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Adaptabilidade, cooperação e ônus da prova: por uma teoria dinâmica da responsabilidade probatória

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18/08/2010 às 13:52
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4. Ônus probatório e a situação de incerteza:

Neste modelo constitucional do processo civil (neoprocessualismo), o mecanismo para a prestação jurisdicional é pautado na "busca da verdade" como forma de qualificar a justiça do caso concreto. Sabe-se que a verdade, como essência, é inatingível no processo; ora, o que já passou, passou; não há como reconstruir. Diante disso, com a prova não se busca uma verdade real, [31] não se pretende a reconstrução dos fatos, mas o convencimento dos demais sujeitos do processo. [32] Assim, a verdade, em que pese utópica, deve ser perseguida (não com a ilusão de sua realização) a fim de maximizar a certificação pelas partes, sem olvidar a maior legitimação da justiça proporcionada pelo Estado.

Neste quadro, o ônus processual surge como "a necessidade da prática de um ato para a assunção de uma específica vantagem própria ao longo do processo e, na hipótese oposta, que haverá, muito provavelmente, um prejuízo para aquele que não praticou o ato ou o praticou insuficientemente". [33] Ressalte-se, destarte, que o eventual revés pela falta da realização deste imperativo não é elemento indispensável para caracterizar o ônus. Nesse sentido, inclusive, esclarece o professor Roland Arazi: "no siempre el incumplimiento de una carga ocasiona perjuicio: puede ser que no se conteste la demanda y, no obstante, la pretensión del actor sea rechazada o que no se produzca determinada prueba y ello no tenga ninguna consecuencia sea porque la prueba se produjo por iniciativa de la contraria o del juez o porque, en definitiva, resultó innecesaria" [34].

Na literatura processual, muitas discussões giram em torno do ônus. A doutrina, neste sentido, tem o diferenciado dos demais imperativos jurídicos. Assim, inclusive, Arruda Alvim esclarece que a "obrigação pede uma conduta cujo adimplemento ou cumprimento traz benefícios à parte que ocupa o outro pólo da relação jurídica. Havendo omissão do obrigado, este será ou poderá ser coercitivamente obrigado pelo sujeito ativo. Já em relação ao ônus, o indivíduo que não o cumprir sofrerá, pura e simplesmente, em regra, as consequências negativas do descumprimento que recairá sobre ele próprio" [35]. Complementando, afirma a possibilidade de a obrigação possuir valor, podendo ser convertida em pecúnia, o que não ocorre com o ônus. Por fim, demonstra o autor um terceiro elemento do gênero dos imperativos: o dever (não é conversível em pecúnia e tem como característica a perpetuidade, o que não ocorre com o ônus nem com as obrigações).

"En el derecho romano, en el antiguo proceso formulario, el juez, cuando no estaba convencido de la verdad de los hechos controvertidos podía eludir el pronunciamiento afirmando ‘no lo veo claro’, en cuyo supuesto no pronunciaba sentencia y absolvía la instancia." [36] Em tempos hodiernos, contudo, pela vedação ao non liquet, não se admite o "não julgamento". Neste diapasão, fez-se imprescindível estabelecer regras para adequar esta situação: ora, é perfeitamente possível que o magistrado chegue à fase de julgamento ainda com dúvida. Por isso, estabeleceram-se as regras do ônus da prova de modo que "não se trata de regras que distribuem tarefas processuais (regras de conduta); as regras de ônus da prova ajudam o magistrado na hora de decidir, quando não houver prova do fato que tem de ser examinado (regra de julgamento). (...) O sistema não determina quem deve produzir a prova, mas sim quem assume o risco caso ela não se produza." [37] Por fim, à guisa de esclarecimento, cumpre evidenciar que o art. 333, CPC, estabelece que o ônus da prova incumbe: ao autor, quanto ao fato constitutivo do seu direito; ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor.

O notável Luiz Guilherme Marinoni, entretanto, esclarece que as regras do ônus da prova não servem somente para viabilizar o julgamento no estado de dúvida, ao revés, funciona também como instrumento útil na fase de convencimento (antes do julgamento, à obviedade). Isso porque existem situações do próprio direito material que exigem uma profundidade do convencimento judicial maior ou menor. Não há como admitir, por exemplo, a mesma intensidade de conformação numa demanda que versa sobre um acidente de veículo automotor e noutra sobre as lesões pré-natais, "quando não há racionalidade em exigir do autor, para procedência da ação ressarcitória, a prova de que a doença do recém-nascido deriva do acidente que a sua mãe sofreu quando em gestação". [38]

Como vimos, a verdade é uma mera utopia, inatingível, e, ipso facto, o magistrado deve buscar a comprovação daquilo que é imprescindível para o esclarecimento do direito material em litígio. Desse modo, está desincumbido de buscar comprovação de fatos tidos por impossível. Portanto, "o convencimento judicial somente pode ser pensado a partir do módulo de convencimento próprio a uma específica situação de direito material, pois o juiz somentepode se dizer convencido quando sabe até onde o objeto do seu conhecimento abre oportunidade para o convencimento." Por isso, para o autor, "como o convencimento varia de acordo com o direito material, a regra do ônus da prova também não pode ser vista sempre do mesmo modo, sem considerar a dificuldade de convicção própria ao caso concreto." [39]

Admite-se, então, em razão do confronto de direito substancial discutido, que o juiz julgue com base na verossimilhança, devida a impossibilidade da certeza. Nesse caso, não se pode sustentar que estará julgando em dúvida. Tanto isso é verdade que não se utilizará dos dispostos acerca do ônus da prova. Na realidade, o próprio direito material impõe que a verossimilhança basta para o julgamento daquela lide. "O juiz que decide com base na verossimilhança não está em estado de dúvida; ao contrário, ele está convencido de que a verossimilhança basta diante das circunstâncias do caso concreto" [40].

Insta advertir também que, neste modelo neoconstitucionalista, afirmar que ao juiz não é dado buscar os instrumentos hábeis a solucionar suas dúvidas, isto é, retirar-lhe qualquer poder instrutório, é um equívoco. Saliente-se que em tempos do processo marcado por ideais iluministas – o juiz como bouche de la loi – as regras do ônus da prova eram consideradas como limitação ao exercício do magistrado [41]. Essa atuação pró-ativa, "busca da verdade" (inatingível), supre, inclusive, eventuais desigualdades existentes no processo, não havendo como falar, neste caso, em falta da isenção necessária. "Parcial é o juiz que, sabendo que uma prova é fundamental para a elucidação da matéria fática, queda-se inerte". [42] Ora, o processo, como ramo do direito público [43] superior aos interesses restritos das partes, busca a justiça do caso concreto e esta é qualificada pela "máxima verdade possível". Diante disso, as provas visam, como vimos, qualificar a justiça firmada pelo Estado de sorte que o juiz, também atingido pelo contraditório, "tem interesse em que a atividade por ele desenvolvida atinja determinados objetivos, consistentes nos escopos da jurisdição". [44] Portanto, nada obsta (ao contrário, recomenda-se) a postura ativa do magistrado na colheita das provas concomitantemente com as partes.


5. A importância da teoria dinâmica do ônus da prova na consecução da efetividade jurisdicional:

Tradicionalmente, a responsabilidade para a comprovação das alegações está disciplinada de forma apriorística na legislação ordinária. Sendo assim, como vimos, o Código de Processo Civil estabeleceu que ao autor cabe demonstrar os fatos constitutivos e ao réu, os impeditivos, modificativos ou extintivos do direito do autor [45]. Diante disso, a doutrina tem definido o fato constitutivo como aquele gerador do direito afirmado pelo autor em juízo; extintivo, como o que retira a eficácia do constitutivo, fulminando o direito do autor; o impeditivo, por sua vez, é o fato obstativo da produção de efeitos decorrentes do fato constitutivo; e, por fim, o modificativo busca apenas alterá-lo [46].

Todavia, em certas situações é possível que a produção dessa prova seja considerada diabólica. Para Alexandre Freitas Câmara, "prova diabólica é expressão que se encontra na doutrina para fazer referência àqueles casos em que a prova da veracidade da alegação a respeito de um fato é extremamente difícil, nenhum meio de prova sendo capaz de permitir tal demonstração. Também a jurisprudência emprega a expressão, normalmente, para fazer referência à prova de algo que não ocorreu (equiparando, assim, a prova diabólica e a prova negativa)." [47] Ocorre, entretanto, que esta última acepção utilizada pela jurisprudência deve ser vista com a devida adequação pois admitem-se fatos positivos de impossível ou dificílima prova e, ao reverso, fatos negativos também podem ser facilmente comprovados.

Sendo assim, nos casos da prova diabólica para uma das partes, há de se admitir a inversão deste ônus tendo em vista a maior facilidade de sua produção pela outra. Trata-se da teoria dinâmica do ônus da prova. Segundo a doutrina, as primeiras palavras sobre essas idéias foram proferidas pelo inglês Jeremías Bentham, por volta de 1823 [48]. Sucede, todavia, que o seu aprofundamento foi realizado pela literatura processual argentina. Portanto, "a denominada teoria das cargas processuais dinâmicas, se não concebida por Jorge W. Peyrano, ilustre jurista argentino, foi, sem dúvida, por ele desenvolvida (...)". [49]

Esta "tese, aparentemente singela, rompe com a concepção ‘demasiado rígida y apriorística’ da doutrina clássica, que adotava uma ‘visión exclusivamente estática’ da questão relativa às regras da distribuição do ônus da prova". [50] Isso porque deixa de levar em consideração, para todos os casos, a parte ou o fato apresentado. Nessa esteira, a prova seria produzida pela parte com maiores condições de desincumbir-se do ônus probatório sendo despiciendo o pólo em que se encontra e a natureza do fato alegado: se constitutivo, impeditivo, modificativo ou extintivo. Assim, inclusive, Antonio Janyr Dall’agnol Junior afirma que "pela teoria da distribuição dinâmica dos ônus probatórios, portanto, (a) inaceitável o estabelecimento prévio e abstrato do encargo; (b) ignorável é a posição da parte no processo; (c) e desconsiderável se exibe a distinção já tradicional entre fatos constitutivos, extintivos etc. Revela isto sim, (a) o caso em sua concretude e (b) a ‘natureza’ do fato a provar - imputando-se o encargo àquela das partes que, pelas circunstâncias reais, se encontra em melhor condição de fazê-lo." [51]

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É importante enfatizar, contudo, que existem requisitos para a utilização desta distribuição dinâmica de forma que não deve ser utilizada açodadamente [52]. Destaca-se, então, que tal medida é excepcional. Enfatize-se: "a distribuição dinâmica do ônus da prova não é regra, mas exceção" [53]. Além disso, conforme salienta Marcelo Sebastián Midón, não se deve deslocar todo o ônus probatório, apenas parcialmente:

El desplazamiento del onus probandi que importa la aplicación de esta doctrina funciona, de ordinario, respecto de determinados herechos y circunstancias y no de todo el material fáctico. Ello implica que tal aplicación no acarrea un desplazamiento completo de la carga probatoria sino tan solo parcial, conservándose en cabeza de la otra parte la imposición de ciertos esfuerzos probatorios. [54]

Não fosse assim, com o deslocamento total desta responsabilidade, poder-se-ia correr o risco, ao transferi-la, de tornar a prova diabólica para a parte que recebera este ônus excessivo. Nesse caso, clarividente a desnaturação da essência desta teoria. Portanto, "não se poderá, de modo nenhum, dinamizar o ônus da prova se a atribuição do encargo de provar acarretar uma probatio diabolica reversa, isto é, incumbir a parte contrária, a princípio desonerada, de uma prova diabólica" [55].

Além disso, é importante destacar que, para a utilização desta forma de inversão do ônus probatório em razão das circunstâncias do direito material discutido, o magistrado, tendo em vista o princípio do devido processo constitucional, do contraditório e ampla defesa, deverá decidir pela aplicação desta doutrina em tempo oportuno, maximizando a possibilidade de a parte desincumbir-se de tal atribuição. Trata-se, portanto, de regra de atividade e, não, de julgamento [56].

Convém, ainda, ressaltar que no Direito do Consumidor não há uma regra específica de distribuição do ônus da prova. Deste modo, aplica-se a regra geral do CPC prevista no art. 333. Todavia, em situações excepcionais, permite-se a inversão do ônus da prova: ope legis (arts. 12, §3°, I e II; 14, §3, I e 38, CDC) ou ope iudicis (art. 6°, VIII, CDC). A primeira é aquela determinada pelo legislador de modo que não há margem de liberdade para o julgador. Deste modo, verificada a hipótese de incidência legal é obrigatória a inversão. Na outra, não há uma determinação do legislador para que haja a inversão diante de certa hipótese. Aqui, o legislador estabelece determinados requisitos que, presentes, possibilitarão ao magistrado a inversão. Diante disso, verifica-se que o legislador consumerista adequou aquelas teorias de forma que a doutrina da distribuição dinâmica do ônus da prova, para tais demandas, encontra-se positiva, inclusive, no sistema.

Sendo assim, admite-se, na seara da defesa do consumidor, por expressa disposição legal, a possibilidade de o magistrado inverter o ônus da prova. Nestes casos, em razão da verossimilhança da alegação e da hipossuficiência do consumidor, o encargo da comprovação do fato (não) constitutivo poderá ser do fornecedor/réu.

Frise-se, por importante, que a previsão expressa no Código de Defesa do Consumidor, aplicável, à obviedade, somente às demandas desta natureza, não tem o condão de afastar a utilização desta doutrina em outros casos. Como nos ensina, mais uma vez, Luiz Guilherme Marinoni, "não existe motivo para supor que a inversão do ônus da prova somente é viável quando prevista em lei. Aliás, a própria norma contida no art. 333 não precisaria estar expressamente prevista (...). Recorde-se que no ordenamento alemão não contém norma similar à do art. 333, e por isso a doutrina alemã construiu a Normentheorie." [57]

Como vimos (nota de rodapé n. 17), Daniel Mitidiero, em seu estudo sobre Colaboração no Processo Civil, afirma que a regra estabelecida no art. 333, nestes casos, não incidirá por inadequação. Isso porque, in casu, "não estando atendida a ‘razão motivadora’ da regra, essa tem a sua incidência afastada pelo postulado normativo aplicativo da razoabilidade (na acepção de razoabilidade como eqüidade)" [58]. Por outro lado, sem discordar do autor, apenas partindo de outras premissas, fica evidente a inconstitucionalidade circunstancial da norma processual já que, nas hipóteses admissíveis da distribuição dinâmica, a aplicação do art. 333, CPC, viola inúmeros direitos fundamentais processuais, notadamente o devido processo constitucional.

Não se tem dúvida, por conseguinte, que a atribuição da responsabilidade probatória para aquele com maiores condições de provar é uma doutrina que se harmoniza com a busca da efetividade jurisdicional no afã de maximizar a justiça do caso concreto ao incentivar a maior produção probatória. Ora, "hoy, con el triunfo de la visión publicista o solidarista del Derecho Procesal, en cuya virtud el proceso supera el mero interés de las partes, acentuando la necesidad de contar con la efectiva cooperación de los litigantes y, por consiguiente, reclamando un rol más activo del demandado, ya no basta que las reglas del onus probandi permitan solucionar la litis, porque necesitamos, también, que habiliten una solución justa, o al menos lo menos injusta posible" [59].

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Sobre o autor
Marcel Santos Mutim

Advogado. Pós-graduando em Direito do Estado pelo JusPodivm e Faculdade Baiana de Direito

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MUTIM, Marcel Santos. Adaptabilidade, cooperação e ônus da prova: por uma teoria dinâmica da responsabilidade probatória. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2604, 18 ago. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17208. Acesso em: 26 abr. 2024.

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