INTRODUÇÃO.
As Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal promulgaram no último dia 13 de julho de 2010 a emenda constitucional de n.º 66, destinada a agilizar o processo de divórcio.
Com a alteração, casais que queiram se divorciar poderão fazê-lo independentemente da prévia realização da separação judicial ou da comprovada separação de fato por mais de dois anos. Poderão, rotos os laços de afetividade, divorciar-se no dia seguinte ao das núpcias.
A emenda teve origem em propostas do deputado Sandes Júnior, do PP-GO, do deputado Antonio Carlos Biscaia, do PT-RJ, e do deputado Sérgio Barradas Carneiro, do PT-BA. Aprovada definitivamente na Câmara dos Deputados em junho de 2009, com 315 votos favoráveis e 88 contrários, a PEC seguiu para o Senado, onde, em segundo turno, recebeu 49 votos a favor, 04 contra e 03 abstenções. Promulgada aos 13 de julho de 2010, entrou em vigor na data de sua publicação, que ocorreu aos 14 de julho de 2010.
Segundo Antonio Carlos Biscaia "O divórcio já é um tema consolidado em nosso País desde a Lei do Divórcio, de 1977. Não há razão para que a Constituição faça exigências". "A PEC vai acabar com a hipocrisia hoje existente de um casal que se separa hoje e amanhã leva uma testemunha para prestar depoimento falso".
Apesar da forte oposição da CNBB, a qual chegou a afirmar, em dezembro do ano passado, que a alteração constitucional acabaria por "banalizar a família", a inovação tem sido vista com bons olhos pela sociedade. Pesquisa de opinião realizada pela Folha de São Paulo constatou um índice de aprovação de 87% dos participantes [01].
Para o senador Demóstenes Torres, do DEM-GO, relator da matéria na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado:
"A sociedade brasileira é madura para decidir a própria vida e as pessoas não se separam ou divorciam apenas porque existem esses institutos. Portanto, não é a existência do instituto do divórcio que desfaz casamentos, nem a imposição de prazos ou separações intermediárias que o impedirá".
Estima-se que a mudança beneficiará as mais de 153 mil pessoas que se divorciam por ano no Brasil, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) para 2008, ano em que o número de divórcios bateu recorde no país.
Além de desburocratizar a desconstituição do enlace matrimonial, a mudança vai gerar grande economia para o brasileiro, que não mais terá que gastar por duas vezes com despesas processuais, cartorárias e honorários de advogado.
Ophir Cavalcante, presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), destacou essa vantagem dizendo que:
"Não há sentido algum que o cidadão tenha que despender custos com a separação judicial e depois gastos adicionais com o divórcio em si. É como se o Estado cartorializasse uma relação que já poderia ter sido encerrada em um primeiro momento"
A economia também é moral, pois o divórcio imediato evitará dor e sofrimento para as partes e para os filhos, os maiores prejudicados com a situação.
II – DA EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO INSTITUTO DO DIVÓRCIO.
Fustel de Coulanges há muito já advertia, em sua monumental obra "A Cidade Antiga", que "não está na natureza do Direito ser absoluto e imutável. O direito modifica-se e evolui, como qualquer obra humana. Cada sociedade tem seu direito, com ela se formando e se desenvolvendo, com ela se transformando e, enfim com ela seguindo sempre a evolução de suas instituições, de seus costumes e de suas crenças [02]."
O direito de família é um dos segmentos jurídicos que mais se modificou nos últimos tempos, sendo chamado hodiernamente de direito das famílias para abarcar as mais diversas formas de entidade familiares, como a monoparental, a decorrente da união estável e das relações homoafetivas. Sendo a família o núcleo primevo da sociedade, é nela que as alterações prodrômicas e intensas se manifestam, irradiando-se para fora dela; por isso, o vanguardismo da jurídica familiar.
Para o revogado Código Civil Brasileiro (1916), a idéia de família compreendia apenas a união resultante do casamento indissolúvel e caracterizador de uma série de desigualdades fáticas e jurídicas entre o homem e a mulher, que ganhou maior autonomia apenas com o advento do Estatuto da Mulher casada, lei 4121 de 27 de agosto de 1962.
A idéia de casamento indissolúvel somente foi superada com a emenda constitucional número 9, de 28 de junho de 1977, regulada pela lei 6515, de 26 de dezembro do mesmo ano. Idealizada pelo senador Nelson Carneiro, ela dissociou o casamento da visão sacramental da igreja católica, secularizando-o e o aproximando da idéia de afetividade como gérmen da união ente um homem e uma mulher.
Todavia, de fato, verdadeira ruptura com o paradigma da família conservadora e patriarcal só ocorreu com a promulgação da Constituição Federal de 05 de outubro de 1988. Fundada na dignidade da pessoa humana, a nova Carta destacou-se por consagrar a igualdade entre cônjuges, ampliar o conceito de família, e acabar com a distinção entre filhos legítimos, naturais, adulterinos, incestuosos e adotivos.
A idéia de família centrada no matrimônio deu lugar à família de concepção eudemonista [03], em que a afetividade e a busca da felicidade são o seu alicerce.
Nas palavras de Paulo Lôbo [04], a nova noção de família "reinventando-se socialmente, reencontrou sua unidade na affectio, antiga função desvirtuada por outras destinações nela vertidas, ao longo de sua história. A afetividade, assim, desponta como elemento nuclear e definidor da união familiar, aproximando a instituição jurídica da instituição social. A repersonalização das relações jurídicas de família é um processo que avança, notável em todos os povos ocidentais, revalorizando a dignidade humana, e tendo a pessoa como centro da tutela jurídica, antes obscurecida pela primazia dos interesses patrimoniais, nomeadamente durante a hegemonia da individualismo liberal proprietário, que determinou o conteúdo das grandes codificações"
E foi com base nesse sentimento que foi aprovada e promulgada a emenda do divórcio, que acaba definitivamente com a separação judicial e a exigência do prazo de 02 (dois) anos de separação de fato para a concessão do divórcio direto.
III – DA ALTERAÇÃO NORMATIVA.
A norma constitucional alterada previa que o casamento civil poderia ser dissolvido pelo divórcio, após prévia separação judicial por mais de um ano nos casos expressos em lei, ou comprovada separação de fato por mais de dois anos (artigo 226,§6º, CRFB).
Tinha-se dois institutos: a separação judicial e o divórcio. Naquele, desfazia-se a sociedade conjugal e os deveres recíprocos, mas ainda permanecia o matrimônio. No divórcio, além da sociedade conjugal e deveres matrimoniais, extinguia-se o casamento, possibilitando que as partes se casassem novamente.
Processualmente havia duas possibilidades centrais: separar-se judicialmente para, após 01 ano, divorciar-se, ou aguardar um biênio de separação fática e propor diretamente o divórcio.
Com a emenda constitucional, a nova regra passou a dispor apenas que "o casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio".
Simples interpretação do preceptivo deixa claro que se acabou, de uma vez por todas, com a separação como requisito jurídico para o divórcio, bem como que não se exige mais o prazo mínimo de 02 (dois) anos de separação fática para divórcio direto. Querendo, os cônjuges hoje podem se divorciar a qualquer momento, inclusive sem processo judicial, se preenchidos os requisitos que o permitem em Tabelionato.
Outro ponto de grande relevo, que já irrompia no firmamento jurídico, era a desnecessidade de perquirir-se a culpa sobre o malogro do casamento. Desde a primavera de 1988 já não se cogitava de condicionar a extinção do conúbio ao escrutínio da culpa dentro do procedimento de divórcio.
Conforme entendeu o Min. Ruy Rosado de Aguiar do Superior Tribunal de Justiça, em 05 de dezembro de 2002, no julgamento do REsp 467.184 de São Paulo, "evidenciada a insuportabilidade da vida em comum, e manifestado por ambos os cônjuges, pela ação e reconvenção, o propósito de se separarem, o mais conveniente é reconhecer esse fato e decretar a separação, sem imputação da causa a qualquer das partes".
Como a culpa somente tinha espaço jurídico e processual no procedimento de separação judicial e, como hoje ela (a separação litigiosa) é dispensável, a prospecção de quem fez naufragar o amor é metajurídica e de foro íntimo, não se prestando mais para empenar ou viabilizar o desfazimento do casamento
Assim, se permanecesse, o instituto da separação litigiosa [05] certamente seria relegado ao plano do esquecimento, tornando-se letra morta no vasto arcabouço jurídico brasileiro, em razão de sua absoluta inutilidade. Afinal, em separação judicial, afora a consensual e aquela derivada de um ano de separação social, o único epicentro era a discussão da culpa.
Sua análise, todavia, permanece relevante apenas no que tange a prestação de alimentos e a permanência da utilização do sobrenome. Por isso que não é de todo acertado, caindo-se no equívoco das banalizações, afirmar que a culpa pela falência erótica foi degredada do ordenamento jurídico.
Não o foi! Ela apenas é inútil, irrelevante e impertinente para concessão de divórcio, mas se mantém como elemento do suporte fático dos alimentos necessários com exclusão dos côngruos e manutenção do nome de casado. Aqui, nesse ponto, é necessário esclarecer que o fundamento da análise de culpa para afastamento dos alimentos côngruos ao outro cônjuge não reside mais no art. 1.702 e 1.704, remanescendo como suporte jurídico apenas o art. 1694, §2º.
Tal regra, do art. 1694, §2º, aplicado aos alimentos necessários entre ex-cônjuges é imposição da ética e da liberdade no direito de família. Se as pessoas são livres para buscarem a felicidade, repudiando o desamor que chega, são também responsáveis pela escolha de por cabo ao relacionamento já desgastado e tudo quanto dele vinha, como condição social advinda da concorrência de patrimônios. O que não se pode é proclamar a dignidade da pessoa humana, a liberdade de escolhas, o direito fundamental à felicidade e desjungi-las das conseqüências sociais, psicológicas e jurídicas daí dimanadas.
Prosseguindo nessa perfunctória análise, é de se indagar se a separação judicial foi, deveras, extirpada do ordenamento jurídico pela superveniência constitucional. A novel norma constitucional preceitua que o casamento será extinto pelo divórcio, silenciando-se quanto à separação; nada diz, nada proscreve.
Lança-se, nesse contexto, outra indagação retórica: o casal que passe por crise familiar, querendo buscar um respiradouro [06], deverá divorciar-se açodadamente ou viver em ligeira ilegalidade, que constrange socialmente muitos, uma vez que presente ainda o dever de fidelidade recíproca?
Clama, agora, uma digressão: Se não é lícito ao Estado impor a convivência em prejuízo da felicidade, o que tem feito o Estado para auxiliar a manutenção das estruturas familiares de maneira saudável, hígida e feliz?
Ao lado da "PEC do Amor" deveria vir toda estrutura psicossocial para que as escolhas familiares fossem conscientes, certeiras, firmes e direcionadas. Faz-se referência à Defensoria Pública do Estado de São Paulo [07] que, de forma pioneira e contemporânea, conta com existência de Centros de Atendimento Multidisciplinar, com agentes da área de psicologia e assistência social, cuja finalidade é auxiliar o Defensor Público a alcançar, juntamente com o cidadão que busca os serviços institucionais, a solução jurídica e social mais adequada, principalmente na área da família; há investimento forte e intenso para sessões de conciliação e mediação, resultando em respostas duradouras e de simpatia dos envolvidos e por eles arquitetadas, desatolando o judiciário e otimizando todo o serviço jurisdicional.
Concluída a digressão, retomasse a questão as separação consensual. Há que se respeitar a vontade dos indivíduos, ainda incertos quanto ao futuro, mas decididos quanto ao presente. Há que se viabilizar e reconhecer a persistência da separação consensual em nosso sistema. Nem se venha redargüir que serão esses casos poucos ou mesmo raros, porque o Direito, em sua modernidade, também tutela e promove a felicidade de minorias.
De todo modo e em epítome, a partir de agora, resolvendo se divorciar, basta ao casal fazer tal pedido ao juiz ou efetuá-lo diretamente no Tabelionato de notas por meio de um advogado ou defensor público. Não há mais que se cogitar acerca de qualquer lapso temporal de separação ou qualquer outra causa determinadora do fim do matrimônio.
A obrigatoriedade da assistência jurídica permanece em razão de sua indispensabilidade para a solução de questões atinentes a partilha de bens e interesses dos filhos, como alimentos, direito de visitas e guarda.
Aqueles que já estão separados judicialmente, independentemente do prazo, já podem requerer o divórcio imediatamente, seja ele consensual ou litigioso. Isso porque a norma constitucional não estabeleceu tal discrimen, limitando-se a dizer que o "casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio". Dessa forma, a medida serve tanto para os divórcios consensuais quanto litigiosos, bem como para os judiciais ou extrajudiciais, feitos em Tabelionato de Notas.
Quanto aos processos de separação em curso, basta sua conversão para o procedimento do divórcio, sem maiores questionamentos ou complicações.
IV- CONCLUSÕES.
Não há dúvidas de que a modificação constitucional coloca o direito de família em consonância com sua atual perspectiva socioafetiva e eudemonista, consagra o princípio da liberdade e respeita a autonomia da vontade, sensibilizando-se com o fato de que muita vez o casamento é prisão, cujo cadeado era a culpa, o processo e o tempo.
A mudança alça o direito brasileiro ao patamar do vanguardismo, tornando-o mais evoluído no assunto do que o direito alemão e o direito português, que ainda estabelecem condições temporais para a dissolução do casamento.
Diante do evolver social, não havia mais sentido permanecer o Estado impondo óbices ao fim jurídico de um casamento que faticamente já não mais existia.
Ficam, ademais, as conclusões sobre os alimentos necessários como consectário lógico-ético-filosófico sobre a liberdade e busca pela felicidade e sobre a persistência da separação consensual como homenagem e respeito à liberdade de refletir, decidir e viver em sintonia jurídica e social.
Destaca-se, por derradeiro, a necessidade de criação de órgão de conciliação, mediação e orientação psicossocial na área familiar, sobretudo à população carente, impondo relevo o projeto institucional, em plena marcha, da Defensoria Pública do Estado de São Paulo por meio de seus órgãos auxiliares e Centros de Atendimento Multidisciplinar (CAM).
A nova emenda merece, pois e em suma, aplausos.
Notas
- http://polls.folha.com.br/poll/1018901/results, acessado aos 10 de julho de 2010, às 19h)
- (A Cidade Antiga, Fustel de Coulanges, tradução de Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca, Ediouro, 1989, pág. 211).
- O eudemonismo é a perspecitva filosófica que diz ser a felicidade o verdadeiro objetivo da vida humana. Segundo Aristóteles, em sua obra Ética a Nicômaco, 1.12.8, ""A felicidade é um princípio; é para alcançá-la que realizamos todos os outros atos; ela é exatamente o gênio de nossas motivações. Nessa perspectiva, família eudemonista é a decorrente da convivência entre pessoas por laços afetivos e de solidariedade mútua, e não por simples vínculos jurídicos.
- LÔBO, Paulo Luiz Netto. A repersonalização das relações de família . Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 307, 10 maio 2004. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/5201>. Acesso em: 14 jul. 2010
- A separação consensual, como sugestionaremos, pode persistir.
- É o que os jovens chamam de "dar um tempo". É a crítica filosófica que os (ex)amantes fazem ao relacionamento amoroso durante um tempo, cujo resultado é a sua destruição efetiva porque o soçobramento era de rigor ou a tonificação daquilo que, literalmente, deve ficar "ereto". Filosófica porque a "filosofia, com efeito, procura sempre respostas a perguntas sucessivas, objetivando atingir, por vias diversas, certas verdades gerais, que põem a necessidade de outras: daí o impulso inelutável e nunca plenamente satisfeito de penetrar, de camada em camada, na órbita da realidade, numa busca incessante de totalidade de sentido, na qual se situem o homem e o cosmo (REALE, Miguel. Filosofia do Direito, 20ª ed, p. 6. São Paulo: Saraiva, 2009.)
- Confira-se em www.defensoria.sp.gov.br.