Integro a terceira geração de uma família de políticos tradicionais do interior da Paraíba, cuja atividade democrática teve início com o meu avô paterno, que exerceu vários mandatos de vereador e dois de prefeito. Meu pai exerceu quatro mandatos de deputado estadual e uma suplência federal, enquanto a minha mãe já exerce o seu terceiro mandato como prefeita.
Os vínculos familiares e minha formação em Ciências Jurídicas, com especialização em Direito Eleitoral, me permitiram exercer os cargos de Assessor Parlamentar e Assessor Jurídico das Comissões da Assembleia Legislativa da Paraíba por cinco anos. Na sequência, deixei o Poder Legislativo para assumir o cargo efetivo de Analista Judiciário da Justiça Eleitoral Paraibana, onde trabalho há dez anos. Dispensadas as eleições da minha terna infância, acompanhei de perto 17 pleitos eleitorais entre 1974 e 2008, sendo 12 destes nos bastidores da atividade política e 05 nos bastidores da Justiça Eleitoral.
Essa experiência de vida me autoriza escrever um pouco sobre os bastidores da política em nosso país, na ótica privilegiada de quem conhece em profundidade três ângulos distintos das disputas eleitorais.
Nesse prisma, denominei este singelo ensaio de Trilogia da Corrupção Eleitoral, porque destina-se a estudar esta tríplice visão da atividade política neste imenso Brasil, na ótica do eleitor, do candidato e da Justiça.
Relato algumas infrações eleitorais que se repetem na política clientelista dos pequenos municípios, além da dificuldade da Justiça para fiscalizar e coibir práticas abusivas desta espécie.
Neste primeiro ensaio, destaco a visão do eleitor hipossuficiente, acrescentando sugestões para a criação de uma educação em cidadania, que permita a valorização e o fortalecimento da nossa Democracia através do exercício do voto consciente e o combate à corrupção. Para tanto, trago alguns exemplos da criatividade brasileira para burlar a legislação eleitoral, conforme segue:
ÔNIBUS DA BONANÇA
Um ônibus segue lotado de eleitores pelas estradas vicinais de um pequeno município. Logo na primeira fila, temos um atencioso candidato, que se esforça para atender as inúmeras reivindicações de seus pretensos correligionários.
Os carentes pedem de tudo um pouco: colchão, bujão de gás, prótese dentária, material de construção, remédios, exames médicos, cirurgias, um corte de tecido ou uma pequena cesta básica de alimentos, que auxiliem na construção ou reforma de uma casinha, ou mesmo na manutenção de suas famílias, tão desprovidos de recursos financeiros.
A cada parada, o veículo desembarca os eleitores que já foram contemplados, seja com auxílio em dinheiro ou com um bilhete a ser despachado em pontos comerciais do mesmo município ou de cidades vizinhas.
Dessa forma, o habilidoso candidato atende aos pedidos de seus conterrâneos e dificulta a fiscalização da Justiça Eleitoral ou de seus adversários, já que está em constante movimento.
No mesmo percurso, em paradas previamente combinadas com os cabos eleitorais que apóiam a sua candidatura, outros eleitores já aguardam o ônibus da bonança, de forma que um mesmo veículo possa atender cerca de 500 eleitores num único dia, sem deixar rastros do abuso de poder econômico ali praticado.
Nesse ritmo, os infratores da legislação eleitoral terminam o percurso com tranqüilidade, distribuindo dinheiro, material de construção e outros benefícios em troca de votos. Nem todos votarão naquele candidato, porém já se revelam agradecidos pelo "generoso" auxílio e partem para a casa ou comitê do candidato adversário, na esperança de completar a sua colheita.
Nos pequenos rincões do nosso país, a Eleição é a maior safra do eleitor, e por isso ele deixa de trabalhar em seu roçado e passa a colher valores bem maiores que um dia de trabalho nas intermináveis filas dos comitês eleitorais.
Podemos afirmar que se tivesse eleição todo ano, nenhum trabalhador rural precisaria pegar mais na enxada para assegurar a sua feira, uma vez que ela chegaria de presente durante a madrugada ou na bagagem dos próprios candidatos, que fazem romarias constantes em busca de votos, distribuindo de tudo um pouco na zona rural ou nos bairros mais carentes da zona urbana.
Nas áreas menos favorecidas economicamente, o artigo de maior valor no período eleitoral é o voto, e basta o eleitor prometer o voto que já tem direito de cobrar algum presente.
Tudo se pede e tudo se dá. É a safra do eleitor.
VOTOS DA COZINHA
Noutro ponto longínquo do mesmo Estado, a política do assistencialismo prevalece até no dia da eleição. Na cozinha de sua própria casa se instala um determinado candidato, com os bolsos recheados de dinheiro trocado, para barganhar o voto dos indecisos, no dia do pleito eleitoral.
Próximo à sua casa fica uma das seções eleitorais mais movimentadas do município, onde alguns parentes ou cabos eleitorais estão encarregados de arregimentar eleitores indecisos e encaminhá-los para o devido "convencimento", na cozinha do candidato.
Sob pretexto de uma visita ao banheiro, faz-se uma romaria na casa deste candidato, sendo que antes de chegarem na "casinha" precisam passar pela cozinha, onde podem externar suas reivindicações e receber algum presente de última hora, podendo até mudar de voto ou simplesmente desistir de votar num candidato adversário.
Muitos já conhecem o esquema de outras eleições e já procuram a casa dos candidatos antes de votar. Chegam logo dizendo que ainda não votaram, sendo esta a senha para que lhes perguntem o que está faltando? A resposta vem logo em seguida: o dinheiro do lanche, da sandália ou da passagem de volta para o município onde trabalham.
Crianças são orientadas a procurar o candidato de preferência da família e declarar que a mãe deseja votar nele, mas não pode vir votar sem uma sandália nova, já anunciando o preço do voto materno e pedindo que o candidato providencie o transporte para buscar sua fiel eleitora. É a única oportunidade que a família tem para andar de carro novo e não pode ser desperdiçada. O voto tem que ser valorizado de alguma forma, sendo este um bom motivo para reivindicar também o transporte ou o dinheiro da passagem.
BOCA DE URNA REMUNERADA
A boca de urna é organizada pelos partidos políticos ou pelos candidatos a cargos proporcionais mais abastados financeiramente. É a forma mais aberta e dispendiosa de se comprar votos. O candidato monta uma equipe de cabos eleitorais encarregados de arregimentar eleitores simpatizantes de sua campanha. Cada um preenche um cadastro completo, informando inclusive o número do título de eleitor, a seção onde votam e quantos votos podem conseguir no seu bairro ou na sua comunidade, para permitir o mapeamento dos votos e comprovar a sua fidelidade, pelo efetivo exercício do voto.
Os eleitores convidados para a boca de urna já passam a integrar a equipe de trabalho do candidato, recebendo remuneração semanal para participar das atividades de propaganda e assegurar a presença nos comícios organizados pelo partido ou coligação.
No dia da eleição, cada boca de urna recebe uma remuneração adicional entre R$ 20,00 e R$ 50,00 (vinte e cinqüenta reais) e precisa vestir uma camiseta do candidato ou uma roupa da cor do seu partido, além de distribuir material publicitário e pedir votos a todos os conhecidos que encontrar pela frente.
Essa estratégia eleitoral revela-se um verdadeiro emprego temporário, cujo período de prestação de serviços equivale ao período eleitoral. Além disso, permite a compra de votos em larga escala, disfarçada de boca de urna para fins publicitários, sendo que todos os participantes foram cooptados em troca de uma remuneração semanal em dinheiro e da promessa de um emprego ou de outro benefício futuro, caso confirmada a vitória do seu candidato.
A boca de urna remunerada é um caso exemplar de abuso de poder econômico, já que o único limite é a condição financeira do candidato ou do seu partido político, de forma a complementar os votos necessários para assegurar a vitória a todo custo.
Estima-se que um parlamentar que precise de 20.000 votos para se eleger deputado estadual, por exemplo, deve contratar cerca de cinco mil bocas de urna para assegurar sua permanência na disputa eleitoral, sob pena de ser ultrapassado por seus concorrentes no dia do pleito.
DOAÇÕES EM TROCA DE VOTOS
Equipes de cabos eleitorais são estrategicamente remunerados para visitar eleitores em bairros ou comunidades carentes e identificar sua principais necessidades. Divulgam as propostas dos candidatos, distribuem material publicitário, colam retratos, marcam reuniões ou comícios e anotam as principais reivindicações da comunidade.
Depois dessa primeira visita, os cabos eleitorais discutem com o candidato o que ele deve falar em seu discurso naquele local e definem uma estratégia de investimento, identificando onde seria mais vantajoso investir para conquistar um maior número de votos possível, de acordo com o seu orçamento de campanha, que nunca é declarado em sua totalidade.
Orientado por estas visitas iniciais e por informações de pesquisas quantitativas e qualitativas, o candidato fica bem informado sobre o que deve falar e como pode conquistar mais votos naquela comunidade, montando uma estratégia de investimento que só pode ser cumprida se conseguir doações suficientes para a sua campanha. E para tanto, não importa de onde o dinheiro venha, contanto que chegue em tempo hábil para assegurar a compra de votos.
Muitos cadernos são preenchidos com pedidos de todo tipo: estrada, poço artesiano, construção de banheiros, reformas ou construção de casas populares, além de outros pedidos individuais como óculos, exames de saúde mais complexos, próteses dentárias e muitos outros, que podem ou não se transformar em votos, de acordo com a possibilidade do candidato atender ou não as exigências da comunidade.
No transcorrer desta grande movimentação, os pedintes costumam transmitir os seus pleitos a diversos candidatos, realizando um verdadeiro leilão de votos. Declaram-se dispostos a votar no primeiro que atender suas reivindicações ou dividir os votos da família entre os candidatos que arregimentarem o maior número de benefícios.
Nessa regra do assistencialismo eleitoral que domina os nossos sertões, não vale a simples promessa do benefício. O pedido tem que ser atendido até o dia do pleito, sob pena do eleitor não votar em ninguém ou mudar sua intenção de voto para o candidato que realmente não tem condições de doar nada a ninguém.
Ou seja, vota-se de graça na oposição, mas pra votar no candidato do governo tem que ter algum benefício, pois a eleição é a safra do eleitor e o detentor de mandato eletivo deve dividir com os eleitores um pouco do que já conseguiu ganhar na sua carreira política.
Essa é a ótica do eleitor sobre a compra ou venda de votos, notadamente dos mais carentes. São as regras do jogo político neste imenso Brasil, que exige muito dinheiro dos que pretendem disputar um cargo eletivo.
Com efeito, as hipóteses de abuso de poder econômico ou corrupção eleitoral descritas acima são corriqueiras nos processo judiciais que tramitam na Justiça Eleitoral brasileira, existindo ainda um grave complicador, que é a dificuldade de se chegar a verdade real dos fatos denunciados.
De um lado, encontramos cidadãos que vendem e compram votos. De outro lado, encontramos os que vendem o depoimento, para afirmar em juízo a quem venderam o seu voto e como tudo aconteceu.
Analisando os precedentes judiciais, encontramos casos de cooptação e corrupção de testemunhas tendenciosas, contratadas para relatar o que viram ou inventar o que efetivamente não assistiram, tudo em troca de dinheiro ou de um bom emprego após o resultado positivo de uma investigação judicial eleitoral.
Seria uma forma de prorrogar o contrato temporário de prestação de serviços, passando de cabo eleitoral ou simples eleitor corrompido a testemunha remunerada por vários anos, enquanto durar a demanda judicial, assegurando-se à testemunha o acesso a um bom cargo de confiança ou contrato com a administração pública, caso os denunciantes logrem êxito na demanda judicial e consigam ascender ao Poder.
CONCLUSÃO
Em meu sentir, esta é a ótica do eleitor brasileiro sobre a problemática da compra ou venda de votos. Há os que vendem o voto por uma cesta básica e os que negociam apoio político em troca de muito dinheiro, de um bom emprego ou de cargos de comando no governo.
Sendo assim, não podemos condenar um eleitor hipossuficiente por essa postura de buscar um benefício imediato e direto em troca do seu voto:
Não, enquanto assistirmos todos os dias a imprensa nacional noticiando escândalos de corrupção e enriquecimento ilícito às custas do erário público, por atos de improbidade administrativa muitas vezes impunes ou sem uma solução imediata.
Não, enquanto tivermos notícia de profissionais liberais que vinculam o apoio político para eleição da direção dos respectivos órgãos de classe em troca do pagamento de anuidades vencidas.
Não, enquanto representantes do povo continuarem abusando do poder impunemente, desviando dinheiro público através do superfaturamento de contratos com a Administração Pública para financiar o caixa 2 das campanhas eleitorais ou o luxo dos dirigentes de partidos políticos.
Podemos afirmar que o problema da corrupção em nosso país é cultural e a solução exigirá tempo e compromisso das instituições democráticas, notadamente dos órgãos responsáveis pelo desenvolvimento da educação.
Como avanço imediato na seara eleitoral, a sociedade civil organizada precisa interceder junto ao Congresso Nacional para reformar a legislação eleitoral no sentido de assegurar a realização de novas eleições sempre que ocorrer a cassação de mandatos para o Poder Executivo, porém sem esquecer a aplicação de penas alternativas para os eleitores que vendem os seus votos, como por exemplo a prestação de serviços à comunidade.
De início, esse novo procedimento inibiria a litigância temerária, uma vez que ainda que a denúncia seja julgada procedente, sempre haverá uma nova eleição, jamais se entregando o exercício do poder a quem não ganhou as eleições.
Por outro lado, inibiria também novas ações de corrupção eleitoral, já que o político entenderá que se ganhar de forma ilícita não manterá o seu mandato, enquanto o eleitor saberá que se vender o voto também será punido pela Justiça, por ser tão corrupto quanto àquele que pagou pelo seu sufrágio.
Não podemos negar que estamos evoluindo, com a cassação ou prisão de membros do Poderes Executivo, Legislativo ou Judiciário, além da prisão de grandes empresários envolvidos em escândalos financeiros de todo tipo.
Porém a corrupção é uma doença crônica do nosso povo, alcançando cidadãos de todas as classes e níveis culturais, o que exige a implementação de uma educação básica que valorize a ética e o combate à corrupção, além da aprovação de diversas reformas de base em nossa legislação, tão necessárias ao desenvolvimento sustentável do nosso país, dentre as quais destacamos:
Reforma da legislação eleitoral e criminal, para fortalecer a representação política partidária e combater com maior eficiência a impunidade por crimes de corrupção e improbidade administrativa;
Reformas agrária e tributária, para assegurar uma melhor distribuição de terras e de renda, fomentando a criação de empregos e a melhoria da qualidade de vida da nossa população, no campo e na cidade.
Valorização do ensino público, erradicação do analfabetismo e fortalecimento das instituições democráticas através da renovação radical dos representantes políticos, o que somente pode ser alcançada pela força do voto livre e consciente.
Em síntese, a manutenção do Estado Democrático de Direito exige mudanças urgentes na legislação de combate à corrupção e um investimento radical na área de educação e cultura do nosso povo, que permita o surgimento e fortalecimento de uma cultura focada na ética e no combate à corrupção.
No século XX, nossa democracia evoluiu para assegurar o voto igualitário e universal, o acesso às urnas do negro, da mulher e do analfabeto. Agora, precisamos ensinar aos nossos jovens o verdadeiro valor do voto, com lições de ética e cidadania que perdurem para sempre.