Processo nº xxxx.x.xxxxxxxx
AÇÃO SOCIOEDUCATIVA
Adolescente: JOSÉ (nome fictício)
D E C I S Ã O I N T E R L O C U T Ó R I A
O representado JOSÉ foi sentenciado por este magistrado ao cumprimento da medida socioeducativa de SEMILIBERDADE e da medida protetiva prevista no inciso VI do artigo 101 do ECA (desdrogadição), pela decisão de fls. 78/81 e por infração ao artigo 155, inciso IV, do Código Penal Brasileiro.
Atendendo requerimento do ilustre representante do Ministério Público Estadual, foi decretada a internação provisória do adolescente pelo prazo normal de 45 dias, que teve início em 17 de março de 2010.
Durante tramitação normal do feito, em audiência de apresentação, declarou o adolescente, entre outras coisas, que usou o dinheiro que conseguiu com o furto para ingerir bebida alcoólica; que é usuário de "maconha" e esta seria a sua terceira passagem pela polícia.
No mesmo ato e no mesmo sentido, seu genitor revela que JOSÉ já há quatro (4) anos está envolvido com drogas e furtos; que "chegou a pagar por três vezes por objetos furtados" por seu filho, "porque as vítimas tinham algum envolvimento com pessoa (sic) perigosas", que inclusive o ameaçaram de morte. Acrescentou que ele não consegue ficar dentro de casa; que já fugiu por várias vezes; que costuma vender objetos de sua própria casa para sustentar o vício da droga e da bebida, acreditando ser útil deva ele permanecer internado e que seja submetido a tratamento de desdrogadição. Desabafou, contudo e ainda, que não tem mais condições de ficar com o adolescente (grifei).
De outra banda, assevera o Relatório de Acompanhamento Institucional do CIAM (fls. 46/51) a situação do adolescente:
1.segundo a genitora, seu filho é bastante imaturo e desobediente, não segue as regras e horários determinados por seus pais;
2.começou a usar drogas, bebida alcoólica e a fumar cigarro comum aos doze (12) anos de idade;
3.admite ele que precisa de tratamento especializado;
4.foi levado em 2007 para o CENPREN e ele não mais retornou para concluir o tratamento;
5.foi encaminhado ao CCDQ quando saiu a primeira vez do CIAM;
6.não voltou a estudar (medida de proteção que lhe fora antes aplicada);
7.que foi ameaçado de morte em Altamira por ter feito um disparo de arma de fogo contra um filho de um policial, quando teve que retornar para Belém;
8.sua rotina é ociosa (passa horas na rua em más companhias e só vai em casa para fazer refeições);
9.está afastado da escola por ter esfaqueado um colega com um "estoque";
10. no CIAM foi encaminhado novamente ao CCDQ;
11.os pais não comparecem a unidade para atendimento com a equipe técnica e nem às reuniões com a família, apesar de notificados;
12.psicologicamente, o adolescente é imaturo e influenciável e não tem controle e limites de seus responsáveis (fator que possibilita a reincidência), e,
13.CONCLUSÃO
: ADOLESCENTE E FAMÍLIA NECESSITAM DE ACOMPANHAMENTO INTERDISCIPLINAR PARA QUE POSSAM ASSUMIR SUAS RESPONSABILIDADES E EXERCITAREM O PAPEL DE EDUCADOR E EDUCANDO, COM O ENCAMINHAMENTO DOS PAIS PARA O CREAS E A APLICAÇÃO DA MSE DE SEMILIBERDADE.O apelante se encontra, ainda, em descumprimento das medidas socioeducativass de liberdade assistida e de prestação de serviços à comunidade (fato ocorrido em xxxxxxxxxxx) e também já foi sentenciado no processo nº xxxxxxxxxxxxxxx a cumprir outra semiliberdade.
É fato, pois, que até hoje JOSÉ não cumpriu, efetivamente, qualquer medida que lhe fora imposta e que a situação dele é deveras preocupante.
Tal fato deixa à evidência que as MSE's antes aplicadas se revelaram brandas e não alcançaram seu desiderato.
Em consequência, continuou o adolescente na prática de mais dois (2) atos infracionais da mesma espécie, seguramente motivado pela frouxidão dos freios familiares aplicados (quase nenhum) e, principalmente, por seu envolvimento com o uso de drogas.
Vislumbro, desta feita, que seus direitos fundamentais não vêm sendo respeitados.
Nada custa transcrever o artigo 4º do ECA:
É DEVER DA FAMÍLIA, DA COMUNIDADE, DA SOCIEDADE EM GERAL E DO PODER PÚBLICO ASSEGURAR, COM ABSOLUTA PRIORIDADE A EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS REFERENTES À VIDA, À SAÚDE, À ALIMENTAÇÃO, À EDUCAÇÃO, AO ESPORTE, AO LAZER, À PROFISSIONALIZAÇÃO, À CULTURA, À DIGNIDADE, AO RESPEITO, À LIBERDADE E À CONVIVÊNCIA FAMILIAR E COMUNITÁRIA.
A criança e o adolescente neste País têm direito à proteção integral e à prioridade absoluta prevista na norma constitucional do artigo 227, que ainda acrescenta que devem ser colocados "a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão".
In casu
, constato que o adolescente se encontra em situação de total vulnerabilidade social, moral, material, familiar e afetiva, além de risco pessoal, em razão da visível omissão da família, da sociedade e do Poder Público, que nem sequer consegue dar-lhe um tratamento justo e adequado para a desdrogadição.Resta claro nos autos que JOSÉ necessita, desde há muito tempo, de ver garantidos aqueles direitos fundamentais que lhe prometeram. Precisa ser resgatado como pessoa em desenvolvimento que é, já que também é credor da proteção integral. E isto, é óbvio, não poderá ocorrer tão-somente no seio de sua família, a qual, como disse, até hoje, se revelou e se declarou incapaz de lidar sozinha com a triste situação de seu filho, muito embora a sua participação no processo de reconstrução seja indispensável.
No espírito deste magistrado cala fundo a necessidade de que o jovem deve, desde logo, iniciar o cumprimento da MSE de semiliberdade para que tenha garantidos, mesmo que em tese, os seus direitos fundamentais, principalmente o tratamento contra as drogas, pois, espontaneamente, não conseguirá tal intento pelo grande poder de domínio e de destruição das subsistências químicas que tem usado, não podendo o Poder Judiciário "fechar os olhos" para isto. A Justiça não pode ser tão cega a este ponto!
É sabido, entretanto, que pelas novas regras inseridas pela Lei nº 12.010/2009, que revogou – erroneamente – o inciso IV do artigo 198 do ECA, o recurso de apelação interposto contra sentenças proferidas em feitos desta natureza, devem (?) agora ser recebidos em ambos os efeitos previstos em lei, ou seja, no efeitos devolutivo e suspensivo, retirando, assim, a eficácia imediata do que na sentença ficou decidido.
Em tese, agora, não se pode mais executar decisão que impõe qualquer das medidas socioeducativas, desde que, para tanto, a defesa interponha recurso de apelação. As únicas exceções, contudo, são as previstas nos artigos 199-A e 199-B do Estatuto.
Entre os operadores do Direito da Infância e da Juventude tal mudança causou um grande sentimento de frustração, comparada apenas a explosão de uma "bomba atômica", haja vista que, in concreto, retirou, ao sentir de todos que operam nessa área, a efetividade das decisões proferidas que visam, em última análise, a concretização da tão alardeada proteção integral.
A preocupação é ainda maior quando se pensa na "morosidade" da Justiça – encarada esta, antes, pela grande quantidade de processos que abarrotam nossos Tribunais e menos pela desídia dos integrantes do Colegiado - , haja vista que na grande maioria dos casos fará com que inúmeras medidas socioeducativas percam totalmente seu caráter preventivo, pedagógico, disciplinador e protetor, além de ser um forte estímulo a reincidência, como bem se observa deste processo.
Pergunta-se: que medida não perderia sua finalidade protetiva e pedagógica depois de seis (6), oito (8), dez (10) ou doze (12) meses, para ser – ou não – confirmada pelo Tribunal competente, para ser, então, aplicada?
No correr desse tempo todo muitas "pedras poderão rolar debaixo da ponte" - como dizem. Muitas coisas – geralmente, péssimas – poderão acontecer na vida de um adolescente com o perfil de JOSÉ, que se encontra desprovido de qualquer apoio familiar e da rede de proteção.
É preciso que o aplicador da norma tenha em mente a finalidade a que ele se destina e seja plenamente consciente de suas responsabilidades no trato da matéria, sempre sob o enfoque de que decidimos a vida de uma pessoa humana ainda em desenvolvimento. Deixá-lo à própria sorte, com certeza, não seria e não é a melhor solução e não lhe trás qualquer benefício (art. 6º/ECA).
É justo, questiono, permitir que a lei seja friamente obedecida, em desfavor daquele que é o único merecedor e credor da proteção integral reconhecida pela Carta Magna? A resposta afirmativa, penso eu, vai de encontro à própria doutrina tantas vezes alardeada.
Ademais, pode a lei, enquanto manifestação formal do legislador, se sobrepor aos princípios constitucionais da proteção integral, da prioridade absoluta e da dignidade da pessoa humana? Novamente, a resposta deverá ser negativa.
Cabe ao Poder Judiciário, então,a elevada e inderrogável missão de intérprete do Direito Positivo, logicamente, dentro da visão neoconstitucionalista e pós-positivista desde há muito preconizada pelo mestre Humberto Ávila em sua brilhante obra "Teoria dos Princípios", que abraça o respeito inderrogável aos direitos fundamentais da pessoa humana, entre eles o contido no inciso XXXV do artigo 5º da Carta Republicana, in verbis: "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direitos".
A deliberação deste magistrado, portanto e ao final, respeitadas as peculiaridades do caso concreto, sobre a concessão de efeito suspensivo ao recurso de apelação interposto pela defesa, também tem por lastro o entendimento de que estão sendo flagrantemente violados os direitos do adolescente à proteção integral com a prioridade absoluta.
Para iluminar nossas mentes e respaldar minha decisão sobre o assunto, adoto os lúcidos ensinamentos do Mestre e Doutor em Direito EDUARDO CAMBI em brilhante artigo intitulado "Neoconstitucionalismo e Neoprocessualismo" [01].
A síntese do pensamento do autor é esta:
1.o reconhecimento do princípio basilar da supremacia da Constituição Federal sobre qualquer outra norma;
2.ao Poder Judiciário cabe, como intérprete da lei, realizar o controle difuso de constitucionalidade, "visando dar efetividade aos direitos fundamentais " (inc. XXXV do artigo 5º, CF);
3.pelo reconhecimento da supremacia, nenhuma lei ou ato administrativo, poderá ferir a norma constitucional, sob pena de ser declarada inválida pelo controle de constitucionalidade;
4.o "princípio do livre convencimento do juiz" (art. 131, CPC) é mitigado pelo senso de responsabilidade, norteado pelos padrões de justiça e pelos limites econômicos e políticos plasmados na Constituição, além de serem buscados, mediante um processo justo, com ampla participação e controle das partes. A expansão ou a restrição da jurisdição constitucional deve ser vista, no contexto de um pêndulo, que vai da autocontenção ao ativismo judicial;
5.a atuação do Poder Judiciário, contudo, não deve ser alternada ao "sabor dos ventos", casuisticamente pendendo ora para a autocontenção ora para o ativismo;
6.a reserva do possível e a reserva de consistência são dois marcos limitativos, entre outros, para a atuação jurisdicional;
7.o pós-positivismo jurídico resgata a força normativa dos princípios constitucionais, bem como a moderna hermenêutica jurídica, que ressalta sempre o papel criativo do intérprete, reforçado pelas técnicas legislativas que cada vez mais adotam cláusulas gerais (como as da boa-fé e das funções sociais do contrato e da propriedade), permitem concluir que o juiz, ao atribuir sentido ao texto da Constituição ou da lei, constrói a norma jurídica no caso concreto;
8.a sentença é, pois, o resultado da interpretação dinâmica dos fatos à luz dos valores, princípios e regras jurídicas, a ser desenvolvida pelo juiz, não seguindo uma lógica formal (produto de um raciocínio matemático ou silogístico) nem com o intuito de se criar um preceito legal casuístico e dissociado do ordenamento jurídico, mas, dentro das amplas molduras traçadas pela Constituição, permitir, mediante a valoração específica do caso concreto, à solução mais justa dentre as possíveis;
9.a nova interpretação constitucional não abandonou os elementos clássicos, mas revitalizou a hermenêutica jurídica ressaltando a prevalência da teoria dos princípios sobre a das normas. Assim, é possível ajustar a Lei Fundamental às circunstâncias do caso concreto, permitindo solucionar as complexas colisões entre direitos fundamentais e, assim, levar a sério a Constituição;
10.na vigorante dogmática de interpretação constitucional, prevalecem os princípios da unidade da Constituição; do efeito integrador; da máxima efetividade; da conformidade funcional; da concordância prática ou da harmonização; da força normativa da Constituição e o das leis conforme a Constituição;
11.devem ser observados, ainda, o princípio da razoabilidade ou da proporcionalidade, que decorre da garantia do devido processo legal em sentido substancial (substantive due process of law), incorporado à Constituição de 1988, pelo qual o intérprete deve verificar: a) a adequação dos meios aos fins; b) a necessidade ou a exigibilidade da medida, isto é, os meio utilizados para a obtenção dos fins visados devem ser os menos onerosos possíveis, devendo ser considerada inconstitucional a lei, por violação ao princípio da proporcionalidade, se houve, inequivocamente, outras medidas menos lesivas; c) a verificação da proporcionalidade em sentido estrito, vale dizer, há que se proceder a uma relação de custo-benefício entre as desvantagens dos meios (prejuízos a serem causados) e às vantagens dos fins (resultados a serem obtidos);
12.na solução de conflitos entre direitos fundamentais ou na colisão de princípios, assume grande importância operacional o valor da dignidade da pessoa humana, pois está na base de todos os direitos constitucionalmente consagrados. É o vetor-mor da hermenêutica jurídica;
13.só o caso concreto tornará possível pela argumentação jurídica, dizer o que deve ser entendido por dignidade humana e qual será seu conteúdo e significado na resolução do conflito entre direitos contrapostos.
O neoprocessualismo, como se depreende do texto, tem como lastro irretorquível a própria Constituição Federal, na medida em que nela estão contemplados os mais importantes direitos materiais e processuais (fenômeno da constitucionalização do direito infraconstitucional).
A lei perdeu sua posição central como fonte do direito e passou a ser subordinada à Constituição, não valendo, por si só, mas somente se conformada com a Constituição e, especialmente, se adequada aos direitos fundamentais.
A repulsa da Constituição sobre a lei e a repulsa à neutralidade da lei e da jurisdição encontram, no art. 5º, inciso XXXV, da CF um importante alicerce teórico. Ao se incluir no rol do artigo 5º da CF a impossibilidade da lei excluir da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameça ao direito, consagrou-se não apenas a garantia de inafastabilidade da jurisdição (acesso à justiça), mas um verdadeiro direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva, célere e adequada (acesso à ordem jurídica justa). (Marinoni)
Nesse contexto, emergem da normativa constitucional os seguintes postulados e princípios aplicáveis à dogmática processual, entre outros:
a) direito fundamental à ordem jurídica justa, direito fundamental ao processo justo e a visão publicista do processo;
b) direito fundamental à tutela jurisdicional, instrumentalidade do processo e a construção de técnicas processuais adequadas à realização dos direitos materiais.
Adverte, contudo Eduardo Cambi, para o grande desafio do neoprocessualismo, imposto pela constitucionalização das garantias processuais fundamentais, é conciliar a instrumentalidade do processo, ampliada na perspectiva dos direitos fundamentais (art. 5º, inc. XXXV e LXXVIII), com o garantismo, questão, entretanto, que deverá ficar para discussão em outra oportunidade, pois foge ao foco desta decisão.
Voltando ao tema que mais de perto nos aflige, ou seja, a aplicação ao não de efeito suspensivo à apelação da Defensoria Pública, constato que o assunto foi abordado por poucos doutrinadores até o presente momento. Uns simplesmente tomaram como verdadeiro o recebimento em ambos os efeitos sem qualquer delibação, sem perquirir se a lei estava ou não em consonância com a Lei Fundamental (Liberati[02] e Ishida [03]) e outros, como Bordallo [04], entendem que, com a revogação expressa do inciso VI do artigo 198 do ECA, a disciplina passou a ser a mesma do CPC, com exceção do prazo para apelar que continua a ser de dez (10) dias, reconhecendo a exceção prevista nos artigos 199-A e 199-B, seguindo, ainda, a sistemática prevista no artigo 520 da lei adjetiva. Poderá, entretanto, ser concedido o efeito suspensivo na ação socioeducativa se se entender a internação provisória como uma medida antecipatória de tutela, tal como prevê o artigo 108 do ECA. Ter-se-ia, assim, o seguinte quadro: a) quando o adolescente se encontrar liberado durante todo o curso da instrução processual, inexistindo nenhum motivo para que seja afastado do convívio social com a decretação da internação provisória ou para que lhe seja aplicada uma MSE provisória, a apelação da sentença há que ser recebida em seu duplo efeito; e, b) quando sobrevier sentença condenatória em processo socioeducativo em que o adolescente se encontre internado provisoriamente ou lhe tenha sido aplicada medida socioeducativa provisória, nessas situações, qualquer que seja a medida aplicada, o apelo deverá ser recebido apenas no efeito devolutivo, na forma do inciso VII do art. 520 do CPC. Esta regra se aplica em decorrência da natureza jurídica da decisão que decreta a internação provisória ou a MSE provisória, que nada mais é do que uma antecipação de tutela (art. 108 do ECA c/c o 273 do CPC).
A proposição é tão absurda que ouso discordar.
Surge, desde logo, a primeira objeção de ordem prática: quantos processos dessa natureza são sentenciados dentro do prazo improrrogável de 45 dias que deve durar a internação provisória? Pouquíssimos...! Tal questionamento leva à seguinte premissa: em quase nenhum processo, então, será possível o recebimento da apelação no efeito devolutivo, haja vista que o adolescente não estará mais internado provisoriamente. Como ficariam os adolescentes que necessitam da urgente intervenção da rede de proteção até que sobrevenha a decisão do Tribunal de Justiça? Respondo: entregues a própria sorte!
Ademais, nunca e nem em tempo algum a internação provisória de adolescente em conflito com a lei foi entendida como se equiparada fosse a uma antecipação de tutela, pois, à evidência, não o é. Basta um simples argumento para a derrocada de esdrúxulo entendimento: o instituto da antecipação de tutela previsto no artigo 273 do CPC somente veio para o direito positivo através da Lei nº 8.952, de 13.12.1994? E antes disso, de 1990 até 1994, qual era a natureza jurídica da internação provisória? Com certeza não era antecipatória de tutela. É óbvio que se trata de uma medida cautelar segregadora da liberdade pessoal, que encontra distante equivalência no decreto de prisão preventiva, muito embora ambos tenham naturezas diversas, já que a internação visa a aplicação imediata da proteção integral ao adolescente que se encontre na situação do parágrafo único do artigo 108 do ECA: bastam, para sua decretação, indícios suficientes de autoria e materialidade e a demonstração da necessidade imperiosa da medida.
De outra banda, é sabido que o instituto da antecipação de tutela se submete a existência concreta de certos requisitos, sendo o primeiro deles o requerimento da parte, geralmente com a inicial, que para nós é a representação. O segundo é o da prova inequívoca, que convença o magistrado da verossimilhança da alegação e, ainda, que haja fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação; ou que fique caracterizado o abuso de direito de defesa ou o manifesto propósito protelatório do réu.
Na internação provisória, mesmo que reconhecida a sua necessidade imperiosa, não tem como o magistrado antecipar os efeitos da tutela, na medida em que na ação socioeducativa a tutela perseguida pelo Estado é a aplicação de uma das medidas previstas no artigo 112 do ECA, que variam desde a simples advertência até a mais grave que é a internação em estabelecimento educacional. No início da ação não tem como o magistrado aquilatar, pela só gravidade ou não do fato descrito, e ante as provas trazidas pela polícia, qual a MSE mais adequada para o caso. Não há, ainda, como aferir qual a MSE que será aplicada (tutela pretendida) e nem mesmo perquirir sobre a prova inequívoca da prática do ato infracional, haja vista que o processo será instruído e, ao final, o adolescente até poderá ser absolvido.
A se confirmar tal possibilidade, como poderíamos explicar a internação provisória (segregação do adolescente), se, ao final, na sentença de mérito, após a realização do necessário estudo pela equipe técnica, lhe seja aplicada medida para cumprimento em meio aberto ou mesmo a obrigação de reparar o dano, além da possível aplicação de medida(s) protetiva(s). A antecipação da tutela hipoteticamente considerada não corresponderia à efetivamente aplicada.
A internação provisória, portanto, nada mais é do que uma medida cautelar que visa a proteção do socioeducando, que está, contudo, adstrita a existência do fumus boni iuri e do periculum in mora, assim como todas as outras tutelas de urgência.
Na ação socioeducativa não se pode antecipar os efeitos de uma tutela da qual nem se sabe qual será.
Sob tal ótica, advirto, estaríamos ferindo a garantia constitucional do devido processo legal e da ampla defesa, que inclui o manejo dos recursos cabíveis, e também a máxima de que a interpretação da lei tem que ser feita sob o manto da Constituição Federal, com respeito à dignidade da pessoa humana e que a norma deve refletir e buscar, principalmente, a garantia e a efetivação dos direitos da Infância e Juventude. Por certo, tal interpretação, vai na contramão desse verdadeiro dogma menorista. A verdadeira exegese, assim, deve vir sempre ao encontro das garantias fundamentais do menor, pois decorre de norma expressa prevista no artigo 227 da CF, tido como prioridade absoluta na proteção do Estado, da sociedade e da família (artigo 4º e 6º do ECA).
Repito, portanto, a possibilidade de se entender a internação provisória com uma antecipação de tutela, com o simples e declarado objetivo de se negar efeito suspensivo ao apelo, mediante a aplicação do disposto no inciso VII do artigo 520 do CPC.
Por derradeiro, impende reafirmar que não se está diante de uma lei inconstitucional. De longe, não se trata disso. O que se discute e aprecia neste momento é tão-somente o prejuízo que a mudança trará no caso específico do adolescente JOSÉ, na medida em que retira dele a possibilidade da aplicação imediata dos princípios da proteção integral e da prioridade absoluta, ao postergar no tempo a efetiva garantia dos direitos previstos no artigo 4º do ECA, levando-se, ainda, em consideração, ainda, os princípios da proporcionalidade (o que é mais justo para o caso: o recebimento da apelação em ambos os efeitos ou deixar o adolescente privado de seus direitos?) e o da razoabilidade. Na relação custo-benefício, sai ganhando o apelante/adolescente.
Friso, portanto, que a Lei nº 12.010/2009, neste processo, ofende os princípios citados, principalmente o da dignidade da pessoa humana em desenvolvimento que é.
Há conflito, in casu, entre a lei e os princípios constitucionais, devendo prevalecer a Lei Fundamental.
Da simples leitura do Relatório de Acompanhamento de fls., outra conclusão não é possível.
O regramento normativo que se deve extrair da lei em testilha é pela inaplicabilidade do efeito suspensivo na situação dos autos.
Isto posto,
1.sendo tempestivo, RECEBO a apelação apenas no efeito devolutivo, cientificando-se a defesa do inteiro teor desta decisão;
2.vista ao apelado
para contra-razões no prazo;3.após, voltem conclusos.
Icoaraci/Belém/Pa,
ANTÔNIO CLÁUDIO VON LOHRMANN CRUZ
Juiz Titular da 3a. Vara Cível Distrital de Icoaraci
Infância e Juventude
Notas
- Neoconstitucionalismo e neoprocessualismo.Panótica, Vitória, ano 1, n. 6, fev. 2007, p. 1-44. Disponível em:http://www.panoptica.org/1fev07.htm [Nota do Editor: íntegra do artigo constava da peça original]
- LIBERATI, Wilson Donizeti. Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente. 11ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2010, p. 230
- ISHIDA, Válter Kenji. Estatuto da Criança e do Adolescente. 9ª ed. São Pulo: Editora Atlas , 2010.
- MACIEL, Kátia Regina Ferreira Lobo Andrade