uma infração. [...] Além disso, o art. 20 deixa claro que, uma vez identificada uma ação do sujeito investigado, sua caracterização como infração independe da forma como o ato se materializou. [02]
Logo, a prática de adotar trabalho em condições degradantes, embora não se amolde ao estereótipo mais usual de uma infração a ordem econômica (preços predatórios, formação de cartéis, abuso de posição dominante no mercado, dentre outras práticas e estratégias empresariais ilícitas) pode sim configurar uma infração a ordem econômica. A forma do ato em si não importa, mas sim a sua potencialidade de ocasionar os efeitos danosos previstos nos incisos.
Já no primeiro inciso, podemos identificar um potencial efeito da adoção de trabalho em condições degradantes, quando há a previsão de "... qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou iniciativa.".
Os princípios da livre iniciativa e da livre concorrência se traduzem em pautas normativas que devem orientar a atuação dos poderes públicos, de modo a estimular a concorrência que, do ponto de vista econômico, é necessária ao desenvolvimento social.
Os mercados onde exista uma concorrência efetiva interessam às sociedades e são os preconizados pela moldura axiológica constitucional, uma vez que geram competição e, por conseguinte, mantêm os preços próximos ao custo de produção, possibilitando, a um maior número de pessoas, o acesso ao que é produzido.
Desse modo, a concorrência efetiva, enquanto mecanismo de proteção ao consumo e ampliação de acesso aos produtos, é o valor salvaguardado em nível constitucional. Sintetiza bem Rachel Sztajn:
Mercados livres, atomizados e concorrenciais, ou de concorrência perfeita, em que a barganha entre ofertantes e adquirentes é comum, são o modelo ideal para troca econômica. Por serem atomizados, dificultam aumentos arbitrários de preços, manipulação da oferta e, segundo a teoria econômica, promovem o bem-estar social. [03]
Uma empresa, ao adotar práticas de trabalho degradante, não pagar integralmente os direitos trabalhistas, nem incorrer nos custos necessários ao fornecimento um ambiente de trabalho adequado, está a reduzir os custos de produção de uma forma ilícita. Essa redução repercute tanto no preço do produto como no lucro auferido pela empresa e possui efeitos prejudiciais sobre o mercado e a concorrência.
A liberdade de iniciativa, entendida como o direito de entrar, sair e permanecer no mercado é malferida numa análise dinâmica dos efeitos da adoção dessas práticas odiosas por empregadores.
Inicialmente, cria-se uma barreira de entrada a novos competidores, uma vez que essa redução de custos com o trabalho gera para as empresas que dela se utilizam uma vantagem competitiva ilícita. Um novo agente no mercado que respeite a legislação trabalhista está em desvantagem de concorrência.
Outra barreira se forma a permanência no mercado, uma vez que a redução de custos com o trabalho é tão eficiente (por isso tão utilizada) que leva aos competidores lícitos e respeitosos da legislação laboral uma contínua defasagem frente aos competidores recorrem ao trabalho em condições degradantes.
A desobediência a normas legais e administrativas de regência de uma determinada atividade pode configurar infrações a ordem econômica. José Augusto de Souza Peres Filho, ao tratar de exemplos de infrações à ordem econômica, analisa com propriedade o caso do descumprimento da legislação sanitária, numa lógica que pode ser facilmente transportada para o caso do descumprimento de normas trabalhistas:
Quando o fornecedor está obrigado à observância de normas expedidas pelos órgãos oficiais competentes para colocar produto ou serviço no mercado, não poderá fazê-lo em desacordo com elas.
[...]
Tomemos, por exemplo, a legislação sanitária, que impõe a fornecedores dos mais diversos ramos, práticas de higiene e limpeza de empregados e instalações, que são onerosas (revestimentos específicos para pisos e paredes, instalações sanitárias adequadas, cozinhas dentro de determinados padrões, treinamento, capacitação e aperfeiçoamento de mão de obra etc.).
Ao tentar se enquadrar a essas normas, o fornecedor naturalmente, terá gastos (muitas vezes elevados), que deverão repercutir no preço dos seus produtos ou serviços, o que não ocorre quando o fornecedor desconsidera a legislação sanitária e coloca no mercado produtos ou serviços sem atender às exigências normativas específicas, obtendo uma vantagem ilícita sobre o seu concorrente que optou por cumprir a legislação e que teve que transferir para o consumidor os custos daí decorrentes, isso quando não teve retardada a abertura do empreendimento até cumprir integralmente as normas. [04]
Um argumento falacioso que se poderia levantar para defender que na realidade a ordem econômica não seria malferida é que os produtos, por serem mais baratos, são favoráveis ao consumidor. Independentemente do despautério ético que tal linha de argumentação constitui, ela também é equivocada do ponto de vista econômico, uma vez que o trabalho em tais condições não é sustentável e representa uma série de custos sociais (ausência de recolhimento de contribuições e encargos sociais devidos, aumento no número de acidentes de trabalho, aumento no número de aposentadorias por invalidez, dentre outros) que devem ser sopesados com essa pretensa "eficiência no preço".
Logo, resta inconteste que a adoção de práticas de trabalho em condições degradantes ou em condições análogas à de escravo não só pode representar como efetivamente representa efeitos lesivos à livre iniciativa e livre concorrência.
Dessa conclusão, é possível inferir uma diversidade de corolários. Por não ser o objeto primário deste estudo, indicaremos dois que reputamos interessantes, porém sem serem elaborados em maior extensão:
1. Os órgãos de fiscalização do trabalho podem efetivamente representar aos órgãos do sistema brasileiro de tutela da concorrência para que estes também investiguem, julguem e punam as empresas que utilizam trabalho em condições degradantes quanto ao prisma lesivo à livre iniciativa e concorrência desses atos;
2. O Ministério Público do Trabalho pode e deve atuar levando em consideração este aspecto. Trata-se de nova fundamentação que evidencia mais um aspecto lesivo dessas práticas aos direitos difusos da sociedade (direito a um mercado pautado pela livre iniciativa e concorrência).
Essa linha de raciocínio ora explicitada serve para lançar nova luz na proporcionalidade que deve reger a fixação do dano moral coletivo decorrente de situações de utilização de trabalho em condições degradantes ou em condições análogas à de escravo.
Reputa-se desnecessário incorrer nos debates sobre conceito, natureza, existência ou aplicabilidade do dano moral coletivo, vez que o mesmo é recorrente na praxe forense, em especial nos casos de trabalho em condições degradantes.
O foco do estudo será no critério adotado para a fixação do mesmo à luz da linha de argumentação construída nesse tópico.
2. FIXAÇÃO DO DANO MORAL COLETIVO
Consoante a lição de Xisto Tiago de Medeiros, o dano moral (ou extrapatrimonial) consiste em lesão injusta a interesses não materiais, sem necessário equivalente econômico, embora reconhecidos como valores jurídicos tutelados. Os exemplos mais usuais são o bem-estar; a intimidade; a liberdade; a privacidade; além de outros direitos da personalidade. [05]
O dano moral coletivo, por sua vez, volta-se para valores e para um patrimônio imaterial de coletividades, como é o caso da utilização de trabalho em condições degradantes.
Novamente, cite-se o entendimento de Xisto Tiago, para quem:
A idéia e o reconhecimento do dano moral coletivo (lato sensu), bem como a necessidade de sua reparação, constituem mais uma evolução nos contínuos desdobramentos do sistema da responsabilidade civil, significando a ampliação do dano extrapatrimonial para um conceito não restrito ao mero sofrimento ou à dor pessoal, porém extensivo a toda modificação desvaliosa do espírito coletivo, ou seja, a qualquer ofensa aos valores fundamentais compartilhados pela coletividade, e que refletem o alcance da dignidade dos seus membros. [06]
O que se pretende chamar atenção neste estudo é que um de outros direitos difusos que também restam malferidos é o direito da coletividade a um mercado pautado pelos princípios da livre iniciativa e livre concorrência.
Observe-se que embora pouco citado, o Art. 219 da CF/88 declara expressamente que "[o] mercado interno integra o patrimônio nacional e será incentivado de modo a viabilizar o desenvolvimento cultural e sócio-econômico, o bem-estar da população...".
A partir desse contexto, podemos começar a tornar evidente o paralelismo sugerido na introdução.
A utilização de trabalho em condições degradantes ou condições análogas à de escravo viola valores e princípios fundamentais da ordem social, de forma que decorre dessa prática a necessidade de condenação em dano moral coletivo.
Essa forma de tutela, realizada usualmente pelo Ministério Público do Trabalho através de Ações Civis Públicas, obtém a condenação em dano moral coletivo, que, consoante a destinação da Lei de Ação Civil Pública, vai para fundos destinados a reparar os próprios danos.
Contudo, convém observar que a jurisprudência tem adotado parâmetros e critérios de fixação do dano moral coletivo que conduzem usualmente a valores aquém do que é postulado pelo MPT.
Não obstante serem em valores elevados estas condenações, elas podem ser repensadas em comparação com as penalidades impostas a infrações à ordem econômica. Observe-se o Art. 23 da Lei 8.884/94:
Art. 23. A prática de infração da ordem econômica sujeita os responsáveis às seguintes penas:
I - no caso de empresa, multa de um a trinta por cento do valor do faturamento bruto no seu último exercício, excluídos os impostos, a qual nunca será inferior à vantagem auferida, quando quantificável;
II - no caso de administrador, direta ou indiretamente responsável pela infração cometida por empresa, multa de dez a cinqüenta por cento do valor daquela aplicável à empresa, de responsabilidade pessoal e exclusiva ao administrador.
III - No caso das demais pessoas físicas ou jurídicas de direito público ou privado, bem como quaisquer associações de entidades ou pessoas constituídas de fato ou de direito, ainda que temporariamente, com ou sem personalidade jurídica, que não exerçam atividade empresarial, não sendo possível utilizar-se o critério do valor do faturamento bruto, a multa será de 6.000 (seis mil) a 6.000.000 (seis milhões) de Unidades Fiscais de Referência (Ufir), ou padrão superveniente.
Parágrafo único. Em caso de reincidência, as multas cominadas serão aplicadas em dobro.
Apesar de fugir ao objeto do presente estudo uma análise estatística dos valores das condenações de dano moral coletivo, embora fosse um estudo muito salutar para o debate jurídico, é fácil verificar que, na praxe forense, os valores estão muito aquém do parâmetro de 1 (um) a 30% (trinta por cento) do faturamento bruto anual das empresas infratoras.
Chegamos ao cerne deste estudo, que está exatamente na comparação entre as penalidades impostas às infrações usuais a ordem econômica e as condenações a título de dano morais coletivos impostas em casos de utilização de trabalho em condições degradantes.
Colocando-se de lado o glamour que os grandes casos concorrenciais possuem, inflamado pela atenção que as questões econômicas e de investimento atraem, temos uma situação em que uma infração à ordem econômica, como a formação de um cartel, permitirá a condenação em valores muito mais elevados que uma grave violação ao preceito fundamental da dignidade humana que é o trabalho em condições degradantes que também é uma infração a ordem econômica (!).
Um argumento falacioso que poderia ser levantado para distinguir as duas situações é de que as ações movidas pelo MPT, por exemplo, já são acompanhadas de pedidos envolvendo o pagamento das verbas trabalhistas sonegadas. Observe-se que a reparação dos direitos individuais trabalhistas violados decorre dessas próprias violações individuais.
O dano moral coletivo volta-se, por sua vez, para a violação não só dessa consciência social-constitucional, como também da violação à ordem econômica (direito a um mercado pautado pela valorização do trabalho humano e de acordo com os princípios da livre iniciativa e livre concorrência) que esta prática enseja.
Até a presente data, este estudo não encontrou nenhum caso de trabalho em condições degradantes que também tivesse sido investigado em face de seu perfil concorrencial. Uma triste mensagem que se poderia inferir dessa situação é que os grandes atos ou estratégias de corporações são dignos da atenção dos órgãos de defesa da concorrência, porém atos violadores da dignidade dos trabalhadores que também ensejam efeitos concorrenciais não merecem a mesma atenção, porque são vistos apenas como questões trabalhistas.
Neste contexto, a condenação em danos morais coletivos ganha ainda mais relevância, pois vai se consubstanciar no único veículo possível para tutelar esses efeitos concorrenciais nocivos à sociedade, além da ofensa ao senso moral e ético da coletividade.
Sob a ótica aqui apresentada, as postulações do MPT, muitas vezes consideradas elevadas pela jurisprudência, muitas vezes, ficam aquém do próprio padrão estabelecido no caso de infrações à ordem econômica.
Logo, sugere-se uma releitura do papel do dano moral coletivo no caso de trabalho em condições degradantes ou em condições análogas à de escravo, uma vez que se trata talvez da forma mais vil de ofensa a dignidade humana e ao valor social do trabalho, nulificando o trabalhador, e, não só isso, também configura uma infração à ordem econômica.