2. Interesse público – Conceito, características e classificação
O interesse público em geral conceitua-se como o interesse que merece especial proteção, e por isso, sua titularidade é outorgada ao Poder Público, sendo-lhe conferidas prerrogativas exclusivas e diferenciadas.
A conceituação precisa do interesse público não é uma tarefa fácil. Para grande parte da doutrina, é praticamente impossível traçar objetivamente uma única definição para o interesse público.
Neste sentido, assevera SELMA FERREIRA LEMES que o conceito de interesse público é "elástico e de difícil precisão. Muitas vezes, é utilizado como equivalente de bem comum, interesse geral, interesse social da lei etc" [10].
Em igual sentido, salienta DANIELLE SOUZA DE ANDRADE SILVA que o conceito de interesse público:
[...] sofre recondicionamentos de ordem metajurídica, os quais podem ser abstraídos conceitualmente, porém jamais olvidados numa análise concreta de sua utilização.
Eis por que inegável a complexidade do conceito de interesse público, que não pode esgotar-se no rótulo formal em que se enquadram as atividades da Administração Pública. Entender que o interesse público é aquele definido pelo Estado, através do Direito, é curvar-nos por demais ao positivismo e ao legalismo, esquecendo-nos que o conceito tem conteúdo valorativo (portanto variável conforme as circunstâncias históricas) – o que não quer dizer que seja múltiplo, ao contrário, objetivo. [11]
Assim, conclui DANIELLE SOUZA que o interesse público deve corresponder à expressão positiva do bem comum, logo, para que seja identificado deve traduzir "aquilo que o povo quer ver preservado ou promovido, segundo uma escala prévia de valores ou uma síntese previamente estabelecida, extraídos de debates públicos a respeito das decisões públicas". [12]
Ao final, DANIELLE SOUZA cita a doutrina de HAROLD LASSWELL, ao afirmar que o interesse público, "como chave essencial da política pública, precisa ser constantemente redefinido e reavaliado, o que é função predominante do estudioso da jurisprudência". [13]
2.1. Interesse público como conceito jurídico indeterminado.
A indeterminação do conceito de interesse público é uma das maiores preocupações dos operadores do direito. Para HÉLIO DO VALLE PEREIRA, a imprecisão que paira sobre o conteúdo do interesse público e sua "interminável fluidez propicia a utilização para fins antagônicos, prestando-se a encerrar todo debate, como se a sua menção, por intuitiva autoridade, impedisse divagação sobejante". [14]
Deste modo, conclui HÉLIO DO VALLE PEREIRA que, a tentativa de conceituar com exatidão o interesse público é uma árdua tarefa, mas, por outro lado, não seria desgastante estabelecer com precisão as excludentes conceituais.
A partir da doutrina de HÉLIO DO VALLE PEREIRA extrai-se a interessante proposta de se conceituar o interesse público por exclusão, isto é, definindo-se sua existência ou não em determinado caso concreto a partir da não-constatação de elementos que não representam ou que não apresentem características inerentes à sua concepção publicista.
2.2. Conceituação por exclusão de interesse público
A conceituação "negativa" ou "por exclusão" de interesse público requer uma análise do direito envolvido em três etapas.
A primeira etapa consiste basicamente na diferenciação entre interesse público e interesse do Estado. Não raro, os conceitos de interesse público são confundidos com os interesses do governo, o que é inaceitável. Nas palavras de HÉLIO DO VALLE PEREIRA:
O Estado, mesmo que dogmaticamente tenha configuração de pessoa jurídica, não pode ser assimilado com essa simplicidade, equiparando-se a um agrupamento contingencial de pessoas. Admite-se que seja vislumbrado o Estado como um ente jurídico, a exemplo de tantos outros, mormente de natureza privada, mas se trata de construção voltada à facilitação da aplicação de variados institutos jurídicos, presos aos conceitos de "personalidade". Não se cuida de construção que deva ser desprezada, mas é apenas uma faceta da questão.
O Estado, realidade sociológica bem precedente às elucubrações doutrinárias, tem dimensão maior. Usando-se chavão, o Estado são todos e não é ninguém. Não se deseja capitular as metáforas do "contrato social", mas não se pode perder de mira essa dimensão mais nobre, refratária a circunstâncias transitórias. Por extensão, não é viável desejar, por devoção à entidade imaterializada, o seu enaltecimento, exaltação que vale por si mesma, à revelia de valor superior [15]. (g.n.)
Logo, é importante se ter em mente que o Estado jamais deve ser confundido com o interesse público, sendo este superior àquele.
Assim, o interesse do Estado mantém com o interesse público uma relação de subserviência, valendo destacar algumas ponderações que bem retratam tal concepção, extraídas da obra de HÉLIO DO VALLE PEREIRA:
o interesse público não se opõe ao Estado, mas também com ele não se confunde (...). O Estado, em verdade, é um vetor do interesse público; instituição que há de estar voltada exclusivamente à sua consecução. Não está acima dele e nem é a sua síntese. É mecanismo subserviente do interesse público. [16]
Da mesma forma, não há se cogitar em conflito do interesse público com os interesses privados, pois a relação destas espécies de interesses é tão grande, que acabam se confundido. Neste ensejo, destaca SELMA FERREIRA LEMES que:
Em acurado estudo sobre a boa-fé e a atuação da Administração Pública, o professor espanhol Jesús GONZÁLES PÉREZ, ao analisar o caráter público de certos interesses, esclarece que estes não são antagônicos e não se encontram desvinculados dos interesses privados e que não existem interesses públicos "impessoais" distintos dos que interessam particularmente aos cidadãos. "Os interesses públicos e os interesses privados estão entrelaçados entre si até o ponto em que qualquer interesse público é também interesse privado". [17]
A segunda etapa, por sua vez, relaciona-se com o conteúdo do interesse público, ou seja, os valores que devem ser respeitados e protegidos, hábeis a justificar um tratamento diferenciado, sempre com o objetivo de se conferir uma especial proteção ao direito concebido dentro da esfera publicista.
Segundo HÉLIO DO VALLE PEREIRA, nesta fase, observa-se que o interesse público é composto por uma "soma impessoal dos interesses de todos componentes do grupo social. Não se trata de mera adição algébrica dos ‘interesses individuais’, pois, sob este ângulo, há colisão e recíproca anulação. [18]
Por fim, na terceira etapa de identificação do interesse público via exclusão, há que se atentar para a dimensão ética e atenta à pluralidade social e especialmente sensível ao princípio da dignidade humana, tal como concebida por Marçal Justen Filho, que também destaca a "personalização do fenômeno jurídico em detrimento da sua "patrimonialização" – tudo com os olhos postos na "satisfação dos valores fundamentais" [19].
Seguindo a mesma linha conceitual, ADILSON DE ABREU DALLARI define interesse público da seguinte forma:
O interesse público não se confunde com o mero interesse da Administração ou da Fazenda Pública. Não há interesse público legítimo ao se procrastinarem pagamentos efetivamente devidos, pois o interesse público está na correta aplicação da lei, de acordo com a melhor interpretação possível diante do caso concreto, em benefício da coletividade, dos cidadãos integrantes da coletividade.
Não há como afirmar, em qualquer ação judicial, que a decisão realizou concretamente, objetivamente, o interesse público. Diante dessa impossibilidade, convencionou-se que o interesse público estará atendido com a decisão judicial transitada em julgado, mesmo que isso seja materialmente lesivo aos interesses dos integrantes da coletividade, em termos concretos. Assim sendo, em função das idpeias de entendimento, de parceria, de conjugação de esforços, de superação de formalismos inúteis, de valorização de resultados, não há por que afastar a possibilidade de solução de conflitos envolvendo a Administração Pública mediante negociação e entendimento, sob a supervisão do juiz competente, que sempre dirá a ultima palavra, rejeitando acordos espúrios ou simulações objetivando sacramentar fraudes [20].
A relação do interesse público com a realização dos direitos fundamentais constitucionalmente estatuídos, bem como com a proteção da dignidade da pessoa humana traz à tona uma especial importância de sua conceituação para o exercício da atividade administrativa, servindo-se como elemento norteador e balizador da conduta dos agentes administrativos, e como princípio decisivo para a ponderação dos bens juridicamente envolvidos em cada situação concreta.
Vale aqui registrar trecho da obra de SELMA FERREIRA LEMES, no qual a autora evidencia a utilidade do conceito de interesse público para o desempenho da atividade administrativa pelo Estado:
Na óptica do Direito Administrativo, tem importância vital, pois será ele o principal critério balizador da atividade administrativa, já que de sua definição depende a validade e legitimidade dos atos administrativos. O princípio da indisponibilidade do interesse público decorre do denominado princípio da supremacia do interesse público ou da finalidade pública que inspira o legislador e orienta a Administração. Mas, o que se observa e é digno de nota é que se alterou o modo de enfocar o tema, especialmente, na relação com os administrados. O princípio da supremacia do interesse público não é disposto de cima para baixo, mas em mão inversa e objetiva proteger os interesses dos administrados, conforme estabelecem os novos paradigmas do Direito Administrativo Contemporâneo. [21]
Ao final, SELMA FERREIRA LEMES destaca duas importantes funções atribuídas ao interesse público [22]. A primeira função seria proporcionar a realização do bem comum, atentando para a proteção dos interesses dos administrados e ao melhor cumprimento dos fins da administração (tal como disposto no art. 1º da Lei 9.784/99). A segunda função do interesse público consiste na exigência da satisfação das necessidades coletivas, o que impulsionaria a Administração a adotar, em cada caso concreto, as melhores soluções possíveis do ponto de vista gerencial, técnico e financeiro, e atuar sempre com eficiência e economicidade.
2.3. Interesse público primário e secundário
Interessante para o presente estudo a classificação do interesse público como primário ou secundário, já que os critérios nela envolvidos servem como elemento norteador da disponibilidade dos bens jurídicos envolvidos nas causas em face da Fazenda Pública.
Segundo SELMA FERREIRA LEMES na proteção e execução do interesse público, o Estado age como Poder Público e como órgão governativo do Estado ao desempenhar suas funções política e legislativa. Nesta órbita, o interesse público classifica-se como originário ou primário. A Administração, por sua vez, quando desempenha a função administrativa adota e operacionaliza as diretrizes do órgãos governativos, atuando especificamente na realização do interesse público derivado ou secundário. [23]
De acordo com a doutrina de DIOGO DE FIGUEIREDO MOREIRA NETO, os interesses públicos primários seriam aqueles interesses que se referem às necessidades básicas e primordiais da sociedade. Os interesses secundários seriam, na concepção do autor, os interesses públicos de caráter instrumental, ou seja, aqueles relacionados à operacionalização das atividades finalísticas do Estado, seus atos, contratação de pessoal, serviços etc. [24]
A partir de tais considerações, SELMA FERREIRA LEMES conclui que:
o Estado, para atingir as atividades-fim, tutela interesses extremamente relevantes para a sociedade, posto que relacionados ao bem-estar, saúde, segurança em que o ordenamento legal os classifica de afetos ao "interesse público". Os interesses que tutelam são considerados supremos e indisponíveis. Mas essa indisponibilidade, apesar de ser regra, comporta relativização. A indisponibilidade pressupõe a inegociabilidade, que só pode ocorrer por vias políticas e na forma legal. Mas para executar as atividades-meio", a indisponibilidade é relativa, pode ser negociada e recai sobre os "interesses públicos derivados", para atuar nesta órbita, a Administração demanda autorização constitucional genérica (arts. 18, 37, caput) e, às vezes, autorização legal (por exemplo, arts. 49, I, XVI e XVII da CF). (...) Podemos classificar os interesses públicos em "primários" e "secundários" (instrumentais ou derivados). Os interesses públicos primários são indisponíveis e, por sua vez, os interesses públicos derivados têm natureza instrumental e existem para operacionalizar aqueles, com características patrimoniais e, por isso, são disponíveis e suscetíveis de apreciação arbitral. Esta conclusão, portanto, traz à tona a solução com referência à matéria suscetível de ser submetida à arbitragem: os interesses públicos derivados, de natureza instrumental e com características patrimoniais dispostos em contrato. [25] (g.n.)
A jurisprudência já teve por diversas vezes consagrado a distinção entre o interesse público primário, tendo reconhecido este interesse como absolutamente indisponível e o interesse público secundário [26], de caráter patrimonial, reconhecendo-se neste caso a sua plena disponibilidade pela Administração Pública em conflitos estabelecidos com particulares. [27]
3. Utilização dos Meios Alternativos de Solução de Litígios nas causas envolvendo a Fazenda Pública
A análise da admissibilidade dos meios alternativos de pacificação como nas causas intentadas em face da Fazenda Pública Pública necessita de uma prévia explanação a respeito da arbitragem, pois foi a partir deste mecanismo alternativo que se inaugurou a discussão a respeito da incompatibilidade entre a negociação de interesses públicos e os princípios da supremacia e da indisponibilidade que lhes são afetos.
Uma das principais questões levantadas em sede de arbitragem diz respeito à possibilidade ou não de submissão dos conflitos com a Administração Pública aos mecanismos alternativos de solução de controvérsia.
No tocante à arbitragem como meio pacificador nas contendas em face do Poder Público, RAFAELLA FERRAZ aponta a existência de três principais correntes doutrinárias:
Para uma corrente, representada por Pontes de Miranda, Luis Roberto Barroso, Carmem Tiburcio, Alexandre Santos de Aragão, dentre outros, a convenção de arbitragem somente pode ser celebrada por pessoa de direito público quando há lei expressa autorizativa. Outros doutrinadores reconhecem a exigência de autorização legal prévia, entretanto consideram essa já manifestada pelo legislador, quer por meio do artigo 1º da Lei n° 9.307, de 23 de setembro de 1996, que prevê que as pessoas capazes de contratar (dentre as quais os entes públicos) podem submeter suas contendas envolvendo direitos patrimoniais disponíveis à arbitragem, quer por meio do artigo 23-A da Lei 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, com a redação dada pela Lei n°11.196, de 22 de novembro de 2005, que, ao admitir a cláusula compromissória em contratos de concessão, tornou acessível o procedimento alternativo a todo e qualquer contrato administrativo. São seus patronos, em distintos graus: Caio Tácito, José Carlos de Magalhães, Arnoldo Wald, Athos Gusmão Carneiro, Miguel Tostes de Alencar, Ruy Janoni Dourado, Diogo de Figueiredo Moreira Neto, Sergio de Andréa Ferreira e outros. Há ainda uma terceira opinião, minoritária, representada por Celso Antônio Bandeira de Melo, que julga inconstitucional a adoção de convenção arbitral pela Administração Pública em qualquer hipótese, inclusive naquelas em que há previsão legal expressa, caracterizando a mesma como violação ao princípio da indisponibilidade do interesse público. [28]
Ocorre que, nas causas envolvendo o Poder Público, o sigilo e a confidencialidade, notas características da arbitragem entre particulares devem se amoldar ao princípio da publicidade, previsto no caput do art. 37, da Constituição da República.
A partir do precedente do Supremo Tribunal Federal obtido a partir do julgamento de um litígio envolvendo a Organização Lage, julgado em sede de agravo de instrumento em 1946, foi confirmada a possibilidade de o Estado participar da arbitragem privada, mantida, contudo, a orientação no sentido da sua não aceitação, em regra, nas causas em que o Poder Público desempenha atos de império, e não de gestão, por serem insuscetíveis de transação. [29]
Neste ponto, verifica-se que, nas causas em face do Poder Público, ganha relevo a garantia da transparência, exigida na Europa como marco de qualidade para o implemento e contínua evolução da arbitragem, entre outros meios alternativos de solução das controvérsias.
Segundo CARMONA, não há qualquer incompatibilidade entre o juízo arbitral e a publicidade nas causas envolvendo a Administração. [30] Muito pelo contrário, tanto mais legítimo será o resultado quanto mais amplamente conhecido e acompanhado for o procedimento de sua formação pelos interessados diretos, no caso a comunidade.
Em sede doutrinária, os professores MARCOS JURUENA VILLELA SOUTO e DIOGO DE FIGUEIREDO MOREIRA NETO, depois de estudo sobre a validade da cláusula compromissória existente em contrato de venda e compra de potência assegurada, firmado entre uma autorizatária de produção independente de energia elétrica e uma sociedade de economia mista, concluíram, dentre outros pontos:
3º - A arbitragem é de adoção juridicamente viável pela Administração Pública, sempre que a questão envolver interesses disponíveis. A lei de arbitragem, já decidida como constitucional pelo Eg. STF tem transformado o instituto ora analisado em verdadeira fórmula de efetividade da jurisdição, de modo a proporcionar aos administrados a rápida e eficaz onerosa solução dos conflitos de interesses, com atuação instrumental e adjetiva do Estado. A empresa estatal, na qualidade de sociedade de economia mista, submetida ao regime jurídico de direito privado, celebrando contratos regidos pelo direito privado, firmou, validamente, compromisso arbitrai com a autorizatária; portanto, coma partes capazes de pleno direito, ficam elas obrigadas ao juízo arbitrai, por serem tais cláusulas juridicamente válidas. [31]
CARMEN TIBURCIO sintetiza as principais posições doutrinárias sobre o tema da seguinte forma:
(a)Uma corrente sustenta que a arbitragem seria legitima em qualquer contrato administrativo com fundamento no art. 54, caput, da Lei nº 8.666/93, que dispõe serem aplicáveis supletivamente aos contratos administrativos, os princípios da teoria geral dos contratos, in verbis: "Os contratos administrativos de que trata esta lei regulam-se pelas suas cláusulas e pelos preceitos de direito público, aplicando-lhes, supletivamente, os princípios da teoria geral dos contratos e as disposições de direito privado.
(b) Outra corrente extrai de leis que autorizam a Administração a submeter-se à arbitragem em determinadas situações — como a Lei de concessões de serviços públicos, já referida (Lei nº2 8.987/95, art. 23, XV) — uma autorização generalizada para que a arbitragem seja adotada em quaisquer circunstâncias.
(c) Por fim, há ainda o argumento de que a arbitragem estaria autorizada genericamente para as sociedades de economia mista e empresas públicas exploradoras de atividade econômica por força do art. 173, §1º, da Constituição de 1988, no qual se prevê que elas estão sujeitas ao regime jurídico de direito privado. [32]
Prosseguindo a análise da admissibilidade dos mecanismos alternativos pela Fazenda Pública, passa-se a defender a existência de condições de procedibilidade para que sejam realizadas negociações entre o Poder Público e os particulares.
Em se tratanto especificamente do instituto da conciliação, passa-se a defender que existem, basicamente, duas condições imprescindíveis para que se instaure o procedimento conciliatório na seara pública: requerimento prévio na via administrativa e disponibilidade dos interesses públicos.
3.1. Necessidade de prévio requerimento administrativo
Por muito tempo, se defendeu a possibilidade de a Administração Pública solucionar seus conflitos de maneira consensual, com a participação ativa dos administrados no desenvolvimento das negociações.
Este movimento conciliatório que se iniciou com a admissão da arbitragem na Administração Pública, e hoje se revela de forma mais intensa a partir da celebração de acordos nas causas de menor complexidade, com valores limitados até sessenta salários mínimos, na atualidade, encontra algumas limitações lógicas e estruturais de procedibilidade.
Na medida em que a Administração Pública visa propagar a utilização dos meios alternativos como forma de resolução dos conflitos com particulares, algumas condutas, que antes eram consideradas costumeiras e aceitas na sociedade, passam a apresentar evidente contradição com a nova postura adotada.
Uma dessas condutas anteriormente aceitas era o ajuizamento de ações judiciais sem que houvesse por parte do Administrado a realização e comprovação de um prévio requerimento administrativo.
Ora, num mundo ideal, sem distorções estruturais e operacionais, seria razoável exigir do jurisdicionado a comprovação de um prévio requerimento administrativo, no intuito de caracterizar o interesse de agir na esfera judicial, mediante a caracterização fática de uma resistência por parte da Administração Pública, hábil a ensejar o nascimento de uma lide, ou seja, de uma resistência a uma pretensão autoral injusta ou infundada.
No entanto, historicamente observa-se na Administração, ao lado de uma burocracia exacerbada nos procedimentos, uma estrutura organizacional insuficiente para o atendimento de todos os cidadãos de maneira adequada, a falta de informação dos administrados a respeito dos seus direitos e do modo correto de deduzir seus pedidos na via administrativa e, por fim, a confusão do interesse público primário com uma posição de vantagem do Poder Público, calcada em uma concepção deturpada de soberania estatal.
Como desdobramentos desta deficiência histórica no funcionamento da máquina administrativa, passou-se a considerar com grande grau de notoriedade que a Administração Pública não era capaz de viabilizar o devido acesso dos administrados às suas instâncias inferiores, logo, o requerimento administrativo seria na prática uma etapa desrespeitada e praticamente nulificada, não sendo razoável a exigência de comprovação prévia pelo requerente de um ato publicamente ineficaz e impreciso, para que pudesse ter o devido acesso ao Poder Judiciário, em um segundo momento.
Várias omissões e deficiências em nosso sistema administrativo são toleradas e até amenizadas, por intermédio de normas legais que asseguram algumas prerrogativas e privilégios, no intuito de progressivamente proporcionar o desafogamento da máquina estatal, e para restabelecer a situação ideal tão esperada.
A exemplo disto, observa-se que a Fazenda Pública e a Defensoria Pública, em razão do aparelhamento insuficiente para o atendimento de todas as demandas judiciais que requerem sua atuação, gozam de privilégios processuais especiais e prerrogativas exclusivas a determinados membros de carreira, capazes de estabelecer um equilíbrio momentâneo das situação de desigualdade inicial existente, em relação aos particulares litigantes.
Por outro lado, à medida em que a situação de desigualdade vai perdendo proporções, os privilégios e garantias especiais conferidos a cada categoria passam por um processo de inconstitucionalidade progressiva, perdendo sua razão de existir quando restabelecida efetivamente a normalidade esperada, dentro dos padrões médios aceitos naquela realidade social.
Seguindo este pensamento, ALEXANDRE DOS SANTOS ARAGÃO faz uma interessante ponderação:
As prerrogativas estatais sobre os particulares se justificavam em razão daquela visão do interesse público como superior à satisfação dos interesses individuais. Hoje, com a crescente identificação do interesse público justamente como a maior satisfação possível dos interesses dos cidadãos, o papel dessas prerrogativas, com a consequente exclusão do direito protetivo dos interesses individuais, deve ser atualizado. O interesse público e os interesses dos cidadãos, que antes eram vistos como potencialmente antagônicos, passam a ser vistos como em princípio, reciprocamente identificáveis. [33]
Da mesma forma, a aceitação de uma ação ajuizada sem o prévio requerimento administrativo só é justificável na medida em que o Estado não proporciona ao administrado o devido acesso às instâncias administrativas, com uma adequada prestação do serviço de atendimento inicial, e proferindo decisões devidamente fundamentadas, na forma da lei.
Se, por um lado, o Estado passa a atuar de forma diferente, impondo melhorias ao funcionamento da administração, concebendo inclusive a possibilidade de transacionar com particulares para que se resolvam eventuais conflitos de forma mais eficiente, célere e econômica, a ausência do requerimento administrativo passa a ser injustificada, e sua admissão passa a ser combatida, pois, do contrário, aqueles que não recorrerem previamente às vias administrativas antes de submeterem suas pretensões ao Poder Judiciário, colocarão a Administração Pública em posição de desigualdade, ao ter que se defender judicialmente de algo que nem teve a oportunidade de conhecer previamente, com todas as limitações processuais e procedimentais que lhes são impostas pelo ordenamento pátrio.
Neste sentido, interessante registrar o posicionamento de HUMBERTO DALLA, segundo o qual
as partes deveriam ter a obrigação de demonstrar ao Juízo que tentaram, de alguma forma, buscar uma solução consensual para o conflito. Não há necessidade de uma instância prévia formal ex trajudicial, como ocorre com as Comissões de Conciliação Prévias na Justiça do Trabalho; basta algum tipo de comunicação, como o en vio de uma carta ou e-mail, uma reunião entre advogados, um contato com o "call center" de uma empresa feito pelo consumidor; enfim, qualquer providência tomada pelo futuro demandante no sentido de demonstrar ao Juiz que o ajuizamento da ação não foi sua primeira alternativa. Estamos pregando aqui uma ampliação no conceito processual de interesse em agir, como forma de racionalizar a prestação jurisdicional e evitar a procura desnecessária pelo Poder Judiciário. Mas esta é apenas uma das facetas desta visão. A outra e, talvez, a mais importante, seja a consciência do próprio Poder Judiciário de que o cumprimento de seu papel constitucional não conduz, obrigatoriamente, à intervenção em todo e qualquer conflito. Tal visão pode levar a uma dificuldade de sintonia com o Princípio da Indelegabilidade da Jurisdição, na esteira de que o juiz não pode se eximir de sua função de julgar, ou seja, se um cidadão bate as portas do Poder Judiciário, seu acesso não pode ser negado ou dificultado, na forma do artigo 5º, inciso XXXV da Carta de 1988. O que deve ser esclarecido é que o fato de um jurisdicionado solicitar a prestação estatal não significa que o Poder Judiciário deva, sempre e necessariamente, ofertar uma resposta de índole impositiva, limitando-se a aplicar a lei ao caso concreto. Pode ser que o Juiz entenda que aquelas partes precisem ser submetidas a uma instância conciliatória, pacificadora, antes de uma decisão técnica. E mais, num momento inicial, como é este em que se encontra o direito brasileiro, requer certa dose de postura educativa e pedagógica. [34]
Pelo exposto, defende-se a partir da inclusão dos meios alternativos como formas viáveis de solução dos conflitos perante a Administração Pública, que o requerimento administrativo seja uma das condições prévias de procedibilidade do procedimento conciliatório na via judicial.
Por fim, ressalve-se que este critério deve ser inserido de forma gradual e ponderada, observando-se as peculiaridades de cada caso concreto e mediante a constatação de um acesso à via administrativa eficaz e em conformidade com as disposições legais e constitucionais atinentes.
3.2. Disponibilidade dos bens e interesses públicos. Possibilidade de conciliação nas causas envolvendo a Fazenda Pública
São características do interesse público a indisponibilidade, imprescritibilidade e inalienabilidade.
A indisponibilidade do bem público é uma forma de especial proteção conferida pelo legislador. Conceitua-se o direito indisponível como "o direito que pode ser derivado na natureza do direito ou de norma inderrogável e, por este motivo, não pode ser objeto de renuncia e transação por parte de seu titular" [35].
Em defesa da disponibilidade dos bens e interesses públicos, assevera Adilson de Abreu Dallari que, a partir do momento em que se constata a preexistência de previsão legal expressa para a utilização de mecanismos de solução amigáveis em conflitos envolvendo a Administração Pública, resta evidente a possibilidade de negociação dos direitos envolvidos sem que haja lesão ao princípio da indisponibilidade dos interesses públicos.
Neste ensejo, assevera o autor que:
Se é compatível com a ordem jurídica a celebração de acordo fora do âmbito judicial, com muito maior razão se haverá de admiti-lo em sede judicial.
Se é possível celebrar um acordo para evitar a propositura de uma ação judicial, com muito maior razão, numa perspectiva de ordem lógica, também deve ser possível a celebração de um ajuste para dar fim a uma contenda judicial, dado que, nesta segunda hipótese, sempre haverá a presença vigilante do juiz da causa.
Fique perfeitamente claro que não se está pretendendo dizer que, atualmente, seja possível à Administração Pública atuar livremente, divorciando-se do princípio da legalidade, que determina sua submissão à lei. O que se sustenta é que não se pode mais aceitar uma submissão absoluta à letra da lei, em detrimento da realização dos fins a que ela se destina. Cumpre-se a lei quando se atinge o resultado por ela almejado.
Atualmente, além de acatar o princípio da legalidade, é preciso dar atendimento também a um outro novo e significativo princípio constitucional da administração pública, o princípio da eficiência (...) [36]
Neste ensejo, LEONARDO GRECO demonstra com precisão que a proteção aos bens públicos deve ser considerada com parcimônia, sempre privilegiando a realização dos interesses públicos, do contrário, não há razão para a indisponibilidade de um bem ou direito do Estado:
Uma outra solução, igualmente protetiva dos direitos dos credores, começou a surgir em alguns outros países, como a Itália, a Espanha, Portugal e a Argentina, que, limitando a impenhorabilidade dos bens públicos, admitem a penhora de bens dominicais do Estado e de receitas públicas não vinculadas ao exercício de atividades essenciais. Em Portugal, os bens dos corpos administrativos, as coisas do seu domínio privado, podem ser penhoradas, desde que não estejam afetadas a um fim de utilidade pública. Na Espanha, em 1998, o Tribunal Constitucional declarou a inconstitucionalidade do Regulamento das Fazendas Locais que proibia genericamente a penhora de bens públicos, fosse ou não do patrimônio disponível. Na Argentina, se o Estado se tornar remisso, poderão ser penhorados bens públicos de utilização privada. No Direito Italiano, não são impenhoráveis o dinheiro público e os créditos inscritos em balanço, salvo os originários de relações de direito público, como tais entendidas as resultantes de atos cumpridos no exercício de poderes de império da administração; os créditos públicos de origem privada, que não têm uma destinação pública previamente estabelecida.
Há muitas pessoas jurídicas de direito público titulares de vasto patrimônio ocioso ou não utilizado em fins públicos, que poderiam servir para saldar dívidas, sem desviar recursos dos serviços essenciais do Estado.
No plano infraconstitucional poder-se-ia cogitar de algum tipo de contempt of court, aplicado pelo próprio juiz da execução, que sancionasse os agentes das pessoas jurídicas de Direito Público, caso não cumprido o artigo 100 da Constituição, ou seja, caso não incluída a verba no orçamento do ano seguinte ou não efetuado o pagamento nesse ano. A sanção poderia ser uma multa pecuniária periódica, a ser executada como título judicial em execução pessoal contra o agente sancionado.
No Estado de Direito, que respeita os direitos dos cidadãos, a intangibilidade do patrimônio público somente se justifica na medida em que serve ao bem comum, através da sua afetação ao exercício de funções públicas de interesse de toda a coletividade [37].
Seguindo a mesma linha de raciocínio, SELMA FERREIRA LEMES aduz em seu trabalho sobre a utilização da arbitragem na Administração Pública que:
É indubitável que os conceitos e princípios legais necessitam ser interpretados coerentemente, inclusive o princípio da indisponibilidade do interesse público. Neste sentido, analisando os princípios da supremacia do interesse público sobre o privado e o da indisponibilidade do interesse público, preleciona Celso Antonio BANDEIRA DE MELLO, que não se pode atribuir-lhes valor absoluto, são importantes e pontos fundamentais do Direito Administrativo, mas que "não se lhes dá um valor intrínseco, perene e imutável. Dá-se-lhes importância fundamental porque se julga que foi o ordenamento jurídico que assim os qualificou. [38]
Neste contexto, é observada de forma crescente a aceitação e utilização dos mecanismos alternativos de pacificação dos conflitos pela Fazenda Pública, mediante constantes e sucessivas edições de normas internas reguladoras da conciliação e mediação em sede judicial.
Em contraposição, verifica-se que ainda há grande resistência dos agentes públicos colocarem estas medidas em prática, pois a cultura conciliatória, além de ser bastante recente, ainda não possui balizamentos bem definidos quanto à responsabilização dos servidores pela sua utilização.
No âmbito da Advocacia Pública, em sentido oposto, constata-se de maneira satisfatória, sucessivas edições de leis ordinárias e atos internos autorizando e regulamentando a utilização do procedimento conciliatório nas causas ajuizadas em face do Poder Público.
A exemplo disto, a partir da edição da Lei nº 9.469/1997 (com redação posteriormente alterada pela Lei 11.941/2009) foi autorizada a realização de acordos ou transações em juízo por membros da Advocacia Pública da União [39].
No entanto, na via administrativa, em sede extrajudicial, ainda não há nenhuma lei ou ato que autorize a celebração de acordos com os particulares por iniciativa dos agentes públicos.
Retomando a questão sobre a disponibilidade do interesse público, ADILSON DE ABREU DALLARI em estudo específico asseverou que:
Fundados em um antigo preconceito no sentido da necessária oposição entre o interesse público e o particular, entendem alguns que a Administração Pública em juízo não pode transigir, não pode desistir e está obrigada a prosseguir em qualquer feito, indefinidamente, enquanto houver algum recurso abstratamente possível. Mas os tempos são outros. Atualmente, com base no princípio participativo, afirmado pela Constituição Federal, já se desenvolvem várias ações calcadas na colaboração, no entendimento e na soma de esforços de agentes privados e governamentais. A atividade legislativa já se desenvolve hoje em dia com ampla participação popular. Nos serviços prestados pela Administração Pública, isso é ainda mais nítido e freqüente. Diante disso, não pode o Judiciário, nas ações judiciais, simplesmente vedar e proscrever qualquer entendimento, qualquer negociação, que leve à satisfação do interesse público. [40]
A partir daí, surge a necessidade de se demonstrar que a indisponibilidade do interesse público não é de forma alguma um empecilho à transação com um ente estatal, o que será estudado a partir do conceito de interesse público, mais adiante.
Ainda cumpre observar que, apesar de existirem atos legais e infralegais regulando a conciliação judicial e a arbitragem nas causas que envolvam direitos públicos, os limites à sua utilização e as hipóteses autorizadoras legalmente estatuídas ainda não se encontram bem delineadas, o que gera inúmeras dúvidas que frustram em grande parte a propagação dos mecanismos de redução de demandas.
A respeito da ponderação dos interesses públicos e privados, MARCELLA BRANDÃO lembra que
Muitas vezes, o melhor interesse público somente é alcançado, no caso concreto: com a preponderância de um direito individual, confrontado a um suposto direito coletivo ou, ainda, com uma decisão contrária ao interesse da administração (interesse público secundário). Conclui- se que a indisponibilidade do interesse público primário não se confunde com a disponibilidade de recursos públicos, uma vez que interesses meramente patrimoniais não representam o interesse público primário. O interesse da coletividade é a redução da litigiosidade e do gasto público com a manutenção indefinida e litígios, apresentando-se a consensualidade uma solução de controvérsias que atende aos anseios expostos. [41]
No Brasil, é firme a doutrina da necessária disponibilidade do objeto litigioso como condição prévia de procedibilidade da arbitragem, por força do art. 1º da Lei 9.307/1996. O paradigma alcança não apenas as causas entre particulares, marcando também fortemente a arbitrabilidade objetiva daquelas causas em que é contratante a Administração Pública.
No campo da conciliação a linha de raciocínio a ser seguida é a mesma seguida no estudo da arbitragem envolvendo a Administração Pública – a indisponibilidade dos interesses públicos há que ser considerada com parcimônia, não se trata de uma vedação absoluta. Antes de se reputar um direito público como indisponível, o administrador e o Advogado Público devem se fazer duas perguntas básicas: 1) o direito em questão, se realizado, priorizará a realização do interesse público primário? e 2) as questões eventualmente transacionadas possuem reflexos puramente patrimoniais?
Só a partir da operação mental acima descrita, em se constatando respostas negativas para ambas questões, terá o agente público a certeza de que o direito público em questão não será disponível em qualquer situação. Caso contrário, é dever do administrador passar a um segundo exercício de raciocínio, só que agora, calcado nas garantias e direitos fundamentais estabelecidos pela Constituição, priorizando sempre a satisfação da dignidade da pessoa humana, sem qualquer prejuízo para a ordem pública e o bem estar comum.
Neste ensejo, ADILSON DE ABREU DALLARI afirma que "ao optar pela solução amigável, a Administração Pública não está necessariamente transigindo com o interesse público, nem abrindo mão de instrumentos de defesa de interesses públicos. Está, sim, escolhendo uma forma mais expedita ou um meio mais hábil para a defesa do interesse público" [42].
Ao discorrer sobre a impossibilidade de se transigir nas causas em que figura o Poder Público como parte, FRANCESCO GOISIS faz as seguintes observações:
Sabidamente, é condição essencial para a celebração de acordo entre as partes a transigibilidade dos bens e direitos envolvidos no conflito. O Poder Público ao realizar conciliação ou mediação com um particular, não está renunciando aos seus direitos ou à sua posição jurídica subjetiva, mas sim, reconhecendo uma posição de vantagem ao oponente, em troca de alguma vantagem. Logo, eventual renúncia decorrente das negociações não afetará a posição subjetiva do ente público, apenas gerando a renúncia parcial à pretensão material objeto da lide. O interesse do Poder Público em realizar a conciliação e a mediação, surge no momento em que se constata razoável dúvida por parte da administração quanto à aplicação das normas publicistas ao caso concreto, restando assim imprevisível a possibilidade de êxito judicial por parte do requerente. [43]
3.2.1. Disponibilidade dos bens patrimoniais nas causas envolvendo o Poder Público
Imprescindível se torna diferenciar indisponibilidade absoluta de indisponibilidade relativa, só sendo possível a conciliação judicial nas causas que envolvam direitos relativamente indisponíveis, desde que não haja prejuízo ou lesão às partes envolvidas. Dentre os direitos absolutamente indisponíveis estão os direitos da personalidade e aqueles relacionados à honra ou estado da pessoa e são considerados relativamente disponíveis os direitos patrimoniais.
São considerados direitos patrimoniais plenamente disponíveis aqueles referentes à tutela dos interesses de âmbito meramente individual, passíveis de conversão monetária e que se encontrem na livre disposição do titular. Os direitos patrimoniais indisponíveis seriam aqueles que "têm impacto sobre os interesses gerais". [44]
Conclui SELMA FERREIRA LEMES que a disponibilidade ou indisponibilidade de direitos patrimoniais não tem qualquer relação com a disponibilidade ou indisponibilidade do interesse público:
A disponibilidade de direitos significa a disponibilidade para aliená-los e é sabido que a Administração, ainda que encontre vedação para a alienação de determinados bens, está livre para dispor em relação a outros. Mas, como arremate, sintetiza o professor Eros Roberto GRAU que inúmeras vezes deve dispor de direitos patrimoniais, "sem que com isso esteja a dispor do interesse público, porque a realização deste último é alcançada mediante a disposição daqueles". Por sua vez, o professor Sérgio de Andréa FERREIRA é enfático: "o patrimônio disponível é o econômico" [45].
Assim, os bens públicos patrimoniais, embora indisponíveis por natureza, são passíveis de transação uma vez que constituem direitos relativamente indisponíveis.
Para SELMA FERREIRA LEMES o conceito de disponibilidade está "relacionado com o de negocialidade e de bens suscetíveis de valor e livres no mercado". Em sua doutrina, a relativização da indisponibilidade dos bens públicos pode ser concebida nas relações jurídicas envolvendo o Estado, quando, investido do poder de gestão, contrata com particulares. [46]
Caso semelhante de relativização da indisponibilidade de direitos é observado em sede trabalhista, de onde se extrai a ponderação dos direitos dos trabalhadores, permitindo-se a realização de conciliações e de acordos coletivos.
Em trabalho sobre a conciliação judicial e a indisponibilidade dos direitos no direito trabalhista, ELAINE NASSIF afirma que:
[...] o direito patrimonial é traduzido no valor quantitativo que o exprime, ele não é um protocolo de intenções. Dizer-se que renunciar ao quantitativo não é a mesma coisa que renunciar ao direito que é inaceitável. A certeza sobre o direito a receber somente é possível após a sentença. Antes da sentença tudo é res dubia. [47]
No mais, destaca a autora a importância de se distinguir os conceitos de renúncia e transação. Para NASSIF, "a indisponibilidade compreende restrições à renúncia e não à transação", na medida em que a primeira é ato jurídico unilateral e a última, ato jurídico bilateral de concessões recíprocas. [48]
Isto significa dizer que a indisponibilidade de bens e direitos (públicos ou privados) só se justifica (logo, se aplica) quando exista algum ato ou negócio jurídico que ameace a sua completa integridade, de modo a ocasionar alguma lesão ou prejuízo aos interesses de uma das pessoas envolvidas, ocasionando-lhe patente desvantagem.
Ademais, os direitos e interesses que seriam indisponíveis, quando discutidos em juízo, ainda não adentraram no patrimônio de qualquer uma das partes, recaindo sobre eles uma dúvida capaz de autorizar a sua negociação, desde que haja vantagens para os envolvidos e seja mantida uma situação de equilíbrio em patamares razoáveis.
Para NASSIF, sempre existirá para os demandantes a possibilidade de negociação de um direito material classificado como indisponível por um direito processual, qual seja, a possibilidade de encerramento o processo de maneira célere, evitando-se as custas e despesas decorrentes de sua longa tramitação, e, por fim, eliminando-se a incerteza do resultado mediante o acordo celebrado entre as partes envolvidas.
Parte da doutrina entende que a presença de um juiz togado seria indispensável no momento da celebração de acordos envolvendo direitos e interesses indisponíveis. A exemplo, SÉRGIO PINTO MARTINS destaca que só é possível estabelecer-se uma relação de igualdade jurídica entre as partes diante de um magistrado ou um terceiro imparcial autorizado por lei:
[...] poderá, entretanto, o trabalhador renunciar a seus direitos se estiver em juízo diante do juiz do trabalho, pois nesse caso não se pode dizer que o empregado esteja sendo forçado a fazê-lo. Estando o trabalhador ainda na empresa é que não se poderá falar em renúncia a direitos trabalhistas, pois poderia dar ensejo a fraudes. É possível também, ao trabalhador transigir, fazendo concessões recíprocas, o que importa um ato bilateral. Feita a transação em juízo, haverá validade em tal ato de vontade, que não poderá ocorrer apenas na empresa, pois, da mesma forma, há a possibilidade de ocorrência de fraudes. Em determinados casos, a lei autoriza a transação de certos direitos com a assistência de um terceiro. [49]
Neste ensejo, LEONARDO SCHENK, estudo sobre uso da arbitragem pelo Poder Público [50] conclui que:
Há, conforme afirmado, verdadeiro mito acerca da vinculação entre a disponibilidade dos interesses e a aceitação do juízo arbitral. E se tal realidade se aplica aos particulares, ainda maior é a sua força nas causas envolvendo a Administração Pública. Tanto a doutrina quanto a jurisprudência recente sobre o tema rezam nessa cartilha. É clara a distinção, logo nas premissas do raciocínio, entre interesses públicos primários e secundários da Administração Pública para limitar a arbitragem aos segundos. [51]
À aceitação do juízo arbitral, no âmbito objetivo, para os interesses públicos secundários, segue-se uma restrição no âmbito subjetivo, uma vez que apenas as entidades exploradoras de atividade econômica têm sido autorizadas a resolver suas controvérsias contratuais no juízo arbitral.
Contudo, a observância da experiência estrangeira, de um lado, e o próprio reconhecimento do primado dos direitos fundamentais, de outro, permitem, ou mesmo exigem, o repensar dessas bases.
Com isto, podemos concluir até o presente momento que a possibilidade de transação em causas envolvendo a Fazenda Pública dependerá da existência dos seguintes elementos: direito público patrimonial (que seria relativamente indisponível), incerteza sobre o objeto litigioso (res dubia); negociação conduzida sob a presença de um juiz ou terceiro imparcial autorizado por lei; concessões recíprocas (ato bilateral), e, por fim, estrita observância das garantias processuais e individuais constitucionalmente previstas.