Artigo Destaque dos editores

O paradoxo do juiz e a necessidade de humanização da justiça

12/08/2010 às 09:13
Leia nesta página:

1- INTRODUÇÃO

Este artigo pretende apresentar reflexões sobre um aspecto essencial e, a meu ver, insuficientemente tematizado nos muitos escritos versando sobre um fenômeno que nos Juizados Especiais se apresenta de forma acentuada (conquanto neles não se esgote): a humanização do sistema de justiça.

Trata-se de questão especialmente problemática, pois marcada pelo paradoxo do distanciamento versus proximidade (identidade), que o juiz nunca pode eliminar na trajetória de sua missão.


2- HISTORICIDADE DO PARADOXO

O paradoxo do distanciamento e proximidade do juiz com o jurisdicionado, no processo e fora dele, aparece desde as mais remotas épocas nas sociedades humanas, e diversas são as referências a ele. Contudo, uma reflexão merece destaque: as considerações tecidas por Platão no Livro III da República, quando apresenta um diálogo entre Sócrates e Glauco realizando um paralelo entre os médicos e os juízes:

"Glauco - ... Ora, os bons médicos são, principalmente, os que trataram o maior número de indivíduos saudáveis e não saudáveis; da mesma maneira, os bons juízes são os que têm convivido com homens de todos os caracteres?

Sócrates – Sem dúvida que são necessários bons juízes e bons médicos. Mas sabes quais são os que considero como tais?

Glauco- Sabe-lo-ei se me disseres.

Sócrates – É o que vou fazer; mas incluíste na mesma pergunta duas coisas diferentes.

Glauco – Como assim?

Sócrates – Os médicos mais hábeis seriam os que, começando logo na infância a aprender a sua arte, tivessem tratado o maior número de corpos e os mais doentes, e que, não sendo eles próprios de uma compleição saudável, tivessem sofrido todas as doenças. ...

Glauco – É verdade.

Sócrates – Mas o juiz, meu amigo, ainda que tenha que governar a alma de outrem pela sua, não tem necessidade de andar na companhia das almas perversas, nem que tenha percorrido a série de todos os crimes, com o único fim de poder, com acuidade, conjeturar por si mesmo os crimes dos outros, como o médico conjetura as doenças do corpo; ao contrário, é preciso que se tenha mantido ignorante e pura do vício [a alma do juiz], se se quer que julgue corretamente o que é justo. Eis por que motivo as pessoas honradas se mostram simples na sua juventude e são facilmente enganadas pelos maus, visto que não há nelas modelos de sentimentos semelhantes aos dos perversos." [01]

Nessa maravilhosa forma de dizer o que em forma condensada afirma o ditado "Cada um julga por si", Platão nos brinda com reflexão profunda acerca do paradoxo objeto deste artigo.


3- O PROBLEMA

O filósofo Paul Ricoeur, no seu livro "Leituras 1: Em torno ao Político", no artigo "O justo entre o legal e o bom", fornece a seguinte descrição do que chama "canais de justiça":

Quanto aos canais de justiça, trata-se do próprio aparelho judiciário, compreendendo várias coisas: um corpo de leis escritas; tribunais ou cortes de justiça investidos da função de pronunciar o direito; juízes, vale dizer, indivíduos como nós, reputados independentes e encarregados de pronunciar a sentença considerada justa numa circunstância particular; ao que não se deve esquecer de acrescentar o monopólio da coerção, a saber, o poder de impor uma decisão da justiça pelo emprego da força pública. [02]

Para quem já estudou Direito a descrição de Ricoeur, apesar de bem vazada, somente mereceria lugar junto a um sem-número de outras expressivas da mesma realidade, algumas mais claras, outras mais obscuras, mas sem diferença substancial notável. Nada de novo.

Entretanto, existe um elemento intrigante na definição dada pelo filósofo, que toma contornos especialmente relevantes quando se faz uma reflexão acerca do lugar e papel do sistema judiciário no mundo de hoje: os canais de justiça, segundo Ricoeur, compreendem "juízes, vale dizer, indivíduos como nós". Daí surge a pergunta: porque será que o filósofo entendeu não só necessário, mas de valia ("vale dizer"), ressaltar que os juízes são indivíduos como todos os demais indivíduos?

Como toda proposição encerra elementos implícitos, procurarei trazer à luz dois desses elementos, que identifico como possíveis justificativas da expressão "juízes, vale dizer, indivíduos como nós".

Em primeiro lugar, num patamar mais formal, a afirmação revela, se não uma polarização/oposição, uma separação nítida, uma linha invisível mas real dividindo a sociedade entre juízes e não-juízes.

Numa perspectiva mais profunda e substancial, a definição parece trazer um memento e, porque não, uma advertência: os juízes também são indivíduos, também são como os "nós-não-juízes", também são pessoas.

Admitindo-se que toda proposição encerra uma intenção [03], diante dessas seis palavras sob análise ("juízes, vale dizer, indivíduos como nós") parece razoável afirmar que o filósofo intenciona expressar que, apesar de juízes, esses agentes políticos são também seres humanos e indivíduos, como os jurisdicionados, os não-juízes. Vale dizer: sujeitos às mesmas limitações, mas também abertos às mesmas possibilidades.

Irrompe neste momento uma questão sempre espinhosa para as sociedades humanas organizadas, tanto sob o aspecto teórico, quanto do existencial (notadamente para o indivíduo-juiz): o paradoxo entre a necessidade de distanciamento como condição do julgamento imparcial, por um lado; e a inevitável proximidade, decorrente tanto da condição humana do próprio juiz quanto da impossibilidade de, sem se aproximar do outro, com ele se identificando em suas limitações e possibilidades, julgar humanamente (sim, porque nunca é demais lembrar o que por vezes se esquece: trata-se o judiciário de um aparato humano, isto é, feito por humanos, operado por humanos e criado para atender a necessidades do ser humano).


4- O JUIZ-INDIVÍDUO NO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

A abstração do Estado-Juiz, indivíduo que é também órgão, é essencial na construção dos sistemas jurídicos. Entretanto, ao tratar do paradoxo em questão é importante destacar que mesmo a lei que delineia o juiz em seu lado abstrato em certo momento se rende à incontornável realidade da condição humana do julgador.

Em primeiro lugar porque existe um instante em que as abstrações que são as pessoas jurídicas precisam exercer suas atribuições no mundo e, nesse ponto, não existe outra saída a não ser "encarná-las" num ser humano.

Além disso, em certas ocasiões a abstração cede à força da condição humana, conforme se vê dos artigos 134 a 136 do Código de Processo Civil Brasileiro: quando for amigo íntimo, inimigo capital, credor, devedor, parente, cônjuge, consangüíneo, parte, o próprio legislador reconhece que o indivíduo-juiz se sobrepõe ao estado-juiz, sendo humanamente incapaz de sustentar o distanciamento necessário para o julgamento imparcial.

Fato é que a condição humana é incontornável e recentemente vem aumentando o número de dispositivos em que a própria norma estimula a humanização do juiz, como no caso das leis 9.099 de 1995 e 10.259 de 2001, que situam os juizados especiais sob a regência da oralidade, simplicidade e informalidade buscando, sempre que possível, a conciliação ou a transação.

Entretanto, por valiosos que sejam os esforços recentes, no caminho da justiça ainda se interpõe o fenômeno da desumanização, que demanda reflexão crítica – o que faremos no próximo tópico.


5- CAUSAS POSSÍVEIS DA DESUMANIZAÇÃO:

Depois do que foi dito, pode-se concluir que o que se vê retratado na frase de Ricoeur é uma realidade sentida por muitos – senão a maioria – daqueles que vivem o mundo contemporâneo: a desumanização. Desumanização essa que não é exclusividade do mundo jurídico, que apenas se insere num movimento mais amplo e global de desidratação da realidade humana decorrente do domínio do discurso tecnocientífico, que pretende ter o monopólio da razão.

Nesse ponto, apresento ao leitor uma pergunta: será que o discurso tecnocientífico hoje dominante sobrevive aos critérios de aferição de racionalidade por ele mesmo impostos à humanidade (e aos outros ramos do conhecimento)? Parece-me que não, conforme mostrarei a seguir.

O discurso tecnocientífico globalizado, movido por um insaciável ímpeto dominador temperado de prepotência, erigiu seu método como o único caminho para a verdade. Assumiu para si a máximabíblica: a ciência é o caminho, a verdade e a vida. Atribuindo a seu método empírico o condão de tudo transformar em certeza da verdade, coroou-o como o único racional e, com isso, praticamente fundiu racionalidade, verdade e certeza (esta última tão cara a uma sociedade atordoada diante do "sem-sentido") – atributos que o senso comum hoje tende a atribuir apenas ao que passa pela prova dos métodos empíricos. O direito, concebido por homens, com suas normas, escritas por homens, não escapou desse movimento, que veio se alojar sob as vestes de formalismo excessivo do Processo Civil, que teve sua mais recente eclosão na década de setenta do século passado, e ainda sobrevive, não obstante a crescente e previsível onda de reformas legislativas em sentido contrário.

As conseqüências para o homem são graves: se racional é só aquilo de que se pode ter certeza, e se somente tem o atributo da certeza o que é demonstrado empiricamente, a filosofia, as ciências sociais, as ciências hermenêuticas, são indubitavelmente irracionais. A "humanidade" é um valor por demais vago para ser admitido como critério racional pelo Direito. A abstração "Estado-Juiz" suprime a dimensão humana do indivíduo julgador, pois incompatível com a racionalidade hermética vigente. Fim de discussão.

Contudo, pensando cuidadosamente sobre a questão, parece-me que o discurso tecnocientífico não sobrevive aos seus próprios critérios, o que se pode demonstrar numa rápida pincelada, tão evidente sua contradição interna.

Com efeito, o discurso tecnocientífico tem ele mesmo um momento de indefinição/incerteza radical (aos olhos de seu critério). Como mostradopor Ladrière [04], a análise das ciências (formais, lógico-formais, hermenêuticas) revela que elas mesmas assumem um certo número de pressupostos que são pré-requisitos à sua formulação. E lembra que a própria idéia de teoria constitui já um pressuposto, assim como os conceitos/idéias de verificação, confirmação, verdade, adequação, e mesmo a idéia de significação presente no domínio hermenêutico. Nos dizeres de Mac Dowell [05], partem de premissas que, em última análise, não podem ser demonstradas pelo seu próprio método empírico: são consideradas justificadas por si mesmas. Ora, o que não pode ser empiricamente demonstrado é, aos olhos do próprio discurso tecnocientífico, irracional. Tratando-se de suas próprias fundações, o que sobra de seu edifício?

Como ressalta Jean Ladrière, após o surgimento das geometrias não euclidianas no século XIX sabemos que mesmo os axiomas matemáticos (base outrora intocável de toda teoria formal e antigo bezerro de ouro da racionalidade) nada têm de evidentes ou absolutos [06]. Entretanto, até hoje a geometria euclidiana é considerada racional – e com "razão". A superação da física newtoniana, pedra fundamental do pensamento Kantiano, por Einstein, desperta no pensamento fundada dúvida sobre a pretensão de razão absoluta levantada pela cultura tecnocientífica.

Ao contrário do que procura impor a razão tecnocientífica, racionalidade não se confunde com certeza, e muito menos com verdade. Mac Dowell [07] o demonstra por um singelo e perfeito exemplo, mais ou menos nos termos seguintes: alguém sonhou com um número e jogou na loteria, acreditando que vai ganhar. Um matemático calcula sua possibilidade de acertar como quase inexistente, e afirma que não tem razões para acreditar que vai ganhar o prêmio. Quem é mais racional, o jogador ou o cientista? Mas, e se o jogador acertar, quem estava certo, ou com a verdade?!

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

Destarte, colocada no mesmo nível dos outros campos do conhecimento e abalada pelas mesmas dúvidas que sobre aqueles lança para se afirmar, a tecnociência não sobrevive às suas próprias exigências. E ao concluir, com isso, que ela não detém o monopólio da racionalidade, damos o primeiro passo para admitir a possibilidade da racionalidade dos outros ramos do saber e, no caso específico desta reflexão, para refutar a posição de que, quanto mais estanque e hermético o direito, e quanto mais distanciado o juiz, mais "racional" e "eficiente" serão o sistema jurídico e o ato de julgar [08][09]. Com o questionamento do primado da razão tecnocientífica, reabre-se uma via à humanização do Direito e do ato de julgar.

Cria-se um movimento de afastamento do pólo-distanciamento em direção ao pólo-aproximação/identificação com o indivíduo e a sociedade. A manutenção desse movimento é necessária, e deve partir de uma análise do ato de julgar e seus objetivos.


6- OBJETIVOS DO ATO DE JULGAR SEGUNDO PAUL RICOEUR

Em sua obra "O Justo", no capítulo "O Ato de Julgar", Ricoeur serve-se do termo "reconhecimento":

Falemos de reconhecimento. Mas em qual sentido? Eu penso que o ato de julgar atingiu seu objetivo quando aquele que, como dizemos, ganhou seu processo se sente ainda capaz de dizer: meu adversário, esse que perdeu, continua como eu um sujeito de direito; sua causa mereceu ter sido ouvida; ele tinha argumentos plausíveis e os mesmos foram ouvidos. Mas o reconhecimento não será completo a menos que possa ser dito por aquele que perdeu, aquele a quem não foi dada razão, o condenado: ele deveria poder declarar que a sentença que julgou improcedente seu pedido não foi um ato de violência, mas um ato de reconhecimento. [10]

Quem vive o dia-a-dia dos fóruns perceberá à primeira vista que há algo pouco factível na concepção de Ricoeur, notadamente no que se refere à postura mental da parte vencida. Quem vai às Cortes geralmente acredita ter razão.

Contudo, parece razoável esperar - e buscar - que, apesar do compreensível inconformismo pessoal, o vencido ao menos reconheça, no âmago daquela derrota pontual, uma pequena mas essencial vitória: ao participar daquele ato judicial, teve reconhecido seu direito de não ter que se submeter à violência, de poder apresentar suas pretensões em um ambiente em que as disparidades extra-autos são razoavelmente niveladas.

Contudo, como pode o juiz viabilizar o reconhecimento entre duas pessoas se ele mesmo não se reconhece nelas? Se não se coloca em seu lugar, ao menos por um instante, enriquecendo-se da consciência da situação e individualidade de cada uma delas, para só depois retornar à sua toga e decidir? Parece-nos que é essencial a realização desse movimento de ida e volta, movimento de saída de seu Estado-Juiz para se tornar Juiz-Indivíduo, culminando na reassunção enriquecida da posição distanciada que permite o julgamento imparcial.

No tópico seguinte tratarei de fenômeno que, recentemente, imprimiu notável humanização na justiça brasileira.


7- NOTAS ESPECÍFICAS CONSIDERANDO A REALIDADE DA JUSTIÇA FEDERAL ANTES E DEPOIS DOS JUIZADOS ESPECIAIS FEDERAIS

Na condição de Juiz Federal que também já atuou como servidor dessa mesma Justiça parece-me importante apresentar reflexões pertinentes ao tema que emergiram dessa situação de vida específica.

A visão de grande parte da população que a conhece e também de seus próprios integrantes é a de que a Justiça Federal é justiça distanciada por excelência, vocacionada ao julgamento das "grandes" causas, matéria de direito, instituições públicas, autarquias... Justiça até recentemente concentrada, na maioria dos Estados, apenas nas capitais.

Pois essa Justiça Federal, no início do século XXI, foi como que fulminada por um raio, um empurrão brusco de sua posição hermética para uma situação de extrema proximidade, com a criação dos Juizados Especiais Federais. Subitamente milhões de ações de idosos, viúvas, órfãos, portadores de deficiências físicas, jorraram para dentro dos fóruns federais. A proximidade, decorrente da própria lei de instituição dos Juizados Especiais (oralidade, simplicidade, informalidade), como era de se esperar, resultou numa justiça mais humana: subitamente o que se viu foram Juízes Federais de manga de camisa, em barcos e veículos traçados durante juizados itinerantes, em filas de espera prestando informações e orientações aos jurisdicionados.

Questionamentos foram levantados, alguns por simples amor à forma, outros por respeitáveis preocupações quanto ao valor das tradições e possível perda de imparcialidade.

Entretanto, se a perda de imparcialidade é sempre um risco que ser corre quando se trata de um ser humano julgador, não parece razoável tê-la como efeito necessário da humanização gerada pela instituição dos Juizados Especiais Federais. Prova disso é que causas vencidas por segurados do INSS têm sido mantidas em proporção significativa pelas Cortes de Segundo Grau, que não têm contato pessoal com as partes.

Fato é que da criação dos Juizados Especiais Federais resultou não apenas uma aproximação objetiva da Justiça Federal (com a criação de novas vias de acesso ao Judiciário), mas também a formação de uma nova cultura humanizante e de proximidade entre não-juízes e juízes - que têm constituído o verdadeiro motor de mudanças dentro da estrutura convencional da instituição, à medida em que levam para as varas comuns da Justiça Federal os novos padrões de relacionamento com o jurisdicionado.


8- CONCLUSÃO

O paradoxo do distanciamento versus proximidade é inafastável, pois se refere a duas possibilidades que, conquanto diametralmente opostas, são igualmente necessárias ao exercício da função de julgar.

Assim sendo, ao juiz somente restam duas posições:

1) pode suprimir o paradoxo teoricamente, deixando de pensar nele. Entretanto, a posição é insustentável na prática, já que se encontra situado nesse universo: ele é personificação do Estado Impessoal, com todos os atributos necessários a fazer impor pela sua vontade a vontade do Estado; mas ele também é um ser humano, que nasceu, cresceu, e vai morrer como todos os "não-juízes" que vai julgar.

Ou,

2) pode refletir sobre a questão e se posicionar, melhorando a prestação jurisdicional sob todos os aspectos.

Adotando a segunda posição, o caminho a ser seguido encontramo-lo sinalizado por Aristóteles, na sua Ética a Nicomacos [11]: buscar o meio termo entre os dois pólos insuprimíveis do distanciamento requerido pela imparcialidade e a identificação/proximidade requerida como condição necessária para um julgamento harmônico com a realidade dos autos e que possibilite, ao menos em tese, o reconhecimento no sentido Ricoeuriano.

Nessa postura nada de novo haverá para o juiz, que apenas agirá como já faz na própria vida: buscando encontrar o meio termo não só no ato de julgar, mas no seu posicionamento existencial/jurídico na sua missão de julgar. Para tanto, não vale apenas imbuir-se da abstração normativa que o despersonaliza e transmuta na entidade do Estado-Juiz; precisa assumir sua condição humana, buscando tanto colocar-se no lugar daquele indivíduo (vê-lo não só como um outro, mas como um "outro eu-mesmo" [12], com as mesmas limitações, susceptibilidades, angústias, possibilidades), quanto se inserindo ao máximo no mundo social, tornando-se um juiz do seu tempo.

Diógenes Laércio conta de Tales de Mileto que "uma tarde, saindo de sua casa acompanhado de uma velha senhora, caiu num buraco enquanto olhava para as estrelas; e que havendo reclamado desse acidente, teve que ouvir da senhora: ‘Como podeis vós, Tales, aspirar a ver e compreender o que se encontra no céu, vós que não vos apercebeis do que está sob seus pés?’ " [13].

Para o juiz só resta um caminho: valer-se mais de sua condição humana para enriquecer o ato de julgar do que da mera significação simbólica de sua toga. Continuará munido desta, que deverá envergar com dignidade, pois ainda é Estado e representa o ideal e a instituição Justiça. Mas somente se mantendo no mundo e se colocando no lugar do não-juiz se tornará juiz-indivíduo e agregará as condições para, chegado o momento sublime do ato de julgar [14], voltar a distanciar-se e aplicar o direito ao caso concreto. Alçar a vista para o ideal de justiça sem deixar de atentar para sua condição humana, para não lhe ocorrer de, como Tales de Mileto, olhar apenas para o céu e acabar por ser tragado pelo buraco da injustiça.


Notas

  1. Platão: A República. São Paulo: Editora Nova Cultural, 2000, p.103/104.
  2. Ricoeur, Paul: Leituras 1: em torno ao político. São Paulo: Edições Loyola, 1995, p. 89.
  3. Segundo a Pragmática: todo ato de fala, proposição, descreve uma realidade (função descritiva/aspecto objetivo) para alguém (função interpelativa/aspecto intersubjetivo) na expressão de uma intenção do sujeito falante (função expressiva/aspecto subjetiva).
  4. Ladrière, Jean: La Foi Chrétienne ET Le Destin de La raison. Paris: Les Éditions du Cerf, 2004, p. 95.
  5. Mac Dowell, João A.: Investigação Filosófica sobre Deus – Curso de Filosofia da Religião (apontamentos). Belo Horizonte, Departamento de Filosofia da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, 2010, p. 53.
  6. Ladrière, Jean: La Foi Chrétienne ET Le Destin de La raison. Paris: Les Éditions du Cerf, 2004, p. 87
  7. Mac Dowell, João A.: Investigação Filosófica sobre Deus – Curso de Filosofia da Religião (apontamentos). Belo Horizonte, Departamento de Filosofia da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, 2010.
  8. Ressalto que se trata de posição mantida por respeitáveis defensores, inclusive dentre os próprios juízes.
  9. Nota-se, na prática, uma quase equiparação entre racional e justo.
  10. Ricoeur, Paul: Le juste. Paris: Éditions Esprit, 1995, p. 190/191 (tradução livre).
  11. "Ora: a excelência moral se relaciona com as emoções e as ações, nas quais o excesso é uma forma de erro, tanto quanto a falta, enquanto o meio termo é louvado como um acerto; ... A excelência moral, então, é uma disposição da alma relacionada com a escolha de ações e emoções, disposição esta consistente num meio termo (o meio termo relativo a nós) determinado pela razão (a razão graças à qual um homem dotado de discernimento o determinaria." Aristóteles: Ética a Nicômacos; tradução de Mário da Gama Kury. Brasília: Editora Universidade de Brasília, c1985, 4ª edição, 2001, p. 42.
  12. A propósito: Ricoeur, Paul: Soi-même comme um autre. Paris, Seuil, 1996.
  13. Laërce, Diogène: Les Vies des Plus Illustres Philosophes de l’Antiquité. Paris: Elibron Classics, 2006, p.14. (tradução livre)
  14. Καιρός (kairós): momento certo, oportunidade, momento crítico (The Pocket Oxford Classical Greek Dictionary, Oxford University Press, 2002.)
Assuntos relacionados
Sobre o autor
Bruno Augusto Santos Oliveira

Juiz Federal. Juiz Auxiliar da Coordenação dos Juizados Especiais Federais da 1ª Região (entre fevereiro de 2003 a outubro de 2004). Responsável pela concepção, implantação e gestão (até setembro de 2004) do Juizado Virtual do TRF da 1ª Região. Mestre em Direito Constitucional Comparado pela Cumberland School of Law (EUA). Mestre em Filosofia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia - FAJE.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, Bruno Augusto Santos. O paradoxo do juiz e a necessidade de humanização da justiça. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2598, 12 ago. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17165. Acesso em: 22 dez. 2024.

Leia seus artigos favoritos sem distrações, em qualquer lugar e como quiser

Assine o JusPlus e tenha recursos exclusivos

  • Baixe arquivos PDF: imprima ou leia depois
  • Navegue sem anúncios: concentre-se mais
  • Esteja na frente: descubra novas ferramentas
Economize 17%
Logo JusPlus
JusPlus
de R$
29,50
por

R$ 2,95

No primeiro mês

Cobrança mensal, cancele quando quiser
Assinar
Já é assinante? Faça login
Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Colabore
Publique seus artigos
Fique sempre informado! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos