RESUMO: O avanço da medicina tem cada vez mais representado desafios ao Direito, que não consegue acompanhar com a mesma velocidade as inovações tecnológicas que alteram as relações de família. O presente artigo analisa uma das inovações que tem pleiteado, por casos concretos, uma urgente definição pelo Direito codificado: a prole gerada após a morte de um dos cônjuges, por meio da inseminação artificial. Utilizando a interpretação sistemática, particularmente dos princípios basilares do Direito de Família, firmamos uma visão positiva sobre o direito de que o amor de um casal dê frutos, superando até mesmo a morte prematura de um dos cônjuges.
Palavras-chave: Reprodução assistida. Inseminação post mortem. Sucessão. Dignidade da pessoa humana. Não-intervenção.
INTRODUÇÃO
O Direito de Família sempre foi um dos ramos do Direito que mais sofre com a omissão do legislador. Isto porque as relações humanas evoluem de tal forma e com tal intensidade que nem sempre o processo burocrático da criação de novas leis consegue acompanhar pari passu as inovações que permeiam a família.
Temas como uniões homossexuais e suas implicações (sucessão, adoção, legitimidade), relações simultâneas conjugais, relações incestuosas, reprodução assistida, biodireito, representam um grande vazio na legislação que tem sido preenchido paulatinamente por decisões de conteúdo diverso em todo o Brasil e mundo, fundadas no farto arcabouço principiológico com que conta o Direito de Família.
Como bem ensina Jesualdo Eduardo de Almeida Junior (2005):
Vaclav Havel, dramaturgo e estadista tcheco, enfatiza a dignidade humana como elemento diferenciador em relação às demais espécies; literalmente:
"Tomemos o conceito de dignidade humana. Ele permeia todos os direitos humanos fundamentais e os documentos relativos aos direitos humanos. Para nós, isso é tão natural que achamos que nem sequer faz sentido indagar o que realmente significa a dignidade humana, ou por que a humanidade deveria possuí-la, nem tampouco nos indagamos por que razão faz sentido que todos nós a reconheçamos uns nos outros e uns para os outros.
As raízes mais profundas do que chamamos direitos humanos se encontram além e acima de nós, em algum lugar mais profundo do que o mundo dos contratos e acordos humanos. Elas têm sua origem no âmbito metafísico.
Embora muitos não se dêem conta disso, os seres humanos - as únicas criaturas totalmente conscientes de seu próprio ser e da mortalidade, que enxergam aquilo que as cerca como um mundo e mantêm uma relação interna com esse mundo - derivam dignidade, além de responsabilidade, do mundo como um todo; ou seja, daquilo no qual identificam o tema central do mundo, sua espinha dorsal, sua ordem, sua direção, sua essência, sua alma - chame-o como quiser. Os cristãos formulam a questão em termos simples: o homem foi colocado no mundo à imagem de Deus".
A prevalência do princípio da dignidade da pessoa humana significa o reconhecimento de que o Estado existe em função da pessoa humana, e não o contrário. O homem constitui finalidade precípua, e não é mero meio da atividade estatal.
E quando se fala em Estado, logo nos surge à mente a figura do Direito, pois são institutos que andam de mãos dadas.
Nesse desdobramento surge o biodireito, que se preocupa em apresentar os indicativos teóricos e os subsídios da experiência universal para a elaboração da melhor legislação sobre as novas técnicas científicas, com vistas, em última instância, à salvaguarda da dignidade humana.
1. AMOR ALÉM DA MORTE
No que concerne à inseminação post mortem, de pronto podemos perceber que o Código Civil de 2002, ao reconhecer os benefícios da tecnologia da reprodução assistida, ingressou no campo do biodireito com muita timidez e muitas reservas.
Na lição de Venosa (2002), "O Código Civil de 2002 não autoriza e nem regulamenta a reprodução assistida, mas apenas constata a existência da problemática e procura dar solução exclusivamente ao aspecto da paternidade. Toda essa matéria, que é cada vez mais ampla e complexa, deve ser regulada por lei específica, por opção do legislador".
Ao tratar sobre filiação, o novel diploma civil prevê:
Art. 1.597. Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos:
I - nascidos cento e oitenta dias, pelo menos, depois de estabelecida a convivência conjugal;
II - nascidos nos trezentos dias subsequentes à dissolução da sociedade conjugal, por morte, separação judicial, nulidade e anulação do casamento;
III - havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido;
IV - havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga;
V - havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido.
Para melhor compreensão, insta diferenciar fecundação artificial homóloga e heteróloga. A primeira hipótese se vislumbra quando a reprodução assistida é realizada com o material genético do próprio casal, e a segunda, quando o material genético utilizado pertence a uma terceira pessoa que substitui o material de um dos cônjuges.
O Código disciplina, portanto, a filiação resultante das duas técnicas até então conhecidas de reprodução; no inciso III, trata dos filhos nascidos pela manipulação do material genético do casal, mesmo após o falecimento do marido; no inciso IV, dos filhos nascidos da mesma forma, quando se tratarem de embriões excedentários; e no inciso V, aqueles havidos por inseminação heteróloga, desde que previamente autorizado pelo marido.
Cumpre observar que a disposição do Código já nasceu com certo atraso. Ao regular especificamente o uso do material genético do pai, mesmo que falecido, olvidou-se que na prática podemos enfrentar a situação de uma mãe que também coletou seu material antes de falecer, para que o marido escolhesse frutificar aquela relação por meio, por exemplo, de uma barriga de aluguel, tema também bastante controverso no meio jurídico.
2. PRINCIPIANDO A SOLUÇÃO
Ainda que não houvesse regramento específico na lei, não podemos deixar de reconhecer que a constitucionalização do Direito de Família, ocorrida pós 1988, serve de substrato principiológico para diversas questões que se apresentam ao mundo jurídico como órfãs de regulamentação normativa.
O princípio da dignidade da pessoa humana, alçado como fundamento e pilar de todo campo do Direito, desponta como o principal norte a ser seguido. Tal princípio importa na preservação do bem estar do ser humano, da sua integridade, autonomia, felicidade, liberdade.
Como leciona Fernando Ferreira dos Santos:
Ernst Bloch, citado por Pérez Luño, destaca que a dignidade da pessoa humana possui duas dimensões que lhe são constitutivas: uma negativa e outra positiva. Aquela significa que a pessoa não venha ser objeto de ofensas ou humilhações. Daí o nosso texto constitucional dispor, coerentemente, que "ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante"(art. 5º, III, CF). Com efeito, "a dignidade — ensina Jorge Miranda — pressupõe a autonomia vital da pessoa, a sua autodeterminação relativamente ao Estado, às demais entidades públicas e às outras pessoas".
Impõe-se, por conseguinte, a afirmação da integridade física e espiritual do homem como dimensão irrenunciável da sua individualidade autonomamente responsável; a garantia da identidade e integridade da pessoa através do livre desenvolvimento da personalidade; a libertação da "angústia da existência" da pessoa mediante mecanismos de socialidade, dentre os quais se incluem a possibilidade de trabalho e a garantia de condições existenciais mínimas".
Por sua vez, a dimensão positiva presume o pleno desenvolvimento de cada pessoa, que supõe, de um lado, o reconhecimento da total autodisponibilidade, sem interferências ou impedimentos externos, das possibilidades de atuação próprias de cada homem; de outro, a autodeterminação que surge da livre projeção histórica da razão humana, antes que uma predeterminação dada pela natureza.
Outro princípio que merece ser trazido à baila refere-se à liberdade, ou da não-intervenção, expressamente garantido pelo artigo 1513 do diploma civil ("É defeso a qualquer pessoa, de direito público ou privado, interferir na comunhão de vida instituída pela família").
Por fim, apresentamos o princípio do eudemonismo, que pressupõe o afeto como base e a liberdade como animus para a constituição de uma família, livre de modelos fechados, imposições e tradicionalismos.
Imprescindível colacionar a seguinte lição de Dávila Teresa de Galiza Fernandes Pinheiro:
A comunidade familiar, haja ou não casamento, deixou de ser um ente abstrato, adquirindo concretude no afeto e na solidariedade que une seus membros. A família não se desagregou: ganhou nova feição, mantendo-se por e enquanto existirem os laços afetivos que sustentam naturalmente a moral familiar. Não mais a moral de cunho religioso ou resultante de imposições sociais que tinham em seu âmago a preservação do patrimônio, da propriedade.
Logo, a família tornou-se um ambiente propício para o compartilhamento de sentimentos de amor, respeito e afeição, caracterizando dessa forma o eudemonismo.
Segundo o Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, o eudemonismo se refere à "doutrina que admite ser a felicidade individual ou coletiva o fundamento da conduta humana moral, isto é, que são moralmente boas as condutas que levam à felicidade". Transpondo referido conceito ao contexto familiar, o modelo familiar eudemonista é aquele que tem como elemento propulsor dos relacionamentos familiares a afetividade, compreendendo-se aí a dignidade, a felicidade e a realização de cada um dos seus membros.
A família sócio-afetiva, respaldada constitucionalmente, resguardando como direito fundamental a convivência familiar e comunitária, corrobora a concepção eudemonista, na medida em que se percebe que mais importante que os vínculos exclusivamente consangüíneos, são os laços afetivos que unem os indivíduos na família.
Assim, é possível afirmar que a família moderna "nasce sob a concepção eudemonista, centrada nas relações de sentimento entre seus membros e baseada em uma comunhão de afeto recíproco".
Por todas as conquistas já alcançadas pelo moderno Direito das Famílias, não há que se falar na negativa de atendimento ao pleito da mulher que deseja frutificar o amor divido com um varão prematuramente falecido.
Ao nosso sentir, uma vez que reste comprovado o interesse do homem ou da mulher falecido(a) em procriar com seu companheiro – qualquer que seja o laço formal ou informal que os ligue – o Estado não pode se imiscuir na liberdade e na intimidade do casal, impedindo a reprodução, negando ou limitando efeitos ao nascido nesses moldes.
Da mesma forma, acreditamos que ao casal homossexual que recorra a esses métodos, na constância de uma barriga de aluguel, também devem ser preservadas a liberdade, a intimidade e o desejo de frutificar sua relação.
Salvo melhor juízo, o instrumento para conferir validade a essa opção pode se revestir de várias formas: por declaração registrada em cartório, por contrato junto à instituição de reprodução com a cláusula indicativa do beneficiário daquele material genético, por testamento (embora pouco utilizado na maior parte do Brasil), por ação de justificação com apresentação de testemunhas suficientes a ratificarem a vontade do de cujus, entre outros.
O certo é que, atualmente, não existem dúvidas sobre a validade jurídica da inseminação post mortem; as dúvidas surgem é quanto às implicações desse procedimento.
Como bem sintetiza Carlos Alberto Ferreira Pinto:
O legislador ao elaborar a regra contida no art. 1.798 do Código Civil, não cogitou os avanços científicos aplicados à reprodução humana, apenas reproduziu o art. 1.718 do antigo código, referindo-se apenas as pessoas já concebidas, não fez previsão do futuro filho ainda não ter nascido ou sequer ter sido concebido no momento da abertura da sucessão. O fato de o legislador pátrio ter acrescentado dois incisos ao art. 1.597 do Novo Código Civil, revela a preocupação dos juristas, em relação aos freqüentes avanços da comunidade cientifica. A sociedade avança e o ordenamento jurídico tem que acompanhar a evolução científica de forma a tentar corrigir as distorções que por ventura venham a ocorrer no campo social.
3. PRAGMATIZANDO
A legislação em vigor reza imprescindível que o filho apto a suceder tenha nascido ou ao menos sido concebido até a abertura da sucessão (artigos 1798 e 1799).
O problema, portanto, reside no fato de que o filho será concebido e só nascerá após a morte de um dos genitores. Ou seja, não é que a lei seja omissa; pelo contrário, ela normatiza claramente a questão; o fato é que ela encontra-se muito atrasada, o que impede a utilização do artigo 4º da Lei de Introdução ao Código Civil ("Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito").
No entanto, impende destacar que existe uma saída juridicamente legítima, qual seja, o artigo 5º da mesma LICC: "Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum".
Mais uma vez, competirá aos operadores do Direito, na figura de advogados, promotores e magistrados a árdua tarefa de desbravar as demandas jurídicas no campo da família em busca de posicionamentos que assegurem, cada vez mais, a concretização da dignidade da pessoa humana e a preservação da liberdade e solidariedade que fazem da família o espaço de desenvolvimento de plenitudes e potencialidades garantido pela Constituição.
Referências
ALMEIDA JÚNIOR, Jesualdo Eduardo de. Técnicas de reprodução assistida e o biodireito . Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 632, 1 abr. 2005. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/6522>. Acesso em: 03 jun. 2010
PINHEIRO, Dávila Teresa de Galiza Fernandes. Mediação Familiar: Uma Alternativa Viável à Resolução Pacífica dos Conflitos Familiares. Instituto Brasileiro de Direito de Família. Disponível em: < http://www.ibdfam.org.br/?artigos&artigo=446>. Acesso em? 03 jun. 2010.
PINTO, Carlos Alberto Ferreira. Reprodução Assistida: Inseminação artificial homóloga post mortem e o direito sucessório. Disponível em <http://www.abdir.com.br/doutrina/ver.asp?art_id=&categoria= Estabelecimento empresarial > Acesso em :3 de junho de 2010
SANTOS, Fernando Ferreira dos. Princípio constitucional da dignidade da pessoa humana . Jus Navigandi, Teresina, ano 3, n. 27, dez. 1998. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/160>. Acesso em: 03 jun. 2010.
VENOSA, Silvio de Salvo. "A reprodução assistida e seus aspectos legais." www.valoronline.com.br, em 23/3/2002, ano 3 nº 474