Artigo Destaque dos editores

Novos desafios da democracia à luz do paradigma do Estado Democrático de Direito

Exibindo página 1 de 2
Leia nesta página:

1.Introdução

A compreensão adequada do que representa o paradigma do Estado Democrático de Direito inicia-se com o resgate das conquistas auferidas sob a égide dos outros modelos de Estado da idade contemporânea, isto é, as garantias negativas que limitavam o Estado Liberal e as exigências de atuação positiva que influenciaram o Estado Social, com o objetivo de demonstrar que a democracia não é um fenômeno divorciado das realidades sociais, jurídicas e políticas que a precederam, mas sim uma evolução destas mesmas realidades.

Formado este contexto, é necessário que se fundamente a abordagem acerca do paradigma do Estado Democrático de Direito sobre os valores de soberania e participação popular para, estabelecida esta noção, emoldurá-la com conceitos de autonomia pública e privada, Estado dirigente, legitimidade e, com maior destaque, os valores da liberdade e da dignidade da pessoa humana que formam o núcleo axiológico deste modelo de Estado.

Alcançadas tais propostas, será possível analisar alguns desafios da democracia neste limiar de século XXI.


2.O Estado Liberal

Inaugurado com os movimentos de independência na América (Constituição Norte-Americana de 1787) e com a Revolução Francesa (Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 e Constituição Francesa de 1791) o Estado Liberal é a marca da superação do absolutismo e da proposta de um Estado mínimo, ou seja, um Estado que interviesse o mínimo possível na esfera particular dos cidadãos.

Certamente, ao se abandonar um regime absolutista, caracterizado, entre outros fatores, pela imposição religiosa, fundamentação transcendental do poder e ausência de liberdade política e econômica, o natural é que o Estado fosse conduzido a uma posição diametralmente oposta, esgotado às suas funções mínimas e relegado a segundo plano na direção da sociedade. Assim, em um regime laico, em que os homens se tornaram senhores de sua história [01], num contexto em que novos métodos de investigação científica impulsionavam o racionalismo, os ideais iluministas inspiraram e legitimaram as constituições liberais que homenageavam garantias de natureza negativa, ou seja, disposições destinadas a impedir indesejadas ingerências do Estado na esfera privada do cidadão.

Surgiram então as liberdades clássicas também conhecidas como direitos de primeira geração ou dimensão. São direitos individuais referentes às liberdades públicas, como direitos políticos e direito de propriedade, que traduzem, em suma, o valor da liberdade.

A posição passiva do Estado ante as modificações e sempre crescentes demandas sociais, exatamente em razão de seu caráter liberal, aliada ao egoísmo individualista e à submissão da defesa da propriedade privada aos interesses burgueses capitalistas, restaram por criar um sociedade de massas, que já suportava os efeitos da revolução industrial na Europa. Tais fatores conduziram à crise do Estado Liberal, agravada pela eclosão do movimento comunista, pelos resultados de uma guerra de proporções catastróficas inéditas, a Primeira Guerra Mundial e pela primeira revolução socialista da história, a revolução russa de 1917.

A crise do Estado Liberal demandou uma nova postura do Estado perante a sociedade e deu azo a um novo modelo de Estado, intervencionista, voltado para a conformação da realidade social, e que se caracterizou como um novo paradigma de Estado: o Estado Social.


3.O Estado Social

O Estado Social, ou Estado do bem-estar (Welfare State), caracterizou-se pelo abandono ao individualismo clássico-liberal e pelo reconhecimento de seu equívoco quanto a sua postura como ente governante. Houve uma reorientação do próprio conceito de Estado, que agora voltava seus esforços para a promoção de amplas e diversificadas intervenções na sociedade, visando à realização de justiça social em substituição à postura inerte do liberalismo clássico. O "Estado-Espectador" transformava-se em "Estado-Paternal".

Esta aproximação entre Estado e sociedade garantiu àquele uma posição de agente provedor do bem-estar e a consequente ampliação de suas funções prestacionais. Com isso, as constituições sociais, cujos expoentes máximos eram a Constituição do México de 1917, a Constituição de Weimar de 1919 (Alemanha) e o Tratado de Versalhes, também de 1919, abarcavam garantias positivas (no sentido de uma atuação concretista do Estado), ou direitos de segunda geração ou dimensão, representados por direitos coletivos: culturais, sociais e econômicos, a exemplo do direito à educação, segurança, saúde, lazer, seguridade e previdência social.

Em virtude da posição paternalista ocupada pelo Estado, o Estado Social – cujos governantes, apoiados pelo discurso protecionista e acreditados pela busca do bem a qualquer custo, muitas vezes usufruíam de poderes ditatoriais – não era, em muitos países, comprometido com valores democráticos, compactuando com regimes autoritários. Destarte, a superveniência da Segunda Guerra Mundial e a crise econômica que a sucedeu bem assim a eclosão de movimentos de classes sociais que demandavam autonomia pública (e.g.: movimentos feministas, movimento hippie, pacifistas e ecologistas), expuseram a crise do Estado Social.

Se o modelo do Estado Liberal foi substituído por ter se mostrado incapaz de reconhecer o caráter e o interesse público nas próprias relações privadas, o Estado Social entrou em crise por motivo de mesma natureza, mas de ordem inversa, isto é, por não permitir o desenvolvimento do interesse privado contido nas relações públicas. Trata-se de uma limitação ao exercício da autonomia pública, enfim, à própria cidadania.

Sobrepondo-se ao fracassado paradigma do Estado Social, vem a lume o Estado Democrático de Direito, calcado nos princípios da soberania e participação popular, comprometido com a concretização da justiça social e atento aos problemas ligados à legitimidade e aos direitos fundamentais da pessoa humana, notadamente sua dignidade e sua liberdade.


4.Estado Democrático de Direito

Uma primeira aproximação do paradigma do Estado Democrático de Direito já denuncia suas primeiras nuanças em relação aos princípios da soberania popular e da participação popular. Neste modelo de Estado, a autonomia pública garante aos cidadãos a efetiva participação nas decisões do Estado, seja de forma indireta, através da escolha de representantes eleitos pelo voto popular, seja de forma direta, por meio de mecanismos de exercício direto da participação popular, a exemplo do plebiscito, do referendo, do recall, ações populares, iniciativa popular de projeto de lei, legitimidade do cidadão para oferecer a acusação de impeachment contra o chefe do executivo, entre outros.

Já a autonomia privada garante aos cidadãos ampla liberdade na sua esfera privada de decisão, permitindo que o indivíduo escolha o próprio plano de vida pessoal e a maneira de segui-lo e realizá-lo. Neste ponto, há um resgate de valores liberais abandonados no modelo do Estado Social, manifestados nas garantias negativas de que o Estado não irá interferir na dimensão privada de seus governados. No entanto, os valores liberais rememorados pelo Estado Democrático de Direito representam uma evolução em relação àqueles homenageados no paradigma do Estado Liberal, pois traduzem uma liberdade tutelada pelo Estado. Existem meios institucionalizados de proteção à autodeterminação dos indivíduos e não somente uma liberdade da qual não participa o Estado, muito embora respeitada, típica do Estado Liberal.

Essa dupla garantia à autonomia pública e à autonomia privada não permite que o foco do Estado Democrático de Direito recaia tão somente sobre o indivíduo – tal qual no Estado Liberal – ou exclusivamente sobre o Estado – assim como no Estado Social – mas alça ambos (indivíduo e Estado) ao cerne ontológico do sistema, ou seja, sua essência, ao redor da qual se estabelecem os contornos da democracia participativa.

"Tais esforços têm em comum a valorização dos princípios constitucionais, que garantem a autonomia privada, e os que organizam processos decisórios públicos. Ou seja, a visão de que o público e o privado são, na verdade, esferas complementares e essenciais uma à outra para a configuração do regime democrático; são esferas eqüiprimordiais, para empregar o termo cunhado por Habermas" [02].

Sob este raciocínio e sob uma concepção dialética, é possível afirmar que o Estado Democrático de Direito constitui, não em sua totalidade, mas em alguns aspectos, frise-se, uma síntese evolutiva dos paradigmas do Estado Liberal e do Estado Social. Há um resgate das liberdades individuais clássicas, em respeito à autonomia privada, e a continuação dos objetivos sociais declarados pelo Estado Social, ainda que neste restassem timidamente concretizados. Por isso caracteriza-se como:

"[...] um tipo de Estado que tende a realizar a síntese do processo contraditório do mundo contemporâneo, superando o Estado capitalista para configurar um Estado promotor de justiça social que o personalismo e o monismo político das democracias populares sob o influxo do socialismo real não foram capazes de construir" [03].

Não obstante, além de resgatar e reformular os pressupostos teóricos do Estado Liberal e do Estado Social, perpetuando a tutela de direitos individuais clássicos e de garantias negativas, bem assim de direitos coletivos e garantias positivas da atuação estatal, o Estado Democrático alcança uma nova dimensão de tutela que abrange direitos ligados à solidariedade entre os indivíduos componentes da sociedade e entre esta e aqueles. São os direitos de terceira geração ou dimensão que englobam a tutela de interesses difusos como a proteção ao meio ambiente, ao patrimônio histórico, artístico e cultural, a serviços públicos de qualidade, aos direitos do consumidor, ao desenvolvimento, entre muitos outros direitos cujo titular não pode ser individualizado, mas aproveitam, concomitantemente, ao indivíduo e à sociedade como um todo.

Atualmente já se assiste a uma corrente doutrinária, iniciada pelo insigne italiano Norberto Bobbio, que já expressa a existência de direitos de quarta geração ou dimensão, que seriam direitos transgeracionais, cuja tutela interessaria às próximas gerações e diria respeito à proteção do patrimônio genético, seja do ser humano, seja da fauna e da flora, em virtude dos recentes avanços da engenharia genética e as consequências que se podem vislumbrar para um futuro em que a manipulação do DNA esteja cada vez mais presente.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

Por outro prisma, não se pode deixar de relevar que o modelo de Estado Democrático – cuja noção engloba basicamente as ideias de soberania e participação popular, conforme já visto – também se propõe a ser um Estado de Direito, isto é, um modelo de Estado em que governantes e governados se sujeitam ao império do Direito, vale dizer, às mesmas regras jurídicas. Trata-se de uma revalorização da ordem jurídica com o enaltecimento de princípios frequentemente desrespeitados sob a égide dos paradigmas de Estado que o precederam. O princípio da legalidade – que determina que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer coisa senão em virtude de lei –, o princípio da reserva legal – que condiciona a regulamentação de determinadas matérias à edição de lei formal –, o princípio do devido processo legal (due process of law) – que exige que a privação, redução ou limitação dos bens ou liberdade da pessoa sejam feitos através de um processo legalmente previsto –, evidenciam a preocupação do Estado de Direito com a legitimidade. A lógica do sistema reside no fato de que a lei é a manifestação da vontade popular, seja direta ou indiretamente, e como o poder emana do povo e este é o destinatário último do poder, através de sua vontade é que se encontrará a forma mais legítima do Direito.

Também não se descura que a justiça dos comandos legais também é tomada em conta pelo Estado de Direito. O que se pretende expor é que a obrigatoriedade do Direito não decorre somente de sua positividade, mas principalmente de sua legitimidade e esta, por sua vez, está indissociavelmente comprometida com o valor justiça. A regra injusta fatalmente irá contrariar a Constituição, norma suprema do ordenamento jurídico, em um ou mais de seus dispositivos.

Com efeito, o princípio da Supremacia da Constituição e o controle de constitucionalidade dos atos normativos denunciam outro importante aspecto do Estado Democrático de Direito, qual seja, seu caráter dirigente, procedimentalista e programático. Realmente, a exigência de que as legislações ordinárias supervenientes à promulgação da Constituição respeitem o texto constitucional, sob pena de se verem expurgadas do ordenamento jurídico, demonstra que a Constituição é o fundamento de validade dos demais atos normativos. Isto está a dizer que todas as leis deverão estar em conformidade com os enunciados do plano constitucional estabelecido pelo poder constituinte originário – mas não somente a isto, mas também às normas constitucionais editadas pelo poder constituinte derivado.

Ademais, a Constituição do Estado Democrático de Direito, ao traçar um projeto de Governo e de Estado a ser seguido, enuncia os fundamentos e os objetivos do Estado, seus princípios reitores, estabelece metas a serem atingidas, programa ações do poder público através das normas programáticas e, principalmente, fixa um conteúdo intangível da organização estatal sobre o qual não poderá ser exercido o poder constituinte derivado reformador, isto é, matérias que não poderão ser alteradas através de emenda constitucional. São as chamadas cláusulas pétreas (art. 60, § 4º, CF).

Tais fatores evidenciam a clara intenção do constituinte originário em desenhar as balizas a serem observadas no desenvolvimento do Estado, através de um plano dirigente e programático e de um procedimento democrático a ser seguido, o que é peculiar ao paradigma do Estado Democrático de Direito.

A par de tudo isso, é indispensável que se considere os valores da liberdade e da dignidade da pessoa humana como elementos viscerais do modelo de Estado Democrático de Direito. A liberdade na democracia abrange a manifestação do pensamento, a crença, a locomoção, a atividade intelectual, as atividades econômicas, a associação e a reunião entre as pessoas, enfim, todas as formas de expressão da autonomia privada que não sejam contrárias à lei.

Por seu turno, o princípio da dignidade da pessoa humana é o reconhecimento do valor do ser humano pelo simples fato de o sê-lo. Impõe, acima de tudo, um mínimo invulnerável ligado aos valores morais e espirituais da pessoa humana bem como o respeito que deve existir tanto entre os indivíduos como entre estes e o Estado. Trata-se de um vetor principiológico orientador do conteúdo dos demais direitos fundamentais e por isso considerado pela doutrina como superprincípio.


5.Novos desafios da democracia

Ao se aceitar que a democracia é um fenômeno que está em permanente aprimoramento, uma vez que falível e instável, é possível identificar alguns desafios que os regimes democráticos contemporâneos enfrentam nesse limiar de século.

5.1.A concretização da tutela dos interesses coletivos lato sensu e o fortalecimento das instituições democráticas

Considerando que uma das peculiaridades do Estado Democrático de Direito é o surgimento dos direitos de terceira (difusos) e quarta dimensão (transgeracionais), obviamente um dos principais desafios da atual democracia é a efetivação das garantias que asseguram os mesmos e a sua concretização. Ao se declarar constitucionalmente a tutela de direitos difusos e coletivos stricto sensu, é necessário que se solidifiquem e se aprimorem os mecanismos destinados à garantia de tais direitos, a exemplo das ações populares, ações civis públicas, mandado de injunção, mandado de segurança coletivo, as class actions norte-americanas, entre outras formas de tutela constitucional.

Além disso, para uma adequada proteção aos interesses coletivos lato sensu, não basta que estas ações estejam previstas no ordenamento jurídico positivo, mas é imprescindível que os operadores do direito, sejam eles Magistrados, membros do Ministério Público, Defensores Públicos ou Advogados, estejam familiarizados com estes mecanismos de tutela coletiva e aptos a utilizá-los de maneira correta e eficaz em prol dos jurisdicionados.

Neste ponto, identifica-se outro desafio da atual democracia que reside na necessidade de fortalecimento das instituições democráticas – ao menos em relação aos países em desenvolvimento. No caso específico do Brasil, ainda que se reconheça o recente crescimento e fortalecimento do Ministério Público e da Defensoria Pública – órgãos afeitos à tutela de interesses coletivos lato sensu [04]– ainda é possível apontar carências na estrutura e/ou atuações destas instituições.

Em relação à Defensoria Pública, além da deficiência no número de Defensores, que por si só já resulta em uma sobrecarga de serviço ao profissional, nem sempre conta a mesma com condições de trabalho condignas, seja em virtude da precariedade das instalações, seja em razão dos vencimentos que ainda não alcançaram um patamar razoável sob o ponto de vista remuneratório. Não fossem verídicas tais constatações não nos depararíamos com a tese da inconstitucionalidade progressiva acolhida no Supremo Tribunal Federal [05].

No que toca ao parquet brasileiro, assistimos atualmente a um esforço conjunto da instituição em busca de um Ministério Público resolutivo em termos de atuação e resultado. Objetiva-se que a atuação ministerial seja efetivamente um fator de mudança da realidade social. Para isso, propõe-se, em suma, o fortalecimento da instituição e das prerrogativas funcionais de que gozam seus membros, bem como a implementação de uma política institucional de efeitos a longo prazo.

5.2.O surgimento de uma ordem constitucional global: o dirigismo comunitário

A par disso, em uma análise mais ampla, observa-se a partir do segundo pós-guerra um movimento irrevogável em direção a uma ordem jurídica constitucional globalizada, superposta às soberanias dos Estados, denominado por alguns de dirigismo comunitário. Realmente, os efeitos da globalização evidenciam a necessidade de uma proteção universal dos direitos fundamentais da pessoa humana. Esta uniformização na tutela aos direitos fundamentais se dá, principalmente, através da ratificação aos tratados [06] internacionais que versem sobre direitos humanos, a exemplo da Convenção Americana Sobre Direitos Humanos, também conhecida como Pacto de São José de Costa Rica e do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, ambos dos quais o Brasil é signatário.

Esta busca por uma ordem jurídica globalizada com foco na defesa de interesses comuns aos países, como a tutela de direitos humanos e a perpetuação da paz mundial, justificam atualmente a mitigação da soberania dos Estados, seja com intervenções no território dos mesmos ou com a aplicação de sanções àqueles que não observam as balizas principiológicas transcritas na Carta da Organização das Nações Unidas.

Sobre a relativização do princípio da soberania na era pós-segunda guerra mundial, vale ser transcrito o trecho de um parecer de ex-Juiz da Corte Internacional de Justiça de Haia, o chileno Alejandro Álvares:

"De acordo com o Direito Internacional clássico, a soberania dos Estados e os direitos decorrentes eram absolutos; conseqüentemente, todo Estado podia exercer seus direitos sem limites, ou melhor, seus limites eram os direitos dos outros Estados (coalizão de direitos) e raramente o interesse geral. Ademais, qualquer Estado poderia usufruir de seus direitos em total liberdade e até mesmo abusar [de seus direitos], sem ter de justificar sua conduta para qualquer um. Na atualidade, a situação mudou: a noção de soberania absoluta já teve seu tempo. O interesse geral e o interesse da sociedade internacional devem constituir os limites dos direitos dos Estados e permitir determinar quando há um abuso de direito." [07]

Isto demonstra que todo o regime constitucional que almeje se consolidar ao longo do século XXI deverá se adequar a este novo modelo de justiça global, sob pena de se mostrar insustentável. No Brasil, a recepção a esta ordem de tutela internacional de direitos humanos, manifestada através da ratificação a tratados internacionais que versem sobre o tema, recebe tratamento especial: os tratados internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros – isto é, a mesma exigência formal prevista para a aprovação de uma emenda constitucional – serão equivalentes às emendas constitucionais (art. 5º, §3º, CF). Não bastasse, o STF, no julgamento do RE 466.343, através do voto do Ministro Gilmar Mendes e a exemplo das constituições da Alemanha, França e Grécia, acolheu a tese da supralegalidade (perante a legislação ordinária) em relação ao status normativo dos tratados internacionais versando sobre direitos humanos que fossem incorporados ao ordenamento jurídico brasileiro sob um procedimento diverso daquele previsto no art. 5º, §3º, CF, ou seja, sob o procedimento previsto para a aprovação das leis ordinárias.

5.3.A consolidação de um debate constitucional pluralista e dos ideais neoconstitucionalistas

A evolução da democracia aponta para um horizonte de maior nível de participação popular nos rumos do Estado. Esta perspectiva demonstra que a constituição democrática não pode estar sujeita somente ao debate dos sujeitos envolvidos no discurso jurídico-político, mas deve ser objeto de interpretação de todos os setores representados da sociedade. Isto traduz a ideia de sociedade aberta dos intérpretes da constituição, defendida por Peter Häberle, na qual a constituição seria um sistema de valores aberto ao influxo de interpretações pluralistas, que serão tão mais pluralistas quanto for a sociedade.

Um exemplo emblemático desta ideia é o instituto jurídico do amicus curiae (amigo da corte), fator de legitimação social e de pluralização do debate constitucional que permite que setores representados da sociedade participem, perante a corte constitucional, da discussão de uma questão constitucional de alta complexidade ou repercussão social.

Neste ponto é importante estar atento aos novos enunciados do neoconstitucionalismo que propõe "uma nova forma de estudar, interpretar e aplicar a Constituição de modo emancipado e desmistificado" [08].

O neoconstitucionalismo, cujas bases teóricas estão assentadas no pós-positivismo jurídico [09], traz em seus fundamentos a ideia de força normativa da constituição (KONRAD HESSE) aliada à tese da força normativa dos princípios (RONALD DWORKIN). Defende a interpretação pluralística da Constituição e o fortalecimento da jurisdição constitucional, com a ampliação da incidência do Direito Constitucional para todas as áreas do Direito (expansão normativa do Direito Constitucional) (ROBERT ALEXY). Abarca ainda a proposta de uma hermenêutica concretista, com a substituição do paradigma interpretação-subsunção para interpretação-concretização (PAULO BONAVIDES). Sugere a conversão dos princípios gerais de Direito em princípios constitucionais com eficácia normativa, com especial valorização do princípio da proporcionalidade.

Este será, certamente, o futuro das Constituições do paradigma do Estado Democrático de Direito.

5.4.O convívio harmônico das diferenças

Por fim, aponta-se o que se acredita ser o maior desafio das democracias no século XXI: a busca pelo convívio harmônico das diferenças sejam elas referentes à origem, nacionalidade, cor, sexo, opção sexual, cultura, religiosidade ou qualquer outro fator de desomogeneização presente na sociedade contemporânea.

Como exposto anteriormente, um dos fatores que conduziram à crise do Estado Social foi a eclosão de movimentos de classes minoritárias que reclamavam maior nível de participação pública, o que foi garantido nas constituições do Estado Democrático de Direito. Com efeito, observa-se que as minorias alcançaram, de uma forma razoavelmente satisfatória, a desejada autonomia pública, de tal sorte que, à guisa de exemplo, movimentos de grupos homossexuais contam com representações nos órgãos parlamentares democráticos, como ocorre na Inglaterra, onde se conquistou o direito ao casamento homossexual.

No Brasil, assiste-se a várias reivindicações de grupos minoritários e efetivas conquistas – sem querer adentrar no mérito das mesmas, mas considerando apenas o ponto de vista dos grupos reivindicantes – como, por exemplo, o sistema de cotas para negros para ingresso em universidades públicas e o recente reconhecimento da adoção homoparental (ou seja, aquela efetuada por casal homossexual), pelo Superior Tribunal de Justiça.

No entanto, saindo do plano estritamente normativo, verificamos que ainda há grande nível de resistência por parte da sociedade civil à convivência com os fatores de desomogeneização, em outros termos, de pluralização da sociedade. Assim, os recentes direitos conquistados pelos homossexuais – a adoção homoparental e o casamento homossexual – ainda há de encontrar grande resistência em sociedades conservadoras como o Brasil e a Inglaterra.

Já na Europa continental, após a criação da União Europeia, ocorreu um fenômeno de valorização da cultura europeia e de exaltação ao idem sentire do povo europeu e por consequencia um crescimento das manifestações xenófobas, ou seja, contrárias ao ingresso permanente de estrangeiros não europeus no velho continente, notadamente após a crise econômica mundial do final de 2009. Assim, a xenofobia europeia tanto é resultado do medo de contaminação de sua cultura por elementos exógenos quanto do receio de que a mão de obra estrangeira mais barata ocupe os postos de trabalho e eleve os níveis de desemprego dos europeus.

Nos Estados Unidos da América, de forma mais clara após os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001, verifica-se grande preconceito com os indivíduos de origem árabe residentes no país, de forma que os níveis de tolerância cultural e religiosa caíram sensivelmente, em virtude do medo de novos ataques. Por outro lado, com a guerra do Afeganistão e a guerra do Iraque – países ainda ocupados por tropas militares norte-americanas – o "antiamericanismo" propagou-se pelo Oriente Médio, gerando mais do que um preconceito, um sentimento de ódio com os norte-americanos por parte destes povos e um agravamento na cisão ocidente-oriente.

Podem-se citar ainda os conflitos entre Irlanda e Irlanda do Norte onde a intolerância religiosa entre católicos e protestantes já provocou grande número de atentados terroristas promovidos pelo ex-grupo terrorista IRA, os movimentos separatistas dos povos bascos muitas vezes levados ao extremo pelos militantes terroristas do grupo ETA e os conflitos entre árabes e judeus em Israel.

Todos estes casos demonstram a dificuldade de se conciliar minorias e diferenças com as ideologias e as elites dominantes mesmo em Estados democráticos. As propostas e objetivos do Estado Democrático de Direito somente poderão ser levadas a cabo, seja em que país for, se houver um esforço em prol da conciliação, do acordo, da convivência harmônica, mesmo porque a pluralidade de discursos não é algo prejudicial, mas essencial ao debate democrático.

Por isso se afirma que a democracia é pluralista, pois: "respeita a pluralidade de idéias, culturas e etnias e pressupõe assim o diálogo entre opiniões e pensamentos divergentes e a possibilidade de convivência de formas de organização e interesses diferentes da sociedade" [10].

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA, Humberto Alves Vasconcelos. Novos desafios da democracia à luz do paradigma do Estado Democrático de Direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2573, 18 jul. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17006. Acesso em: 20 abr. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos