O procedimento dos crimes dolosos contra a vida, previsto no Código de Processo Penal em seus artigos 406 a 497, sendo alterado pela Lei nº. 11.689, de 09 de junho de 2008, alterou muitos atos da sistemática do tribunal do júri, a exemplo da formulação dos quesitos. Neste ponto, abaixo segue, para fins comparativos, como antes vinha disposto o art. 484 do CPP, que regulava o teor e a ordem dos quesitos:
A partir das alterações impostas pela Lei nº. 11.689/2008, vê-se que a indagação passou a exigir dos jurados apenas seu entendimento sobre: 1º) a materialidade do fato; 2º) a autoria ou a eventual participação; 3º) se o acusado deve ser absolvido; 3º) se existe causa de diminuição de pena alegada pela defesa; 4º) se existe circunstância qualificadora ou causa de aumento de pena. Além destas questões, outras teses aventadas no processo, seja pela acusação seja pela defesa (a exemplo da desclassificação, ainda que para outro tipo penal da competência do júri, ou da tentativa), deverá haver outros quesitos que considerem estas variantes. Neste sentido, se sustentada desclassificação para crime da competência do juiz singular ou existência de crime tentado, ou se houver divergência sobre a tipificação do delito, a lei agora previu ordem precisa para este novo quesito: após o 2º quesito, conforme dicção do art. 483, §§ 4º e 5º, do CPP.
Com expressa referência ao mister desejado com a técnica dos quesitos neste procedimento, no art. 482, caput, do CPP, o legislador registra que o Conselho de Sentença será questionado sobre matéria de fato e se o acusado deve ser absolvido, o que prova sua preocupação em tornar a quesitação mais simples e clara, priorizando o julgamento dos jurados mais sobre a configuração fática da conduta criminosa, do que sobre a valoração jurídica dos fatos. Prova deste desiderato é que na ordem de quesitos prevista no art. 483, do CPP, não há referência às circunstâncias agravantes e atenuantes, matéria eminentemente técnica, afeta à dosimetria da pena [01].
Sobre este aspecto da reforma, opinam Edilson Mougenot Bonfim e Domingos Parra Neto [02]:
Nos termos da lei, o questionário deverá conter indagações acerca das questões de fato, não submetida ao corpo de jurados a matéria de direito subjacente ao meritum causae. Composto o Conselho de Senteça por juízes leigos ("juízes do fato"), desprovidos de conhecimentos técnicos acerca do direito, a princípio, deveriam se manifestar tão-somente quanto à existência do crime, sua autoria, bem assim as condições e circunstâncias em que o fato teri sido praticado. Parece ter sido esta a intenção dos mentores da reforma, já que, pela análise da nova regulação legal acerca da formulação do questionário, foram excluídos os quesitos referentes às causas excludentes de ilicitude. De acordo com a nova regulamentação legal, reconhecendo os jurados ter agido o acusado sob o manto de excludente de ilicitude, deverão votar "sim" ao terceiro quesito, absolvendo o réu, sem, contudo, manifestarem-se especificamente sobre os requisitos legais da justificativa apresentada.
Ao acrescentar 3º quesito novo, visando a englobar todas as teses defensivas voltadas à absolvição, por meio da seguinte questão: "O jurado absolve o acusado?" (483, caput, inciso III e § 2º, CPP), o legislador também ressalvou a tese de que cada circunstância autônoma deve ser objeto de quesitos próprios, já que resume todas as matérias sustentadas pela defesa, que possivelmente desembocariam na absolvição (v.g., atipicidade do fato, excludente de ilicitude ou excludente de culpabilidade) nesta única pergunta, sem que haja fundamentação expressa dos jurados sobre o voto afirmativo ou negativo concedido a tal pergunta, e inclusive permitindo a hipótese de o réu ser absolvido sem que haja consenso entre os jurados em torno de determinada tese de defesa.
É neste ponto que surge o problema: em que medida este quesito abarcaria a absolvição imprópria, quando o acusado é absolvido por ter sido considerado inimputável?
A dúvida é relevante vez que, a depender do fundamento da absolvição, medida de segurança terá que ser aplicada ao réu. Porém, a saber que predomina no sistema pátrio, a título de garantia fundamental, o sigilo das votações (art. 5º, inciso XXXVIII, alínea b, da CF) - o que orienta a votação por cada jurado, sem a correlata motivação -, haverá de se concluir pela necessidade de formular novo quesito, em caso de ser levantada a tese de inimputabilidade penal, já que o Direito penal brasileiro adota o sistema vicariante, com aplicação de medidas de segurança, fundadas na periculosidade, ainda que não haja culpabilidade. Por outro lado, a saber que a absolvição sumária também é forma de restrição da liberdade individual, para aplicação da medida é necessária expressa motivação neste sentido, como medida de exceção que é considerada, pelo próprio sistema penal vigente, que condiciona até mesmo a absolvição sumária, quando emanada com fulcro na inimputabilidade, à não existência de nenhuma outra tese defensiva mais favorável, para fins de absolvição própria (art. 415, parágrafo único). Neste sentido, é o entendimento de Thiago André Pierobom de Ávila [03]:
Se houver sustentação da tese de inimputabilidade, caso os jurados absolvam o réu, o juiz deverá formular quesitos adicionais para esclarecer o fundamento da absolvição. Isso porque se a absolvição for decorrente de atipicidade ou excludente da ilicitude, a votação deve parar. Todavia, se superados estes quesitos, os jurados afirmarem negativamente ao quesito "ao tempo do fato, o réu possuía capacidade de compreender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com este entendimento?" (CP, art. 26) haverá a imposição da medida e segurança. O jurado deve esclarecer este ponto, pois, na prática, a absolvição imprópria acarreta restrição de direitos fundamentais do acusado, podendo ensejar a internação compulsória em estabelecimento psiquiátrico. Tanto que, quando se disciplinou a absolvição sumária (art. 415, parágrafo único), estabeleceu-se que esta apenas poderia ser proferida no caso de inimputabilidade se não houvesse outra tese defensiva mais favorável, que ensejasse a absolvição própria. Ou seja, se há possibilidade de tese de legítima defesa, por exemplo, e prova cabal da inimputabilidade, o acusado não deve ser sumariamente absolvido (com aplicação da medida de segurança), mas deve ser pronunciado e submetido a julgamento plenário para ser eventualmente absolvido pela licitude de sua ação. Apenas caso não haja absolvição própria é que se aplicará a absolvição imprópria. E para saber qual dos fundamentos os jurados estão acolhendo, nesta situação específica de existência de tese de inimputabilidade, é necessário o esclarecimento do motivo da absolvição.
Todavia, caso haja teses de defesa com repercussões penais diversas da absolvição, a exemplo da desclassificação e da mera tentativa, como já mencionado acima, a lei confere expressa referência de que indagação autônoma deverá ser formulada após o 2º quesito (art. 483, §§ 4º e 5º, do CPP). Tal ordem na quesitação justifica-se porque o júri nunca poderá ser questionado a respeito da desclassificação para infração da competência de juiz singular, depois de responder o 3º quesito. O júri, ao condenar ou absolver o réu (3º quesito), firmou sua competência e, sendo assim, não poderá paradoxalmente, depois, desclassificar o fato para crime de outra competência, pois, decidindo sobre o mérito, declarou ipso factum ser o crime de sua competência [04].
Outro problema advindo da compactação de toda a tese defensiva pró-absolvição no sumário quesito: "O jurado absolve o acusado?" é a dificuldade que será verificada ao tentar-se recorrer do julgamento. Afinal, já que este quesito resumirá todas as possibilidades de absolvição (atipicidade, excludente da ilicitude, excludente da culpabilidade, dentre outras), e tendo em vista que o jurado não precisa fundamentar sobre qual destas causas profere seu voto afirmativo, obstáculo inevitável será recorrer da sentença, principalmente por força de decisão manifestamente contrária à prova dos autos, porque desconhecido será a real motivação para a absolvição por parte dos jurados. Daí que ganhará relevo o registro de todos os argumentos aventados pela defesa, durante a sustentação oral, na ata de julgamento, nos termos do art. 495, XIV, CPP, pois somente desta forma o tribunal poderá atestar do razoável respaldo probatório nos autos de alguma das teses defensivas, ainda que os jurados tenham, em seu íntimo, absolvido por outro motivo [05].
Outro debate oriundo da criação deste novo requisito trata de saber de sua obrigatoriedade, ainda que não tenha sido sustentada causa de absolvição pela defesa. Neste sentido, convém lembrar que o antigo regime de quesitação previa que o juiz só formularia quesitos em torno da exclusão do crime, da isenção da pena ou da desclassificação, se o réu houvesse apresentado fatos e circunstâncias correlatos em sua defesa ou nos debates. In verbis, a antiga redação do art. 484, inciso III, do CPP:
Art. 484. Os quesitos serão formulados com observância das seguintes regras:
III – se o réu apresentar, na sua defesa, ou alegar, nos debates, qualquer fato ou circunstância que por lei isente de pena ou exclua o crime, ou o desclassifique, o juiz formulará os quesitos correspondentes, imediatamente depois dos relativos ao fato principal;
Porém, o novo regime é categórico em registrar que os jurados deverão se manifestar sobre a absolvição do acusado (art. 482, caput, do CPP), afirmando inclusive que o 3º quesito deverá indagar sobre a absolvição do acusado (art. 483, inciso III). Por outro lado, em todos os outros procedimentos penais, também o juiz não permanece adstrito aos fundamentos da acusação para absolver o réu, motivo pelo qual, ainda mais em sede de tão gravosas penas a serem aplicados no júri, não faria sentido sustentar odiosa distinção [06].
Quanto à fonte da quesitação, a antiga regulação não a previa expressamente, como a que hoje faz, apesar da doutrina, já àquela época, asseverar que as indagações aos jurados deveriam ter por base os fatos e circunstâncias contidos no libelo-crime (fórmula revogada pela Lei nº. 11.689/08), na acusação oral, na contrariedade ao libelo, na defesa oral e nos debates [07]. Após a reforma legislativa, o art. 482, parágrafo único, CPP, é expresso em apontar a fonte dos quesitos, ao afirmar que "na sua elaboração, o presidente levará em conta os termos da pronúncia ou das decisões posteriores que julgaram admissível a acusação, do interrogatório e das alegações das partes".
Apesar das semelhanças, o regime inaugurado com inclusão do novo quesito, por força da Lei nº. 11.689/08, em nada se identifica com o sistema inglês "guilty or not guilty", não retirando, portanto, das partes a possibilidade de apresentarem suas teses e variações [08]. No contexto das críticas à reforma, no que tange à possibilidade de avançar no campo de contribuições exemplares de sistemas alienígenas, destaca-se a proposta de Edilson Mougenot Bonfim e Domingos Parra Neto [09], para quem elementos do modelo escocês deveriam ter sido adotados pelo legislador, já que oportuniza-se espécie de terceira via de quesitos, em prol dos casos em que a absolvição dá por falta de provas:
Sobraria, ainda, ao legislador, ter adotado o modelo escocês – e não o fez -, onde a par das clássicas perguntas de inspiração britânica – "culpado" ou "inocente" – propõe-se, ainda, uma terceira via de quesitos: "not proven", ou seja, não provado, vale dizer, consideram os jurados a insuficiência de provas, o que refletiria em importantes efeitos cíveis, como por exemplo, na discussão do direito ou não à indenização, já que os jurados afirmam por este modelo, deva ser o réu absolvido, não porque seja inocente, mas por não estar provada a acusação, à semelhança da sentença fulcrada no art. 386, VII, do CPP.
Instituto secularmente operacionalizado ao longo da História da humanidade, sob os mais diferentes formatos, a ponto de ter sido apresentado por Cesare Beccaria [10], precursor de uma leitura mais humanista sobre o sistema penitenciário, como importante garantia do cidadão contra os arbítrios punitivos do príncipe, este procedimento ainda está longe de satisfazer as demandas que eclodem à medida que novo paradigma civilizacional se instaura nas sociedades. No Brasil, alvo de rigorosas críticas devido à alta tendência espetacular dos julgados, que pouco contribuiriam para uma prática racional e garantista do jus puniendi do Estado, a Lei nº. 11.689/08 foi editada neste contexto de tentativa de melhor otimização dos júris.
Sem dúvida, a quesitação é ponto nodal do sistema do procedimento dos crimes dolosos contra a vida, já que é o mecanismo de canalização da vontade punitiva dos jurados sobre o caso examinado, norteador da restrição em concreto da liberdade dos indivíduos.
Neste contexto, apesar do reconhecimento de que as alterações inauguradas com a reforma do Código de Processo Penal neste tópico ainda são irrisórias frente a toda problemática vivenciada nos julgamentos concretos, sempre desenvolvidos sob a tênue tentativa de equilíbrio entre o respeito à soberania do veredicto popular e o resguardo técnico do sistema de garantias fundamentais, a mudança no modelo de quesitos, agora mais "enxutos" e centralizados na análise fática da conduta, pode representar importante ferramenta para reafirmar, nas mãos do juiz-presidente, a prerrogativa de limitar o poder punitivo dos jurados, e, neste sentido, contribuir para a construção de uma face da Justiça cada vez mais comprometida com os pilares do Estado democrático de direito.
REFERÊNCIAS
ÁVILA, Thiago André Pierobom de. O novo procedimento dos crimes dolosos contra a vida (Lei nº 11.689/08). Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1873, 17 ago. 2008. Disponível em: http://jus.com.br/artigos/11596>. Acesso em: 24 jun. 2009
BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Trad. Paulo M. Oliveira. Pref. Evaristo de Moraes. Bauru: EDIPRO, 2003
BONFIM, Edilson Mougenot. O novo procedimento do júri: comentários à Lei n.11.689/2008. São Paulo: Saraiva, 2009.
LEAL, Saulo Brum. Alterações no tribunal do júri: quesitos (lei n. 11689 - 09.06.08) / Saulo Brum Leal. In: Revista da Ajuris: doutrina e jurisprudência, v.35, n.111, p.229-231, set., 2008.
STOCO, Rui. Os quesitos no procedimento relativo aos processos da competência do Tribunal do júri (Lei n. 11.689, de 09.06.2008, que alterou dispositivos do código de processo penal) / Rui Stoco. In: Revista jurídica, Porto Alegre, v.56, n.369, p.121-126, jul., 2008.
Notas
- "Assim, as circunstâncias agravantes e atenuantes, por força da nova regulamentação legal, não serão mais submetidas à apreciação do corpo de jurados. Caberá ao juiz presidente aferir da pertinência das circunstâncias alegadas pelas partes, considerando-as quando da fixação da pena, no caso de condenação. Embora passível de crítica, manteve-se certa coerência na reforma com o que defendia expressiva doutrina do júri: em sendo matéria de pena, técnica, portanto, a deliberação sobre a mesma incumbiria a um magistrado, de modo a vedar decisões absurdas, apartadas da técnica, mas que, contrariadas, poderiam levar a um novo julgamento por ‘decisão manifestamente contrária à prova dos autos’" (BONFIM, 2009, p. 139)
- BONFIM, 2009, p. 135.
- ÁVILA, 2009
- LEAL, 2008, p. 231
- ÁVILA, 2009.
- ÁVILA, 2009.
- STOCO, 2008, p. 123
- STOCO, 2008, p. 125
- BONFIM, 2009, p. 142.
- Segundo Cesare Beccaria, "lei sábia e cujos efeitos são sempre felizes é a que prescreve que cada um seja julgado por seus iguais; porque, quando se trata da fortuna e a liberdade de um cidadão, todos os sentimentos inspirados pela desigualdade devem silenciar. Ora, o desprezo com o qual o homem poderoso olha para a vítima do infortúnio, e a indignação que experimenta o homem de condição medíocre ao ver culpado que está acima dele por sua condição são sentimentos perigosos que não existem nos julgamentos de que falo [...] Quando o culpado e o ofendido estão em condições desiguais, os juízes devem ser escolhidos, metade entre os iguais do acusado e metade entre os do ofendido, para contrabalançar assim os interesses pessoais que modificam, mau grado nosso, as aparências dos objetos, e para só deixar falar a verdade e as leis [...] Igualmente justo é que o culpado possa recusar um certo número dos juízes que lhe forem suspeitos, e, se o acusado gozar constantemente desse direito, exercê-lo-á com reserva; porque de outro modo pareceria condenar-se a si mesmo" (BECCARIA, 2003, p. 31).