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Concretização do dano ambiental.

Objeções à teoria do "risco integral"

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24/06/1998 às 00:00
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8. Dano Ambiental: interpretação da lei e exercício de discricionariedade

Os órgãos públicos responsáveis pela defesa da saúde da população e a salubridade do meio ambiente - seja a Prefeitura, o órgão ambiental do Estado ou o IBAMA - produzem atos administrativos mediante subsunção do suporte fático aos conceitos das normas. A competência de declarar que há ou não um "perigo ao ambiente", um "impacto ecológico significativo", uma "degradação ambiental" ou um "risco à saúde pública" é, em primeiro momento, do Poder Executivo na sua função de aplicar a lei. Ao mesmo tempo, quase todas decisões administrativas ligadas ao licenciamento de atividades capazes de causar impactos ambientais representam, na verdade, autorizações por envolverem juízos de conveniência, e por isso, o exercício de discricionariedade administrativa.

No ato da concessão de autorização pública para a realização de uma atividade que onera os recursos naturais, o efeito negativo sobre o meio ambiente, muitas vezes, já é previsível, e os futuros impactos ambientais já são objeto de exercício da discricionariedade administrativa: calcula e avalia-se a relação entre os riscos da futura oneração do meio natural provocados pela atividade e os proveitos oriundos da atividade poluidora. (Veja a respeito: Édis Milaré/ A. Herman Benjamin, Estudo Prévio de Impacto Ambiental, 1993, Edit. RT, p. 67ss.) A produção de cimento, celulose, produtos químicos e petrolíferos, etc. sempre vai causar algum impacto negativo sobre o meio ambiente local ou regional. O emprego de processos e métodos da tecnologia moderna de filtragem e limpeza dos efluentes, das emanações e dos resíduos sólidos é capaz de diminuir esses efeitos, porém nunca vai eliminá-los inteiramente.

A avaliação de um Relatório de Impacto Ambiental (RIMA), obrigatório para o licenciamento de determinados projetos e atividades (art. 2º da Resolução 001/86 do Conselho Nacional do Meio Ambiente - CONAMA), por sua natureza, já representa um processo complexo da valoração dos potenciais efeitos negativos, colocando-os em relação direta com as vantagens do projeto ou da atividade para o meio social da região.

O seguinte exemplo contribui para esclarecer o problema. A Resolução 02/96 do CONAMA, no seu art. 1º, determina que "para fazer face à reparação dos danos ambientais causados pela destruição de florestas e outros ecossistemas, o licenciamento do empreendimento de relevante impacto ambiental, assim considerado pelo órgão ambiental competente com fundamento do EIA/RIMA, terá como um dos requisitos a serem atendidos pela atividade licenciada, a implantação de uma unidade de conservação de domínio público e uso indireto."

Parece difícil alegar que, depois da instalação da unidade de conservação, o efeito negativo que o empreendimento venha a causar a um ecossistema, ainda pode ser qualificado como "dano ambiental" e, portanto, levar à responsabilidade com base do art. 14, § 1º, da Lei 6.938/81.

No entanto, os defensores da "linha dura" teoria do risco integral, até em casos como este, devem exigir a condenação do pretenso "poluidor" a desfazer a degradação ou pagar indenização, visto que eles não querem levar em consideração o fato se a atividade é lícita (autorizada por lei ou ato administrativo) ou não, atitude que, evidentemente, nos levaria a resultados absurdos. Isto prova que, em certos casos, o próprio ato de autorização da atividade ou do empreendimento exclui a atribuição do conceito "dano" aos efeitos negativos sobre o meio ambiente por ele provocados.

Ao mesmo tempo, os próprios padrões de emissão (água, ar, solo, ruídos) elaborados pelo legislador ou órgãos administrativos (por ex. o CONAMA) são resultados de uma avaliação e decisão política dos respectivos órgãos sobre a questão se tais efeitos sobre o meio ambiente podem ser tolerados ou não. Enquanto o emissor fica abaixo dos limites estabelecidos, o seu comportamento é considerado tolerável face aos efeitos positivos os quais as atividades produtivas normalmente provocam, como a geração de emprego e de tributos.

É claro que o licenciamento de uma atividade que causa impactos ambientais nunca é capaz de legalizar possíveis acidentes ecológicos como vazamentos de gás ou substâncias venenosas na água, explosões, queimadas ou qualquer outro acontecimento imprevisto que prejudica os recursos naturais; esses fatos sempre são considerados ilícitos.


9. O papel especial do Poder Judiciário no contexto da Lei 7.347/85

Nesse ponto, vale ressaltar a posição destacada dos tribunais na interpretação da legislação ambiental. Onde uma prefeitura ou um órgão estadual licenciam um projeto ou uma atividade interpretando a legislação ambiental e/ou urbanística de uma determinada maneira e, em seguida, o Ministério Público ou uma Associação da Sociedade Civil discorda dessa interpretação e instaura uma Ação Civil Pública, o juiz enfrenta a situação de ter de verificar se o ato administrativo realmente operou a interpretação correta da norma material.

Porém, a função do Poder Judiciário nesse contexto não para nesse ponto. O Tribunal de Justiça de São Paulo afirmou que não há restrição ao poder revisional dos tribunais sobre o juízo da Administração, quando esta não reconhece os valores de vida referidos na lei 7.347/85. A identificação de um valor paisagístico, estético, histórico ou turístico, segundo o Relator Des. Jorge Almeida, não emerge de mera criação da autoridade administrativa, mas existe no plano da vida; ele arremata: "É de nossa organização política a posição superposta do Judiciário em face dos outros Poderes, sempre que se trate de interpretar e aplicar um texto de lei" (TJSP, 8ª Câmara Civil, Acórdão de 21.3.90, in Revista dos Tribunais, n.° 658, p. 91. e acórdão de 28.3.88).

O mesmo Tribunal não aceitou a alegação de que a construção de um emissário submarino pudesse causar danos à fauna marinha, em virtude do fato que o lançamento do esgoto no mar sem o emissário representaria um dano ambiental muito maior. (TJSP, Ag. 128.735-1, 2.8.1990, in Revista do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, vol. 128, pp. 263/5.)

Diomar Ackel Filho elogia essa possibilidade de identificação de valores do art. 1º da Lei 7.347/85 pelo Poder Judiciário por ser um "evolução dinâmica do Direito, contemplando a discricionariedade na sua devida posição, não como potestas impenetrável do titular do poder, mas como dever jurídico orientado pela legalidade e princípios basilares que direcionam toda a atividade administrativa no rumo das exigências éticas dos administrados" (Discricionariedade administrativa e Ação Civil Pública, in Revista dos Tribunais, n.° 657, 1990, p. 53).

Na mesma linha doutrinária da "identificação direta" - sem ser a prerrogativa dos Poderes Legislativo e Executivo - dos valores difusos do inciso III, art. 1º, Lei 7.347/85 pelo Judiciário anda Theotônio Negrão quando afirma que, para a incidência da Lei da Ação Civil Pública "não é necessário que os atos praticados violem a lei ou ato administrativo" (Código de Processo Civil e legislação processual em vigor, 27. ed., 1996, Edit. Saraiva, p. 668s.; Cleide Previtalli Cais, Proteção constitucional do meio ambiente, in Revista de Direito Público, n.º 89, 1989, p. 125).

Não pode ser diferente o tratamento da identificação do dano ambiental (inciso I do art. 1º da Lei 7.347/85) isto é, a avaliação do bem por sua importância ecológica, o que inclui necessariamente uma ponderação do seu valor em relação a outros valores e interesses protegidos pelas Constituições.

Tem de ficar claro que essa "substituição" de juízo de valores - e, com isso também do mérito da questão - é uma importante inovação dentro do sistema jurídico brasileiro que tradicionalmente limitou ao máximo o poder de revisão de atos discricionários da administração pública pelos tribunais, com base da teoria da divisão dos poderes.

Essa visão tradicional, no Brasil, está sendo ultrapassada, sofrendo influências especialmente por autores conhecedores do sistema germânico de tratamento da questão da discricionariedade, que distingue entre os "conceitos jurídicos indeterminados", cuja interpretação pode ser controlada pelos Tribunais e a discricionariedade em sentido estrito (Ermessen), na parte da escolha dos meios apropriados para a resolução do caso, onde os juízos de conveniência e propriedade do Executivo via de regra não devem ser substituídos pelo Judiciário, salvo em casos de mal-informação sobre os fatos ou constelações excepcionais que somente permitem uma única solução, reduzindo-se a discricionariedade "a zero" (Ermessensreduzierung auf Null). (Cf. Almiro do Couto e Silva, Poder Discricionário no Direito Administrativo Brasileiro, in Boletim de Direito Administrativo, 1991, p. 227; Lúcia Valle Figueiredo, Ação Civil Pública - considerações sobre a discricionariedade..., in: Édis Milaré, ob. cit., p. 334.)

Não é possível, nesse lugar, aprofundar a discussão sobre os problemas ligados ao exercício e o controle da discricionariedade administrativa no sistema jurídico brasileiro. Resta constatar que essa questão deve ser considerada e refletida quando se indaga sobre a existência ou não de um dano ambiental no caso concreto.

Chegamos numa situação mais delicada ainda nos casos onde existe um ato legislativo municipal que legitima a mudança do meio ambiente com seus impactos negativos. Nessas circunstâncias, a representação eleita da população tem realizado uma ponderação política entre os valores ligados à proteção ambiental e, por outro lado, ao funcionamento de serviços públicos, a criação de empregos e geração de tributos, etc.

Surge a pergunta se o Poder Judiciário tem o direito de fazer valer a sua valoração e ponderação dos bens e interesses envolvidos no lugar do Legislativo, que normalmente possui um "espaço de livre conformação" da relação entre os interesses e valores sociais. Essa substituição de decisão legislativa sobre o valor ambiental de um bem parece possível somente em casos extremos, onde o legislador agiu com desrespeito evidente de valores consagrados na Constituição, sob aplicação do princípio de proporcionalidade (cf. Suzana de Toledo Barros, O Princípio de Proporcionalidade e o Controle de Constitucionalidade das Leis restritivas de Direitos Fundamentais, Edit. Brasília Jurídica, 1996; Luís Roberto Barroso, Interpretação e Aplicação da Constituição, 1996, Edit. Saraiva, p. 198. passim). Nessas hipóteses, seria o caminho correto a propositura de ação direta de inconstitucionalidade para controle do ato perante a legislação superior.

O Tribunal de Justiça de São Paulo ponderou que as obras de construção de uma central telefônica não podiam ser consideradas como causadoras de dano ambiental, visto que existia uma "prévia desafetação e competente autorização por lei municipal específica" (TJSP, AC. 100.001-1, 24.111988, in RJTJSP, vol. 117, p. 41). Em outra decisão sobre o assunto, o TJSP declarou que o direito do Ministério Público e das associações civis de agirem em defesa do meio ambiente tinha de ser colocado em relação a outros valores constitucionais, nesse caso a autonomia municipal, deixando claro que o "valor do meio ambiente tinha de ser entendido dentro dos seus devidos limites". (TJSP, Apelação Civil n.º 104.577-1, de 27.10.88). Foi o caso de uma obra pública em Ribeirão Preto (SP), onde uma lei municipal, aprovada por unanimidade, decidiu a supressão de uma parte de um parque para tal fim.

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Vale lembrar que a teoria do risco integral iria exigir a indenização do possível dano causado ao meio ambiente pela realização da obra pública, não levando em conta a importância da lei existente sobre a concretização do próprio conceito de "dano".


10. A relação entre "lesividade" e "ilegalidade" do ato público no âmbito da Ação Popular

Para robustecer a nossa tese da necessidade da consideração do ato público autorizador legal como possível fator excludente da responsabilidade civil por dano ambiental difuso, podemos apontar também à relação de interdependência entre a ilegalidade e a lesividade do ato público impugnado por uma Ação Popular. Segundo o art. 5, LXXIII, da Constituição Federal "qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural [...]." (grifo nosso)

A lei n 4.717/65, por sua vez, determina que "a sentença que, julgando procedente a ação popular, decretar a invalidade do ato impugnado, condenará ao pagamento de perdas e danos os responsáveis pela sua prática e os beneficiários dele[...]" (art. 11). Nesse caminho, pode-se perfeitamente chegar à condenação de um poluidor particular a indenizar um dano ambiental difuso, sendo ele o "beneficiário" do ato público autorizador no sentido da lei supra citada. No sistema da Ação Popular a condenação a pagar indenização é a conseqüência da invalidação do ato público estatal que causou ou possibilitou a lesão do bem público meio ambiente, que normalmente consiste num ato administrativo autorizador de atividade potencialmente poluidora.

Vale ressaltar que a maior diferença entre a Ação Civil Pública e a Ação Popular consiste no fato de que essa última somente pode ser instaurada por um cidadão particular, e não pelo Ministério Público ou associações civis, o que limitou bastante a sua importância prática na defesa do meio ambiente no passado.

As semelhanças entre o objetivo dos dois meios processuais leva à indagação sobre o relacionamento entre o ato público impugnado e a condenação a indenizar o possível dano ecológico. Na doutrina sobre os requisitos de procedência da Ação Popular sempre foi discutida a questão se seria suficiente a lesividade do comportamento estatal impugnado ou se era necessário também a sua ilegalidade.

Durante décadas, prevaleceu o entendimento que era indispensável "o binômio ilegalidade/lesividade", visto que os textos constitucionais anteriores, tratando da Ação Popular, mencionaram expressamente o critério de "nulidade ou anulabilidade" do ato lesivo como condição do cabimento da própria ação. (Rodolfo de Camargo Mancuso, Ação Popular, 2. ed., 1996, Edit. RT, p. 83). Depois da promulgação da Carta de 1988, a doutrina dominante e a jurisprudência continuam exigindo também a ilegalidade do ato como condição para a procedência da ação. (Cf. as referências de Tóshio Mukai, ob. cit., p. 91.)

Existe uma corrente atual que coloca ênfase na lesividade do ato impugnado, visto que o Art. 5, LXXIII, não faz mais referência a sua ilegalidade, alegando esses autores que a ilicitude do ato sempre estaria presente nos casos de lesividade ao patrimônio público, sendo esta um pressuposto daquela, reconhecendo, contudo, as dificuldades de erigir a lesão, em si, à condição de motivo autônomo de nulidade do ato. (Cf. Michel Temer, Elementos de Direito Constitucional, 1992, Ed. RT, p. 234; Celso Bastos, Curso de Direito Constitucional, 1989, Edit. Saraiva, p. 237; José Afonso da Silva, Curso de Direito Constitucional Positivo, 1989, Edit. RT, p. 399.)

Importante ressaltar nesse ponto, que, provocado via Ação Popular, o Judiciário (também) não é autorizado a invalidar opções administrativas ou substituir critérios técnicos por outros que repute mais convenientes ou oportunos, pois essa valorização refoge da competência da Justiça e é privativa da Administração. (Hely L. Meirelles, Mandado de Segurança, Ação Popular, Ação Civil Pública, Mandado de Injunção, "Habeas Data", 13. ed., 1989, Edit. RT, p. 93.) Rodolfo Mancuso (ob. cit., p. 83) lembra que, somente alegando a lesividade, o Judiciário acabaria na incômoda posição de ter que avançar no mérito ou na discricionariedade administrativa do ato sindicado, em busca da afirmada lesividade, quando de correlata ilegalidade não se tivesse queixado o autor popular.

Na base do exposto, podemos observar que, no âmbito da Ação Popular, até hoje não é possível uma condenação a indenização de um dano ambiental difuso quando existir um ato público autorizador legal do mesmo.

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Sobre o autor
Andreas Joachim Krell

professor de Direito da UFAL e da pós-graduação da UFPE, doutor em Direito pela Universidade Livre de Berlim

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

KRELL, Andreas Joachim. Concretização do dano ambiental.: Objeções à teoria do "risco integral". Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 3, n. -1834, 24 jun. 1998. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1720. Acesso em: 18 dez. 2024.

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