Renova-se, a cada momento, o debate sobre questões raciais, com especial enfoque para as situações que implicam preconceito de cor. Longe de constituir-se uma novidade, a discriminação ou o preconceito não é tema de hoje. Surge na antiguidade com os regimes escravagistas e presas de guerra, conforme aponta Leon Frejda Szklarowsky em excelente dissertação enfocando o tema "Crimes de Racismo".
Os movimentos organizados voltados a conter tais distorções sociais também não constituem novidade. Apenas passam ao longo do tempo a aperfeiçoar os mecanismos de sua atuação, apoiados em legislação editada com o escopo direto de reprimir e incriminar condutas indesejadas. As diversas declarações de direitos, por meio de dispositivos voltados a assegurar e a ampliar a isonomia entre os indivíduos, são exemplo da atenção emprestada a tais questões.
A vigente Carta Política, promulgada em 1988, contempla dentre os princípios fundamentais da República Federativa do Brasil objetivo especialmente orientado a assegurar ações voltadas a promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º, IV). Vai mais além a Constituição Federal, quando preceitua, em seu art. 5º, inciso XLII, constituir crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos em lei estatuído, a prática odiosa e indesejável do racismo.
Em "Comentários à Constituição de 1967" (Rio de Janeiro: Forense, 1987 3ª ed. Tomo IV p. 709) PONTES DE MIRANDA, com a respeitada e admirada proficiência, aludindo ao preconceito de raça, assevera que a disposição do art. 153, § 1º, 2ª parte, objeto do comentário, mas se prende ou só se prende à lei penal, que há de conter regras jurídicas contra os preconceitos de raça. E acrescenta, a seguir, que a lei penal tem de inserir regras jurídicas sobre crime de preconceito de raça, para que, no plano do direito penal, não possam ficar sem punição os atos positivos ou negativos que ofendam a outrem.
E isto é exatamente o que se observa no sistema em vigor, pois regulando no plano ordinário a vontade do legislador constituinte, a Lei 7.716, editada em 5 de janeiro de 1989 e objeto de diversas alterações, define e consigna orientação no sentido de que serão punidos os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.
Análise e constante reflexão, merecem as condutas diversas que acham-se tipificadas nessa norma, prevendo como crime dessa espécie, dentre outros, os seguintes atos ou ações: a) impedir ou obstar o acesso de alguém, devidamente habilitado a qualquer cargo da Administração direta ou indireta, bem como das concessionários de serviços públicos; b) negar ou obstar emprego em empresa privada; c) recusar ou impedir acesso a estabelecimento comercial, negando-se a servir, atender ou receber cliente ou comprador; d) recusar, negar ou impedir a inscrição ou ingresso de aluno em estabelecimento de ensino público ou privado de qualquer grau; e) impedir o acesso ou recusar hospedagem em hotel, pensão, estalagem ou qualquer estabelecimento similar; f) impedir o acesso ou recusar atendimento em restaurantes, bares, confeitarias, ou locais semelhantes abertos ao público; g) impedir o acesso ou recusar atendimento em estabelecimentos esportivos, casas de diversões, ou clube sociais abertos ao público; h) impedir o acesso ou recusar atendimento em salões de cabeleireiros, barbearias, termas ou casas de massagem ou estabelecimentos com as mesmas finalidades.
Visando a açambarcar o maior número de ações possível, todos eles decerto extraídos das relações sociais e já avaliados como lesivos à pacífica convivência entre as pessoas, qualifica como crime ainda a Lei 7.716/89, atitudes consistentes em impedir o acesso a edifícios públicos ou residenciais, o uso de transportes públicos, o ingresso nas Forças Armadas e, também, impedir ou obstar o casamento ou convivência familiar e social. Constituem práticas preconceituosas, outrossim, a indução ou o incitamento à discriminação, bem assim a fabricação de símbolos que a tanto se prestem.
Idêntica preocupação encontra-se estampada no Código Penal quando, ao cuidar da tipificação do crime de injúria, entendido este como a ofensa à dignidade ou ao decoro pessoal, prevê pena específica para a hipótese de injúria consistente na utilização de elementos referentes à raça, cor, etnia, religião ou origem, agravando, em relação à espécie e ao quantum da pena prevista, que deixa de ser a de detenção e passa a ser de reclusão nesse caso.
Clara e inequívoca é a orientação que se extrai em normas penais quanto à vedação de condutas que se prestem a instabilizar as relações pessoais em decorrência de atitudes preconceituosas relacionadas à raça ou à cor das pessoas.
Oportuno ver, todavia, que não se esgotam as reações possíveis apenas na esfera criminal. A questão não é apenas de tipificação de condutas caracterizadoras de crimes inafiançáveis e imprescritíveis, como podem crer alguns. Na esfera cível, a mesma conduta terá repercussão para os efeitos de que venha a ser prestada a necessária reparação do dano, inclusive moral, causado à pessoa ofendida (RJRS 6ª Câm. Cív. - APC 596136101 Rel. Des. Antonio Erpen julg. Em 22.10.1996).
O aparato legal existente permite extrair clara conclusão no sentido de que a intenção de toda a sociedade é a de não admitir e também em contrapartida reprimir manifestações puramente preconceituosas, não admitindo a evolução de questões raciais que venham em desfavor de um ou outro grupo de indivíduos. Com isso, impõe-se a grupos organizados cuidado para não extremar o debate, enfraquecendo a proteção legal instituída, ou apenas polarizando a discussão, como se, em vez de solução de um problema, apenas desejasse deixar a incômoda posição de oprimido passando à de opressor. O tema, extremamente delicado, não comporta soluções mágicas e exige uma constante vigília sem lado determinado. O encargo é de todos e a todos compete exercitá-lo.