4. REPERCUSSÃO JURÍDICA DO ABANDONO AFETIVO PARENTAL: POSSILIDADE DE DESTITUIÇÃO DO PODER FAMÍLIAR
Deduz-se do sistema normativo que o abandono ou a inexistência de sentimento dos pais em relação aos filhos constitui conduta contrária aos valores éticos prestigiados pelo direito, tanto é verdade que o Código Civil, ainda que em poucas ocasiões aborda as hipóteses em que a afetividade influencia, como na fixação de guarda dos filhos, ou no caso da destituição ou suspensão do poder familiar. É o que dispõe o artigo 1638, II, do Código Civil, que expressamente diz que perderá o poder familiar o pai ou mãe que deixar o filho em abandono. Também é o que prescreve o artigo 24 do Estatuto da Criança e do Adolescente.
Neste diapasão, já decidiu o Tribunal de Justiça de Minas Gerais:
Direito de Família. Destituição do poder familiar. Abandono do filho. Demonstração nos autos. Recurso improvido. O poder familiar dos pais é ônus que a sociedade organizada a eles atribui, em virtude da circunstância da parentalidade, no interesse dos filhos. O exercício do múnus não é livre, mas necessário no interesse de outrem. A perda do poder familiar é definitiva, devendo ser observado para sua decretação, por sua gravidade que o fato que a ensejar seja de tal magnitude que ponha em perigo permanente a segurança e a dignidade do filho.
(TJMG, Ap. cível n. 1.0132.06.003134-2/001, rel. Carreira Machado, j. 11.11.2008, DJ 26.11.2008).
Assim, a interpretação teleológica, ou seja, de acordo com a finalidade da expressão "abandono" prevista no mencionado artigo 1638, II, do Código Civil, faz crer que a cessação do carinho ou ausência total deste dos pais em relação aos filhos não pode dar ensejo à reprimenda pecuniária, mas a outra solução jurídica, de natureza diversa, atentando-se ao princípio do melhor interesse da criança e do adolescente (artigo 227, caput, da Constituição Federal e artigo 1º do Estatuto da Criança e do Adolescente), que é a destituição do poder familiar dentro da seara do direito de família, no caso da questão envolver a ausência de afeto em relação a menores.
O princípio do melhor interesse da criança pode ser reconhecido implicitamente tanto no artigo 1º do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90), como nos artigos 1583 e 1584 do Código Civil brasileiro, que dispõem que nos casos de separação ou divórcio a guarda dos filhos menores será atribuída a quem tiver melhor condições de exercê-la. Independentemente de quem tenha tido culpa na separação, atenta-se primordialmente para o melhor interesse do menor envolvido e sua proteção integral.
Neste sentido, encontra-se a já mencionada decisão exarada no Recurso Especial n.º 757.411/MG, do Superior Tribunal de Justiça:
No caso de abandono ou do descumprimento injustificado do dever de sustento, guarda e educação dos filhos, porém, a legislação prevê como punição a perda do poder familiar, antigo pátrio-poder, tanto no Estatuto da Criança e do Adolescente, art. 24, quanto no Código Civil, art. 1638, inciso II. Assim, o ordenamento jurídico, com a determinação da perda do poder familiar, a mais grave pena civil a ser imputada a um pai, já se encarrega da função punitiva e, principalmente, dissuasória, mostrando eficientemente aos indivíduos que o Direito e a sociedade não se compadecem com a conduta do abandono, com o que cai por terra a justificativa mais pungente dos que defendem a indenização pelo abandono moral. Por outro lado, é preciso levar em conta que, muitas vezes, aquele que fica com a guarda isolada da criança transfere a ela os sentimentos de ódio e vingança nutridos contra o ex-companheiro, sem olvidar ainda a questão de que a indenização pode não atender exatamente o sofrimento do menor, mas também a ambição financeira daquele que foi preterido no relacionamento amoroso.
Portanto, pode-se deduzir que o abandono afetivo configura uma conduta moralmente reprovável, com repercussão jurídica prevista, aferível pela realização de estudos sociais dentro de eventual e adequada demanda de destituição do poder familiar.
Esse é, inclusive, o entendimento da Ministra Ellen Gracie do STF que, enfrentando a questão aqui proposta, não conheceu de recurso extraordinário n. 567.164, que versava sobre a responsabilidade civil por abandono afetivo, no qual se alegava ofensa aos artigos 1º e 5º, incisos V e X, e artigo 229 da Constituição Federal. O recurso combatia a decisão do Superior Tribunal de Justiça que deu provimento a recurso especial pela inviabilidade do reconhecimento de indenização por danos morais decorrente de abandono afetivo, com fundamento no artigo 159 do Código Civil de 1916.
Em seu parecer, asseverou a Ministra:
O apelo extremo é inviável, pois esta Corte fixou o entendimento segundo o qual a análise sobre a indenização por danos morais limita-se ao âmbito de interpretação de matéria infraconstitucional, inatacável por recurso extraordinário. Conforme o ato contestado, a legislação pertinente prevê punição específica, ou seja, perda do poder familiar, nos casos de abandono do dever de guarda e educação dos filhos. [5]
O arquivamento do Recurso Extraordinário se deu com fundamento na impossibilidade de análise dos fatos e das provas contidas nos autos do pedido de reparação pecuniária por abandono moral, bem como da legislação infraconstitucional que disciplina a matéria (Código Civil e Estatuto da Criança e do Adolescente). Para a Ministra, "o caso não tem lugar nesta via recursal considerados, respectivamente, o óbice da Súmula 279, do STF, e a natureza reflexa ou indireta de eventual ofensa ao texto constitucional". Cita ainda a relatora o parecer da Procuradoria Geral da República, que segundo o Código Civil e o Estatuto da Criança e do Adolescente, eventual lesão à Constituição Federal, se existente, ocorreria de forma reflexa e demandaria a reavaliação do contexto fático, o que, também, seria incompatível com a via eleita.
5. CONCLUSÃO
No Estado Democrático de direito vigora o princípio da legalidade (artigo 5º, inciso II, da Constituição Federal). Logo, cabe à lei proibir as condutas contrárias ao direito, aplicando sanção anteriormente prevista. No que tange ao abandono afetivo, que diz respeito a um comportamento moralmente reprovável, o legislador se limitou a estabelecer consequências afetas às questões familiares, não trazendo, mesmo implicitamente, nenhum dispositivo que possibilitasse a interpretação de que se deve patrimonializar tal situação.
A grande dificuldade de aceitação da tese da reparabilidade do dano afetivo repousa no enfrentamento dos pressupostos gerais da responsabilidade civil, cuja configuração mostra-se comprometida pela dificuldade em se demonstrar juridicamente a ilicitude da conduta de não dar afeto, apenas omissiva, além de se provar o dano psíquico e o nexo de causalidade entre a conduta e tal lesão.
Quando há apenas uma conduta não exteriorizada, consistente em simples omissão de amor, não se pode configurar ato ilícito merecedor de indenização civil, por ausência do conteúdo e alcance normativo dessa conduta. Também, de plano, encontra-se dificuldade no preenchimento do segundo pressuposto de responsabilização, qual seja a existência de uma conduta culposa, pois a falta de afeto é conduta não exteriorizada, não podendo o direito regular ou intervir na ausência de sentimento, como não pode fazê-lo no pensamento. Ademais, para toda responsabilidade deve haver a prova de dano. Mesmo considerando-se que o dano moral é presumido, a ausência de afeto é conceito extremamente impreciso para embasar a responsabilidade civil, já que não figura como expressa violação a direito da personalidade expresso no sistema jurídico. Por fim, não há como se provar o nexo de causalidade entre a conduta do parente e o dano sofrido.
Daí, concluir-se que a fixação de indenização pelo abandono afetivo caracteriza ingerência indevida do Estado, ainda que com boas intenções, em assunto delicado, mas afeto somente à seara e contexto das relações familiares, que pode apenas atribuir solução jurídica pertinente a esse ramo, como a destituição do poder familiar, atentando-se não para o desvalor da conduta praticada, mas para o critério do melhor interesse da criança e do adolescente, em caso de menores, fundado no princípio da dignidade da pessoa humana.
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Notas
Art. 246. Deixar, sem justa causa, de prover à instrução primária de filho em idade escolar. Pena – detenção, de 15 (quinze) dias a 1(um) mês, ou multa.
Retirado do site Consultor Jurídico, disponível em: <http://www.conjur.com.br/2010-jan-13/justica-sp-condena-pai-indenizar-filho-abandono-afetivo> Acesso em 8/02/2010.
Disponível em: <http://ultimainstancia.uol.com.br> Acesso em 06 jan. 2010.
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Art. 244. Deixar, sem justa causa, de prover à subsistência do cônjuge, ou de filho menor de 18 (dezoito) anos ou inapto para o trabalho, ou de ascendente inválido ou maior de 60 (sessenta) anos, não lhes proporcionando os recursos necessários ou faltando ao pagamento de pensão alimentícia judicialmente acordada, fixada ou majorada, deixar sem justa causa, de socorrer descendente ou ascendente, gravemente enfermo. Pena – detenção, de 1(um) a 4 (quatro) anos, e multa, de uma a dez vezes o maior salário mínimo vigente no País. Nas mesmas penas incide quem, sendo solvente, frustra ou ilide, de qualquer modo, inclusive por abandono injustificado de emprego ou função, o pagamento de pensão alimentícia judicialmente acordada, fixada ou majorada.
Disponível em: <http://www.alienacaoparental.com.br/o-que-e.> Acesso em 8 de fev. 2010.
Disponível em: <www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?...108739 em Notícias STF: Ministra arquiva recurso sobre abandono afetivo por não existir ofensa direta à Constituição.> Acesso em 6 jan. 2009.
Abstract: This study aims to outline, in summary, the main arguments against the thesis of the possibility of setting compensation for moral damage as a result of emotional neglect on the parental relationship, in light of the general assumptions of liability. Suggest that the main settlement within the family law, the removal of family power due to moral abandonment, based on the principle of human dignity.
Key words: Liability. Early affective. Impropriety. Absence of general assumptions of liability. Legal Consequences of emotional neglect. Dismissal of family power.