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A natureza jurídica da vulnerabilidade nos novos delitos sexuais

19/08/2010 às 07:34
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A Lei nº 12.015, de 7 de agosto de 2009, provocou intensas alterações no Direito Penal, entre elas, a que provocará maior controvérsia será a natureza jurídica da vulnerabilidade.

A novatio legis criou no nosso ordenamento jurídico o delito "estupro de vulnerável", que em sua forma simples tem a pena de reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos.


O conceito de pessoa vulnerável

O Direito Penal não pode conviver com conceitos abstratos, pois não permite interpretação extensiva e nem o uso da analogia in malam partem. Portanto, o conceito de "vulnerável" deverá ser nos termos da lei, ou seja, bem objetivo.

O legislador criou dois conceitos para vulnerável:

1. Vulnerável para os fins de configuração do delito de estupro (art. 217-A)

a) o menor de 14 (catorze) anos.

b) toda pessoa que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato sexual ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência.

2. Vulnerável para os fins de configuração do delito de favorecimento da prostituição ou outra forma de exploração sexual de vulnerável (artigo 218-B do CP)

a) alguém menor de 18 (dezoito) anos;

b) alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, facilitá-la, impedir ou dificultar que a abandone:

Em realidade, no conceito de vulnerável para os fins do estupro, o legislador apenas estipulou as antigas hipóteses que a lei considerava casos de presunção de violência, a saber:

Presume-se a violência, se a vítima:1

a) não é maior de 14 (catorze) anos;

b) é alienada ou débil mental, e o agente conhecia esta circunstância;

c) não pode, por qualquer outra causa, oferecer resistência.


Controvérsia Doutrinária e Jurisprudencial

Havia grande e histórica controvérsia doutrinária sobre a natureza jurídica da presunção de inocência.

Quatro teorias se destacavam:

1ª Teoria: Absoluta

Interpretando o art. 272. do Código de 1890, que, na época, previa a innocentia consilii dos menores de 16 anos, a doutrina brasileira, na sua ampla maioria, inclinava-se por reconhecer, no caso, a presunção juris et de jure, podendo ser citados, dentre outros defensores desse entendimento, Chrysolito de Gusmão, Viveiros de Castro, Galdino Siqueira, Hungria, João Vieira, Bento de Faria, Paulo Teixeira e Macedo Soares. Segundo os defensores dessa posição, as qualidades infracitadas não afastam a presunção de violência, pois a presunção é absoluta, não se admitindo prova em contrário.

Segundo os defensores dessa posição, as qualidades infracitadas não afastam a presunção de violência, pois a presunção é absoluta, não se admitindo prova em contrário.

a) A presunção de violência é absoluta, prevalecendo, mesmo que a vítima seja namoradeira (RT: 446:350).

b) A presunção de violência é absoluta, prevalecendo, mesmo que a vítima já seja desvirginada (RT: 526:307).

c) A presunção de violência é absoluta, prevalecendo, mesmo que a vítima seja leviana (RT: 482:319).

d) A presunção de violência é absoluta, prevalecendo, mesmo que a vítima seja experiente sexualmente (STF: RECrim 116:649).

2ª Teoria: Relativa

Ensinava o saudoso Mirabete2 que:

Sempre se discutiu na doutrina a natureza da presunção pela idade da vítima. A maioria dos doutrinadores, porém, inclina-se pela presunção relativa (juris tantum), mas há ainda defensores da presunção absoluta (juris et de jure). É praticamente pacífico na jurisprudência que a presunção é relativa, admitindo-se prova em contrário, ou seja, de que a menor de quatorze anos já é experiente em matéria sexual, sem moral etc., excluindo-se a presunção. Exige-se, assim, a innocentia consilii do sujeito passivo, ou seja, a sua insciência em relação a fatos sexuais. Mas não exclui a presunção de violência o fato de não ser mais virgem a menor.

3ª Teoria: Mista

Nucci3 defende uma presunção mista, ou seja: Presunção absoluta para a maioria dos casos, especialmente para as pessoas menores de 12 anos; relativa para as situações excepcionais, voltadas aos adolescentes, pessoas maiores de 12 anos.

4ª Teoria: Constitucionalista

Cernicchiaro 4 leciona:

O Direito Penal moderno é Direito Penal da culpa. Não se prescinde do elemento subjetivo. Intoleráveis a responsabilidade objetiva e a responsabilidade pelo fato de outrem. A sanção, medida político-jurídica de resposta ao delinquente, deve ajustar-se à conduta delituosa. Conduta é fenômeno ocorrente no plano da experiência. É fato. Fato não se presume. Existe ou não existe. O Direito Penal da culpa é inconciliável com presunções de fato. Que se recrudesça a sanção quando a vítima é menor, ou deficiente mental, tudo bem. Corolário do imperativo da Justiça. Não se pode, entretanto, punir alguém por crime não cometido. O princípio da legalidade fornece a forma e o princípio da personalidade (sentido atual da doutrina), a substância da conduta delituosa. Inconstitucionalidade de qualquer lei penal que despreze a responsabilidade subjetiva.


Posicionamento Majoritário na Doutrina

Antes da entrada em vigor da Lei nº 12.015, de 7 de agosto de 2009, a doutrina dominante emprestava um valor relativo, e não absoluto, à presunção. Era posição de Delmanto, Hungria, Noronha, Damásio, Mirabete, Paulo José da Costa Jr., Bitencourt, Fragoso, Alberto Silva Franco, Regis Prado, Pierangeli, Marcio Bartoli, entre outros.


Minha Posição

Direito Penal da culpa é inconciliável com presunções absolutas. Portanto, a vulnerabilidade é relativa, porque, na época atual, estaríamos hipocritamente abstraindo a moderna realidade ao negarmos, de forma absoluta, que uma pessoa com idade inferior a 14 anos seja absolutamente vulnerável e não tenha, repito, de forma absoluta, a mínima idéia do que seja uma relação sexual.

Evidentemente, devemos aplaudir e defender como necessária a boa intenção do legislador ao penalizar com maior vigor os delitos sexuais cometidos contra vulneráveis. Afinal, redes de pedófilos se espalham como verdadeiro câncer na nossa sociedade. E também devemos considerar o fato de que uma relação sexual com uma criança de cinco anos de idade, por exemplo, é tão perversa quanto um estupro cometido em uma mulher adulta mediante violência real.

O que estou defendendo é uma questão jurídica, pois, ao meu sentir, caso a punição advenha apenas do contato sexual com a pessoa vulnerável, estaríamos consagrando em nosso direito a temerária responsabilidade penal objetiva, em que o agente ativo responde pelo delito independentemente de ter agido com dolo ou culpa.

No nosso Direito Penal moderno a responsabilidade é subjetiva, dolo e culpa devem ser provados, sendo totalmente inadmissível a presunção de culpabilidade.

Assim, é o entendimento das nossas altas cortes:

Posição dominante do STF: O sistema jurídico penal brasileiro não admite imputação por responsabilidade penal objetiva. (STF - Inq. 1.578-4-SP)

Posição dominante do STJ: (...) Inexiste em nosso sistema responsabilidade penal objetiva. (STJ HC 8.312-SP – 6a T 4.3.99 – p. 231).

Para não estipularmos o temível instituto da imputação por responsabilidade penal objetiva, o conhecimento da circunstância vulnerável deve ser inserido a todas as hipóteses de vulnerabilidade. Portanto, a leitura do novo artigo 217-A do Código Penal deve ser realizada da forma infracitada:

a) Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos (conhecendo o agente ativo esta circunstância).

b) Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato (conhecendo o agente ativo esta circunstância).

c) Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com alguém que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência (conhecendo o agente ativo esta circunstância).

Ainda assim, o conceito deve ser relativo, pois, caso a vulnerabilidade seja absoluta, não poderemos discutir a conduta dolosa ou culposa, e poderemos até dizer: "Quem tiver contato sexual com a pessoa vulnerável é presumidamente culpado."

Sendo a vulnerabilidade um conceito absoluto não é possível produzir provas em contrário, fato que viola drasticamente os princípios:

a) Do contraditório, ampla defesa, art. 5°, inciso LV, da Constituição Federal, in verbis: "Aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes".

Quais os meios de defesa se a vulnerabilidade é absoluta?

b) Da não culpabilidade antecipada, art. 5°, inciso LVII, da Constituição Federal, in verbis: "Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória".

A vulnerabilidade absoluta não gera culpabilidade antecipada?

Para as duas indagações supracitadas só há uma resposta:

Não há meios e nem a defesa é ampla, pois, provando a autoria e não sendo o caso de erro de tipo escusável, temos uma culpabilidade comprovada, leia-se: culpabilidade antecipada comprovada.

Os princípios supracitados e a presunção que não admite prova em contrário, são noções antitéticas, portanto, são repelentes e não podem estabelecer uma convivência harmônica.

Por isso, o único fato que devemos considerar como absoluto é que a Constituição Federal de 1988 não recepcionou e expurga do nosso ordenamento jurídico toda e qualquer presunção juris et de jure.

A vulnerabilidade absoluta ainda acarreta dois sérios problemas:

Primeiro: atenta contra o princípio da paternidade responsável.

Imagine que uma mulher com 13 anos esteja grávida e o pai negue a paternidade. Você acha que o suposto pai vai querer fazer o exame de DNA para depois ser condenado em uma pena que varia entre 8 e 15 anos de reclusão?

Tudo bem, mas com a negativa ao exame de DNA aplicaremos a Súmula 301 do STJ: " Em ação investigatória, a recusa do suposto pai a submeter-se ao exame de DNA induz presunção juris tantum de paternidade."

Julgada procedente a investigação de paternidade, tal prova não pode ser usada para confirmar a autoria, pois só houve uma presunção juris tantum de paternidade com seus evidentes efeitos cíveis.

Segundo: atenta contra o princípio da harmonia familiar.

Imagine que uma mulher com 13 anos esteja grávida e o pai quer assumir a paternidade e casar com seu grande amor.

Conforme o art. 1.520. do Novo Código Civil:

"Excepcionalmente, será permitido o casamento de quem ainda não alcançou a idade núbil (art. 1.517), para evitar imposição ou cumprimento de pena criminal ou em caso de gravidez ."

Em contato com a habilitação de casamento, o Promotor de Justiça, em atendimento ao princípio da obrigatoriedade da ação penal, terá que requerer a instauração de inquérito policial e futuramente terá que denunciar o ator da gravidez, para que ele possa ser condenado em uma pena mínima de 8 (oito) anos de reclusão.

E nem pense que o casamento da vítima com o autor do delito extingue a punibilidade, pois o inciso VII do Código Penal, que autorizava tal extinção, foi revogado pela Lei nº 11.106/2005.

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Também não pense que o representante legal da vítima pode conceder o perdão do ofendido, pois perdão é instituto da ação penal privada e a Lei nº 12.015, de 7 de agosto de 2009, tornou o estupro de vulnerável crime de ação penal pública incondicionada, vide art. 225, in verbis:

Nos crimes definidos nos Capítulos I e II deste Título, procede-se mediante ação penal pública condicionada à representação.

Parágrafo único. Procede-se, entretanto, mediante ação penal pública incondicionada se a vítima é menor de 18 (dezoito) anos ou pessoa vulnerável.

Portanto, entendo que uma coisa é punir os "pedófilos" que são verdadeiros seres inviáveis que tanto causam desgraças as nossas inocentes crianças. Outra coisa é punir pessoas que, eventualmente, incidiram em erros que poderiam ter sido evitados.

Ad conclusio, destaco com veemência que é necessário punir e até estabelecer penas mais rígidas aos pedófilos. A presunção de vulnerabilidade deve, sim, existir, mas, para não violar os princípios do contraditório, da ampla defesa e da não culpabilidade antecipada, destarte, a própria Constituição Federal, deve ser relativa, ou seja, juris tantum, admitindo-se prova em contrário e cedendo diante das hipóteses do caso em concreto.

A seguir, colaciono vários exemplos jurisprudenciais em que a vulnerabilidade pode ser considerada relativa.5

a) A vulnerabilidade é relativa: "….. cedendo na hipótese de o agente incidir em erro quanto à idade, erro este plenamente justificado pelas circunstâncias. (STF: HC 73:662, Segunda Turma; Rel. Min. Marco Aurélio, voto vencido)".

b) A vulnerabilidade é relativa: "..... quando o sujeito pode incidir em erro sincero quanto à idade da vítima, pelo porte físico, aparenta ser maior. (RT: 718:376.)"

c) A vulnerabilidade é relativa: "… quando comprovada a experiência da menor na prática sexual. (RT: 678:345.)".

d) A vulnerabilidade é relativa: "….. quando a vítima já manteve relações sexuais com vários homens. (RT: 542:323.)".

e) A vulnerabilidade é relativa: "…. quando a menor é "prostituta de porta aberta". (RT: 506:259.)".

f) A vulnerabilidade é relativa: "….pois não basta a idade, exigindo-se que a vítima se "mostre inocente, ingênua e totalmente desinformada a respeito do sexo". (RF: 285:350.)


Notas

  1. Redação em consonância com o art. 224. do Código Penal, revogado pela Lei no 12.015, de 7 de agosto de 2009.

  2. Mirabete, Júlio Fabbrini. Código Penal Interpretado. São Paulo: Atlas, 1999.

  3. Nucci, Guilherme de Souza. Comentários ao Código Penal, p. 841.

  4. Cernicchiaro, Luiz Vicente. "Estupro: violência presumida". In: RJ, no 228, out-1996, p. 44.

  5. Os julgados foram selecionados em casos em que o debate era se a violência era relativa ou absoluta.

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Sobre o autor
Francisco Dirceu Barros

Procurador Geral de Justiça do Estado de Pernambuco, Promotor de Justiça Criminal e Eleitoral durante 18 anos, Mestre em Direito, Especialista em Direito Penal e Processo Penal, ex-Professor universitário, Professor da EJE (Escola Judiciária Eleitoral) no curso de pós-graduação em Direito Eleitoral, Professor de dois cursos de pós-graduação em Direito Penal e Processo Penal, com vasta experiência em cursos preparatórios aos concursos do Ministério Público e Magistratura, lecionando as disciplinas de Direito Eleitoral, Direito Penal, Processo Penal, Legislação Especial e Direito Constitucional. Ex-comentarista da Rádio Justiça – STF, Colunista da Revista Prática Consulex, seção “Casos Práticos”. Colunista do Bloq AD (Atualidades do Direito). Membro do CNPG (Conselho Nacional dos Procuradores Gerais do Ministério Público). Colaborador da Revista Jurídica Jus Navigandi. Colaborador da Revista Jurídica Jus Brasil. Colaborador da Revista Síntese de Penal e Processo Penal. Autor de diversos artigos em revistas especializadas. Escritor com 70 (setenta) livros lançados, entre eles: Direito Eleitoral, 14ª edição, Editora Método. Direito Penal - Parte Geral, prefácio: Fernando da Costa Tourinho Filho. Direito Penal – Parte Especial, prefácios de José Henrique Pierangeli, Rogério Greco e Júlio Fabbrini Mirabete. Direito Penal Interpretado pelo STF/STJ, 2ª Edição, Editora JH Mizuno. Recursos Eleitorais, 2ª Edição, Editora JH Mizuno. Direito Eleitoral Criminal, 1ª Edição, Tomos I e II. Editora Juruá, Manual do Júri-Teoria e Prática, 4ª Edição, Editora JH Mizuno. Manual de Prática Eleitoral, Editora JH Mizuno, Tratado Doutrinário de Direito Penal, Editora JH Mizuno. Participou da coordenação do livro “Acordo de Não Persecução Penal”, editora Juspodivm.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BARROS, Francisco Dirceu. A natureza jurídica da vulnerabilidade nos novos delitos sexuais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2605, 19 ago. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17215. Acesso em: 23 dez. 2024.

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