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Da necessidade de adoção da teoria da acessoriedade máxima em relação à participação, pelos adeptos do conceito analítico de crime: uma questão de coerência

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Pouca ênfase até o momento tem sido dada à questão atinente à necessidade de adoção da teoria da acessoriedade máxima, em relação à participação, por aqueles que constroem sua doutrina a partir do conceito analítico de crime, em que este se define como qualquer conduta típica, ilícita e culpável.

1. Introdução

O concurso de pessoas sempre foi tema de complexa abordagem no Direito Penal, seja no que concerne à co-autoria, seja no que diz respeito à participação. Contudo, pouca ênfase até o momento tem sido dada à questão atinente à necessidade de adoção da teoria da acessoriedade máxima [01], em relação à participação, por aqueles que constroem sua doutrina a partir do conceito analítico de crime, em que este se define como qualquer conduta típica, ilícita e culpável. Ou seja, afirma-se que seria incoerente a aplicação da teoria da acessoriedade limitada por aqueles que se dizem filiados à corrente que adota o conceito analítico de crime, cumprindo salientar que a discussão ora proposta sequer alcança as teorias da acessoriedade mínima e da hiperacessoriedade, pouco aplicadas pelo seu caráter excessivamente abrangente ou restritivo, respectivamente muito aquém ou muito além do minimamente exigido para viabilizar a punição do partícipe.

Aberto o debate, cabe destacar o caráter acessório da conduta daquele que atua como partícipe em relação à ação ou omissão do agente que desponta como autor do crime, sendo este o verdadeiro protagonista de um enredo em que o primeiro não passa de coadjuvante [02]. Nesse sentido, afirma Damásio E. de Jesus:

O partícipe não comete a conduta descrita pelo preceito primário da norma, mas pratica uma atividade que contribui para a realização do delito. Trata-se de uma hipótese de enquadramento de subordinação ampliada ou por extensão, prevista na lei, que torna relevante qualquer modo de concurso, que transforma em típica uma conduta de per si atípica. (JESUS, 1983, ps. 369/370)

E tal acessoriedade ganha destaque no ensino de Zaffaroni, que assim diz da participação:

A própria expressão "participação" indica que nos encontramos diante de um conceito referenciado, isto é, um conceito que necessita de outro, porque "participação", por si mesma, não nos diz coisa alguma, se não esclarecemos em que se participa. "Participação" sempre indica uma relação, porque sempre se participa em "algo". Este caráter referencial ou relativo (relacionado com algo) é o que dá à participação sua natureza acessória. (ZAFFARONI, 2008, p. 585)

Fixado o caráter acessório da participação, conclui-se que sua verificação ocorre em relação de dependência à de um evento principal, qual seja, o crime. Desse modo, tem-se que o conceito adotado na definição de crime emerge como basilar na caracterização da participação. É nesse ponto que novamente vem à tona a divergência que até pouco tempo atrás era tema principal nos debates acadêmicos em se tratando de Direito Penal, dividindo os juristas basicamente entre aqueles que adotam o conceito analítico de crime e os que se filiam à corrente que tem por expoentes, dentre outros, René Ariel Dotti e o citado Damásio E. de Jesus, para os quais a culpabilidade não é elemento essencial de integração do conceito de crime, mas mero pressuposto de aplicação da pena.


2. A polêmica doutrinária

Após retomar os argumentos que, apoiados no previsto pelo Código Penal, o motivaram a sustentar que a culpabilidade deveria ser analisada no âmbito da teoria geral da pena – e não na teoria geral do delito –, Dotti cita Damásio, no que destaca a adesão deste autor a tais idéias, concluindo seus apontamentos com uma resposta a seus críticos, para afirmar que "o CP fornece uma leitura suficiente para se concluir que a culpabilidade é muito mais um pressuposto da pena que um elemento do crime" (DOTTI, 2004, p. 339):

Abstraindo-se as ponderações ortodoxas para se adotar uma compreensão lógico-sistemática do tema, é forçoso reconhecer que o crime, i.e, a ação típica e ilícita, é uma causa funcionando o juízo de reprovação (culpabilidade) como seu efeito. São, portanto, fenômenos associados, porém distintos e separáveis conforme as circunstâncias. (DOTTI, 2004, p. 338) (destaque nosso)

Verifica-se, pois, que, para essa corrente – consoante destacado –, crime é toda conduta típica e ilícita, dispensando-se a apuração da culpabilidade para sua caracterização. Nesses termos, e partindo-se do princípio jurídico geral segundo o qual o acessório segue o principal (accessorium seguitur principale), pode-se concluir de forma coerente que, para a doutrina em questão, a existência e punição da participação dependeriam essencialmente da constatação da prática de uma conduta típica e ilícita. Isso, sem dúvida, subsume-se aos princípios em que se funda a teoria da acessoriedade limitada que, segundo Greco (2006), é adotada pela maioria dos doutrinadores e para a qual "é preciso que o autor tenha cometido um injusto típico, mesmo que não seja culpável, para que o partícipe seja penalmente responsabilizado" (GRECO, 2006, p. 485).

Posto isso, o que ora se contesta – tendo-se em vista a necessidade de coerência na construção de qualquer discurso ou sistema (BOBBIO, 1999) – é que a teoria da acessoriedade limitada seja a adotada pelos autores que constroem sua doutrina com fundamento no conceito analítico de crime. Afinal, para esses autores, crime ou delito é toda conduta típica, ilícita (ou antijurídica) e culpável, em construção que, embora reconheça o crime como um todo unitário, estratifica-o visando à melhor análise dos elementos que o integram, para que se possa determinar se a conduta praticada é, de fato, um crime ou um indiferente penal. Dessa forma, cada elemento apresenta-se como pressuposto de existência do seguinte na ordem de análise que conduz à verificação do caráter criminoso ou não da conduta, de modo que, para efeitos penais, a ilicitude de uma dada ação ou omissão só poderá ser apurada se já se concluiu por sua tipicidade; por sua vez, só se passará ao exame da culpabilidade ante a verificação da tipicidade e ilicitude da conduta perpetrada; por fim, só se terá um crime, quando se estiver diante de uma ação ou omissão que em si reúna os elementos da tipicidade, da ilicitude e da culpabilidade.

A corroborar essa assertiva, a lição do mestre Heleno Cláudio Fragoso:

O conceito de crime estabelece-se através de um processo de abstração científica, a partir do Direito Penal vigente. Através dele determinam-se as características gerais de toda conduta delituosa descrita nas leis penais e por isso mesmo constitui ele a noção básica e fundamental do direito punitivo. Crime é a ação (ou omissão) típica, antijurídica e culpável. Isso significa dizer que não há crime sem que o fato constitua ação ou omissão: sem que tal ação ou omissão correspondam à descrição legal (tipo) e sejam contrárias ao direito, por não ocorrer causa de justificação ou exclusão da antijuridicidade. E, finalmente, sem que a ação ou omissão típica e antijurídica constitua comportamento juridicamente reprovável. (FRAGOSO, 1991, ps. 141/142)

Assim, numa construção lógica, considerando-se a acessoriedade da participação em relação à conduta praticada pelo autor e tomando-se por ponto de partida o conceito analítico de crime, além do disposto no art. 31 do Código Penal, deve-se concluir que o ajuste, a determinação (induzimento) ou instigação e o auxílio, salvo tipificação específica, não são puníveis, se o agente de uma conduta típica, ilícita e culpável não chega, pelo menos, a ingressar na fase de execução.

Sob esse prisma, problemas de política criminal surgem e incomodam, como, por exemplo, a impossibilidade de se punir alguém que empreste o revólver a um menor que com a arma venha a praticar um ato infracional. Contudo, deve-se considerar que questões políticas não podem atingir de forma direta e deletéria a coerência da dogmática penal, sob pena de minar as bases do próprio ordenamento jurídico ao impor contradições em seu núcleo (BOBBIO, 1999).

Dessa forma, quando se toma o conceito analítico de crime por referência na construção de uma doutrina e o próprio ordenamento jurídico considera a conduta típica e ilícita praticada pelo menor de dezoito anos não como crime, mas como ato infracional (art. 103 do ECA) – considerada sua inimputabilidade penal (art. 228 da CF e 27 do CP) –, o que se tem a fazer é reconhecer como impassíveis de punição condutas como o auxílio material acima descrito, haja vista que não se pode falar em participação sem que diante de si verifique-se um crime. Entendimento contrário elidiria a referência primeira aqui proposta – que é o conceito analítico de crime – e, portanto, a nosso ver, feriria o próprio princípio da legalidade, ao determinar a punição pela participação sem a constatação de um crime, mas estando-se simplesmente diante de um ato infracional.

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3. Considerações finais

Nesta construção, consoante as bases do ensino de Welzel, cremos que, tratando-se o crime de uma ação ou omissão humana, não há como desvincular a vontade finalisticamente dirigida como elemento subjetivo essencial a sua caracterização. Por conseguinte, a reprovabilidade da conduta que materializa esse animus – ou mesmo reveste uma violação ao dever objetivo de cuidado – também deve ser considerada como essencial à atribuição do rótulo de crime a uma ação ou omissão típica e ilícita. Nesse sentido, entendemos excessiva – pelo menos para a caracterização da participação [03] – a distinção entre o que seria uma acessoriedade quantitativa de outra qualitativa, como faz Regis Prado [04], mostrando-se suficiente que se constate a prática de um crime, a partir da visualização dos elementos que o integram, no entender de cada corrente doutrinária. Diante disso, com a devida reverência àqueles que com autoridade adotam outro posicionamento, concluímos no sentido de que a culpabilidade é elemento integrante essencial da definição de crime, como faz ver o conceito analítico, sendo, portanto, imprescindível para caracterização da autoria/co-autoria e, logo, da participação.

Partindo desse pressuposto e do disposto no art. 31 do CP, a outra conclusão não se chega senão à de que só é passível de punição o induzimento, a instigação e o auxílio a conduta típica, ilícita e culpável que chegue, ao menos, a ser tentada, conforme sustenta a teoria da acessoriedade máxima em relação à participação.

O que vale ratificar, por fim, é que a problemática em questão reporta-nos mesmo a uma questão de coerência do sistema, pois se a punição que se pretende definir com uma das mencionadas teorias refere-se à participação – que é acessória à autoria, exercendo papel apenas secundário –, conclui-se que esta só poderá ser punida quando se estiver diante da existência de um crime, momento em que se reveste de suma importância a teoria adotada para sua conceituação.

Diante do exposto e do caráter sistêmico do ordenamento jurídico-penal, emerge patente a necessidade de adesão à teoria da acessoriedade máxima em relação à participação para os que adotam o conceito analítico de crime como fundamento primeiro de sua doutrina, de modo a se afastarem disparates, contradições ou mesmo construções mirabolantes para a interpretação e aplicação das leis penais. Assim, clarifica-se o ordenamento, evitando-se conseqüências danosas à liberdade daqueles submetidos à jurisdição penal. Dessa forma – o mesmo se aplicando à tipicidade e ilicitude –, em não se apurando a culpabilidade quanto à prática de determinada conduta, não há de se falar em crime, do que se infere, como corolário lógico do caráter acessório deste instituto, que também não há de se falar em punibilidade pela participação, conforme prescreve a teoria da acessoriedade máxima.


Referências bibliográficas:

BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. 10ª ed. Brasília: Editora UNB, 1999.

DOTTI, René Ariel. Curso de direito penal: parte geral. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004.

GRECO, Rogério. Curso de direito penal. 6ª ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2006.

FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal: parte geral. 13ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1991.

JESUS, Damásio Evangelista de. Direito Penal. 8ª ed. São Paulo: Saraiva, 1983.

PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro, volume 1: parte geral. 7ª ed. São Paulo: RT, 2007.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Manual de direito penal brasileiro, volume 1: parte geral. 7ª ed. São Paulo: RT, 2008.


Notas

  1. Ou mesmo da hiperacessoriedade, em última e radical instância.
  2. Tem-se então, que o partícipe, apesar de não praticar a conduta descrita no tipo penal incriminador – em não havendo tipos específicos para incriminar seu concurso –, contribui e auxilia para que o autor ou co-autores, caso existam, a executem, o que determina sua responsabilização penal, de acordo com a importância de sua participação, nos termos da norma de extensão contida no art. 29 e segs. do Código Penal.
  3. Faz-se necessário o esclarecimento porque a percepção de uma acessoriedade qualitativa pode até se mostrar relevante na fixação da pena, ou seja, na punição, quando da análise da culpabilidade do partícipe ou da aplicação da diminuição de pena prevista no art, 29, § 1º, do CP.
  4. "A dependência da participação com relação à autoria permite a identificação de uma acessoriedade quantitativa e de uma acessoriedade qualitativa. A primeira significa que o início da execução pelo autor marca o limite indispensável para a punibilidade da participação (art. 31 do CP). Já a acessoriedade qualitativa diz respeito ao grau de dependência da participação". (PRADO, 2007, p. 493).
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Sobre os autores
Domingos Barroso da Costa

Graduado em Direito pela UFMG. Especialista em Criminologia e Direito Público. Mestre em Psicologia pela PUC-Minas. Assessor judiciário e professor universitário. Membro do INESPE – Instituto Novalimense de Estudos do Sistema Penitenciário.

Daniela de Fátima Paiva

Bacharelanda em Direito pela UNIPAC, em Itabirito (MG)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COSTA, Domingos Barroso ; PAIVA, Daniela Fátima. Da necessidade de adoção da teoria da acessoriedade máxima em relação à participação, pelos adeptos do conceito analítico de crime: uma questão de coerência. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2576, 21 jul. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17009. Acesso em: 19 abr. 2024.

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