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Da ilegalidade da cobrança por emissão de passaportes no Brasil

05/08/2010 às 14:59
Leia nesta página:

Qualquer cidadão brasileiro que deseje viajar para o exterior obrigatoriamente deve portar passaporte, sendo este o documento internacionalmente válido no trato com autoridades de outros países, salvo casos específicos regulados por tratados internacionais (caso, por exemplo, do MERCOSUL) [01].

A emissão de passaporte é de responsabilidade do Departamento de Polícia Federal, órgão do Ministério da Justiça, sendo necessário, além de diversos documentos, o pagamento de taxa de expedição no valor atualmente (julho de 2010) de aproximadamente 175 reais [02]. Porém, no caso de ter o cidadão previamente possuído passaporte, deve apresentar o mesmo, expirado ou não, válido ou não, no momento da solicitação do novo passaporte, sob pena de pagamento em dobro da taxa mencionada, portanto, cerca de 350 reais [03]. Os valores referidos são arbitrados em tabela cuja publicação é responsabilidade conjunta do Ministério da Justiça e do Ministério das Relações Exteriores.

Porém, fica a seguinte pergunta no ar: DE ONDE A POLÍCIA FEDERAL TIROU A IDÉIA DE QUE PODERIA FAZER TAIS EXIGÊNCIAS AO CIDADÃO BRASILEIRO?

Taxa é espécie do gênero tributo (CTN, livro primeiro: DO SISTEMA TRIBUTÁRIO NACIONAL, título I, artigo 5º), cuja possibilidade de exigência, portanto, está vinculada à edição de lei pelo Poder Legislativo do ente federado que a exija (CTN, título II COMPETÊNCIA TRIBUTÁRIA, artigo 6º caput c\c artigo 97, inciso I), a qual é indelegável (CTN, artigo 7º caput). Portanto, como qualquer tributo, as taxas devem ser instituídas em Lei (CTN, artigo 9º, inciso I), previamente à sua exigibilidade. O legislador foi exaustivo na conceituação, exatamente porque se não houver a base legal, não haverá o tributo. Então para que se tenha a base legal da cobrança do tributo tem que haver a previsão legal de tudo o que se pode cobrar. Trata-se de um conceito fundamental e sedimentado. Muito bem define Roque Carrazza (2003, p. 215) [04] que "no Estado de Direito o Legislativo detém a exclusividade de editar normas jurídicas que fazem nascer, para todas as pessoas, deveres e obrigações, que lhes restringem ou condicionam a liberdade. Também o Poder Público limita seu agir com tais normas, subordinando assim, a ordem jurídica e passando a revestir, a um tempo, a condição, de autor e de sujeito de direito."

Exige-se taxa para a prestação de determinado serviço público [05]. Para a advogada tributarista Mizabel Derzi (1999, p. 545) [06] "cabe quando os serviços recebidos pelo contribuinte resultem de função específica do Estado, ato de autoridade, que por sua natureza repugna ao desempenho do particular e não pode ser objeto de concessão a este". Contribuinte de taxa será a pessoa que provoca a atuação estatal a quem seja prestada, ou à disposição de quem seja colocada a atuação do Estado traduzida em um serviço público divisível.

Fundamental diferenciar-se a motivação da cobrança da dita taxa por emissão de passaporte, evitando-se a confusão com exercício do poder de polícia por parte do Estado, outra fundamentação para instituição de taxa. No caso da emissão de passaporte, não há exercício do poder de polícia (definido pelo CTN em seu artigo 78: "considera-se poder de polícia atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranqüilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos. Parágrafo único - Considera-se regular o exercício do poder de polícia quando desempenhado pelo órgão competente nos limites da lei aplicável, com observância do processo legal e, tratando-se de atividade que a lei tenha como discricionária, sem abuso ou desvio de poder"), mas cobrança por serviço divisível prestado.

De posse das definições mencionadas, cabe saber de onde vem a autorização para a Polícia Federal cobrar pela emissão de passaportes. Extensa procura na internet, nos sites do Ministério das Relações Exteriores e do Ministério da Justiça, assim como na base de dados da Presidência da República e do Senado Federal e do próprio Departamento de Polícia Federal, revelou as base legais da cobrança: os decretos 1983/96 modificado em 2006 pelo decreto 5798. Nenhuma lei emanada do Poder Legislativo institui a cobrança da taxa pela emissão de passaportes. Decretos, conforme pétreo entendimento doutrinal e jurisprudencial, apenas regulamentam leis, jamais criam figuras de direito (CTN, artigo 99). E o valor em dobro, de onde vem? Nem é do referido decreto, mas da portaria conjunta dos Ministérios da Justiça e Relações Exteriores [07].

Não bastassem os absurdos mencionados, temos a "motivação legal" da cobrança em dobro no caso de não apresentação de passaporte anteriormente emitido, ainda que inválido ou vencido, no fato de a polícia federal ter que realizar "diligências" no sentido de averiguar os fatos informados na comunicação de extravio. Mas e no caso de o cidadão informar que o passaporte foi destruído em sua casa mesmo? Não cabem diligências. Tanto faz o motivo ou forma, o texto no site da PF informa que, independentemente da razão, a não apresentação do antigo passaporte implica em pagamento dobrado da taxa.

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Analisando o fato temos que ou isso é obrigação acessória tributária ou é cobrança pura e simples de "outra" taxa para emissão do mesmo serviço.

No primeiro caso, seria regulada pelo artigo 113 do CTN, onde se lê que "a obrigação tributária é principal ou acessória. § 1º omissis; § 2º A obrigação acessória decorre da legislação tributária e tem por objeto as prestações, positivas ou negativas, nela previstas no interesse da arrecadação ou da fiscalização dos tributos" (grifos nossos). Portanto, deveria haver lei em sentido estrito regulando a matéria. Mas, no caso em tela, não há como dizer que o pagamento em dobro da taxa – portanto a taxa propriamente dita e a "sobretaxa" – se subsume na regra do CTN, pois não há qualquer interesse arrecadatório ou fiscalizatório em relação ao tributo [08].

O segundo caso, então, teríamos a cobrança pelo mesmo serviço duas vezes, de forma arbitrária e excessiva. É possível? Não, pois toda cobrança de taxa deve guardar proporção com o serviço oferecido. Melhor lição tiramos das palavras dos sábios:

"A questão da proporcionalidade entre o custo do serviço ou da atividade de polícia e o valor da taxa tem o entendimento majoritário na doutrina. Lembra Celso R. Bastos, açulando a polêmica e com reserva da opinião pessoal, que "se a taxa tem uma natureza contraprestativa, deve guardar consonância com os serviços objeto da contraprestação, o que não impede que se cobrem taxas tomando em conta a capacidade contributiva do contribuinte...". [09]

Portanto, alegar "diligências" para elucidar o sumiço de passaportes dentro de casa ou a destruição dos mesmos em máquinas de lavar ou ainda de passaportes vencidos é invencionice com a nítida intenção de tributar ilegal, desarrazoada e excessivamente o cidadão que necessita de passaporte e não tem mais consigo o anterior [10].

Mas qual o interesse nisso? Bem, cabe apenas especular, mas o fato de boa parte do rendimento com a arrecadação tributária com emissão de passaportes ser destinada a um fundo da própria Polícia Federal não ajuda a tornar a matéria mais clara.

Provado, pelo exposto, ser ilegal a cobrança de taxas para expedição de passaportes no Brasil por ausência de substrato essencial, qual seja, lei em sentido estrito prevendo-a (assim como do abuso da cobrança em dobro pela não apresentação de passaporte anteriormente emitido), fica a solicitação ao Ministério Público Federal para averiguar o caso e tomar as medidas pertinentes.


Notas

  1. Decreto 1983/96, modificado pelo decreto 5978/06, artigo 2º caput.
  2. http://www.dpf.gov.br/servicos/passaporte/documentacao-necessaria/documentacao-para-passaporte-comum/documentacao-para-passaporte-comum
  3. Ver link acima no item 6.0
  4. CARRAZZA, Roque Antônio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 19 ed. 2 Tiragem, São Paulo: Malheiros, 2003.
  5. CF/88 art. 145, II e CTN art. 77
  6. DERZI, Mizabel. Direito Tributário Brasileiro. 11 ed. São Paulo: Forense, 1999.
  7. CTN artigo 100
  8. Absurdo ainda maior advém da penalização do cidadão que perdeu ou extraviou seu passaporte antigo com base em portaria administrativa, conforme CTN artigo 100, parágrafo único c\c artigo 97, inciso V.
  9. http://www.tjmg.jus.br/juridico/jt_/inteiro_teor.jsp?tipoTribunal=1&comrCodigo=0&ano=0&txt_processo=154688&complemento=0
  10. Cabe aqui observar que no trato com a administração pública aplica-se o disposto nos decretos 6.932/2009 e o de número 83.936/79. Para mais informações sobre os mesmos referencio o leitor para artigo de nossa lavra: "Da novela sobre autenticar diplomas para estudar fora do país". Disponível em: http://jus.com.br/artigos/16984.
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Sobre o autor
Gustavo Lima Campos

Advogado e médico. Pós-graduado em Direito (PUC Minas) e Medicina (UFRJ E UFJF).<br>

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CAMPOS, Gustavo Lima. Da ilegalidade da cobrança por emissão de passaportes no Brasil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2591, 5 ago. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17121. Acesso em: 16 abr. 2024.

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